A noção adequada ao atual estágio do conhecimento que pode ser ‘exigida’ do Poder Judiciário é que seja ‘imparcial’
A ideia de jurisdição, como atualmente se concebe, tem raiz no século 18 e decorre, principalmente, da amplamente difundida teoria da separação dos poderes de Montesquieu, segundo a qual, grosso modo, dos três tipos de poder existentes nos Estados caberia ao Judiciário “julgar os crimes e as querelas entre particulares”, restando para o Legislativo e o Executivo a criação das leis e a garantia da paz, respectivamente.
Sob a premissa de que somente o poder é capaz de limitar o poder, sustentava o célebre filósofo francês que o poder em causa serviria para a limitação dos demais, devendo aplicar as leis elaboradas pelo Legislativo, com a participação do Executivo, mas sem subordinação a eles, haja vista tal autonomia ser indispensável para a liberdade individual, na medida em que, “se estivesse unido ao Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador”, e, “se estivesse unido ao Executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor”.
Desde sua gênese, portanto, ao mesmo tempo que se pretende a sua independência, espera-se de seu exercício um agir limitado pelo texto da lei (que advém de outro Poder) e neutro, fruto do conhecimento da época, de predomínio da razão moderna. Daí a ideia de um juiz “boca da lei” e a associação entre jurisdição e neutralidade.
Passados mais de três séculos de evolução do conhecimento, com um avanço considerável da compreensão da complexidade da mente humana, tal neutralidade do homem racional não mais se sustenta cientificamente, emergindo a falibilidade da razão humana como princípio, dentre outros fatores, ante as influências da razão pela emoção e da subjetividade individual pelo contexto social.
Resulta desse progresso – no que aqui interessa – a substituição de tal neutralidade da jurisdição pela noção de imparcialidade, construção jurídica voltada à manutenção da legitimidade jurisdicional, que com a anterior não se confunde, ainda que não raras vezes se observe a confusão, inclusive por seus próprios representantes.
A partir da nova noção, ao invés da utópica expectativa de que um juiz se possa desvencilhar das suas experiências passadas, suas preferências ideológicas, etc., para exercer a judicatura, aceita-se que, como ser humano comum, jamais conseguirá afastar a sua subjetividade para julgar um processo, sendo tal constatação o simples reconhecimento da sua condição humana. Afinal, seja por ser fruto do contexto social em que habita, seja por possuir um sistema psíquico complexo, cujo consciente representa somente um dos processos, invariavelmente seu pensar e agir serão reflexos de tais fatores, tal como de qualquer pessoa, insista-se, comum.
Não à toa, Cesare Beccaria, para citar também um célebre jurista, preocupava-se tanto com a interpretação do “espírito da lei” pelos juízes, já que tal corresponderá “à boa ou má lógica do juiz, e isso dependerá de sua boa ou má digestão, da violência de seus interesses, (...) das relações com o acusado e todas aquelas pequenas circunstâncias que alteram a aparência de cada objeto, na flutuante mente humana”, o que inclusive explica vermos “o destino de um cidadão alterado várias vezes ao passar por diferentes tribunais e sua vida ser vítima de falsas ideias ou do mau humor do juiz, que confunde a legítima interpretação das leis com o vago resultado de toda aquela confusa série de noções que lhe move a mente”.
Não sendo, por certo, o juiz exceção aos demais seres humanos nem possuindo qualquer dom de se desvincular de suas experiências passadas e preconceitos, é inevitável que sua atuação seja dirigida por sua visão de mundo e dos fenômenos que nele acontecem, de modo que qualquer ato judicial, em maior ou menor grau, refletirá o olhar particular do seu responsável, jamais neutro.
Consequentemente, fatalmente irrealista a expectativa de neutralidade da atividade jurisdicional, devendo-se adotar, nesse lugar, o critério da imparcialidade, limite possível aos prejuízos que a subjetividade individual pode impor ao seu exercício.
É essa a noção adequada ao atual estágio do conhecimento que pode ser exigida do Poder Judiciário. Que seja imparcial. Que, reconhecendo as idiossincrasias de seus representantes, compreenda que seu exercício somente atenderá a tal requisito de validade se levado a efeito de forma desinteressada (alheia) aos interesses das partes, mas comprometida com a apreciação de suas versões, proporcionando sempre igualdade de tratamento e oportunidades aos envolvidos, para que nenhuma parte seja beneficiada em detrimento da outra, mesmo involuntariamente.
Eis as condições de imparcialidade para a atividade jurisdicional, que inclusive permitem identificar envolvimentos indevidos do juiz em situações nas quais sua subjetividade será o critério preponderante na condução dos seus atos. Como nos lembra Francesco Carnelutti, “a justiça humana não pode ser mais do que uma justiça parcial; (...) Tudo o que se pode fazer é tentar diminuir essa parcialidade”.
Ruiz Ritter, o autor deste artigo, é advogado criminalista, doutorando e mestre em ciências criminais pela PUC-RS. Autor do livro "Imparcialidade no Processo Penal - Reflexões a Partir da Teoria da Dissonância Cognitiva". / e-mail: ruiz@ritterlinhares.com.br. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 25.08.23
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