segunda-feira, 3 de julho de 2023

Decepção

Para quem se compara a Nelson Mandela e pretende o Nobel da Paz, a tarja do jornal francês seguramente não é bom sinal.

Após quatro anos de isolamento internacional, Lula movimenta-se no modo recuperação do tempo perdido. Mas um jornal francês de centro-esquerda refere-se a ele como “decepção”, após ter classificado o sofrimento do povo venezuelano de mera “narrativa”, ao receber com salamaleques o ditador Nicolás Maduro. Para quem se compara a Mandela e pretende o Nobel da Paz, a tarja francesa seguramente não é bom sinal.

Diante do nocaute de Bolsonaro pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), agora a dureza do jogo obstrutivo político e seus preços fica mais evidente e Lula frustra expectativas em relação à sua capacidade para superar os previsíveis desafios deste terceiro mandato. Até onde deve ceder para governar? Que valores serão sacrificados em nome da governabilidade? Há limites para o realismo político?

Pior do que não cumprir promessas, o que lamentavelmente já se naturalizou no Brasil, é a perda gradual e contínua de identidade política do petismo, para cuja construção Lula foi referência na fundação do partido, há 43 anos. Foi protagonista, lastreando-se na proteção da dignidade humana, dos direitos sociais, dos direitos das mulheres, na luta pela integridade e transparência.

O Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos posicionou-se com veemência publicamente contra a PEC 9/23, a maior virada de mesa da história dos partidos, a quarta anistia, que propõe simplesmente que eles não se sujeitem à lei como todos os mortais, destruindo regras garantidoras de direitos de mulheres e negros. Mas o partido político do presidente e sua base de apoio, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, desprezaram todas as políticas públicas historicamente construídas pelo partido, todas as ações afirmativas que encharcam a Constituição, e preferiram assumir a posição diametralmente oposta, votando a favor da anistia, de braços dados com os bolsonaristas.

Se isso se repetir na Comissão Especial, no plenário e pelo próprio presidente da República, ficará difícil de manter a versão de que este grupo político ainda defende mulheres e negros, pois os terá abandonado à própria sorte em nome de outros interesses de ocasião.

Por outro lado, ainda que tenha havido anulações processuais e reconhecimento de parcialidade jurisdicional, no que diz respeito ao presidente, nos quatro mandatos (de Lula e Dilma) o Brasil aderiu e subscreveu o Pacto dos Governos Abertos, aprovou a Lei de Acesso à Informação e foi instituída a prática política de indicar o procurador-geral da República (PGR) dentro da lista tríplice da Associação Nacional dos Procuradores da República.

Foi a forma encontrada pelo PT de reverenciar a democracia e de prestigiar a autonomia do Ministério Público Federal. Afinal, o presidente fiscalizado está escolhendo o próprio fiscal. Isso se rompeu no governo passado, que indicou e reconduziu um PGR fora da lista, e este acaba, inclusive, de inaugurar, de forma surpreendente e inédita, seu próprio retrato na galeria do Conselho Nacional do Ministério Público, três meses antes do fim de seu mandato.

Observe-se: houve intenso debate público, no início do atual mandato, a partir da revelação dos gastos com cartões corporativos de Bolsonaro, que se apresentava como gestor austero e que gastaria em patamares supostamente franciscanos. Mas, diante da abertura das informações, foram revelados gastos milionários no cartão corporativo. Chamaram a atenção as despesas, no que diz respeito aos valores absolutos, mas também em relação aos grandes volumes de recursos financeiros para o mesmo beneficiário. Percebeu-se que se tratava de refeições servidas a centenas de pessoas no contexto de uma daquelas famigeradas motociatas, em movimentos preparatórios da campanha à reeleição do ex-presidente.

Acertadamente, então, o governo federal publicou minuta de decreto para colher sugestões da sociedade civil, com o objetivo de construir uma nova regulamentação limitativa, visando à moralização do uso do cartão corporativo. Ao fim, o decreto foi publicado, mas lamentavelmente não temos experimentado tempos de contenção.

Em quatro meses, conforme amplamente divulgado, foram gastos por meio do cartão corporativo presidencial R$ 12 milhões, o que significa uma média de R$ 4 milhões mensais, projetando-se R$ 48 milhões anuais – valores superiores aos que vinham sendo gastos pelo governo anterior.

Mas o pior é deixar de instituir a transparência como política de Estado, sendo o Brasil um dos oito celebrantes mundiais do Pacto dos Governos Abertos. O Instituto Não Aceito Corrupção e outras organizações da sociedade civil requereram à Controladoria-Geral da União (CGU) que todos os comprovantes de despesas presidenciais fossem digitalizados e lançados no Portal da Transparência, para permitir controle social amplo. Não foram os pedido atendidos.

Lula acredita ser favorito ao Nobel da Paz, mas a verdade nua e crua é que, à medida que seu mandato avança, a sociedade precisa se esquecer do contexto do salvacionismo democrático que o elegeu, recebendo um choque de realidade de Brasil real, do populismo da decepção, como alertam os franceses.

Em matéria de enfrentamento à corrupção, seja pela direita, seja pela esquerda, a agenda parece estar fadada a não evoluir um milímetro sequer no País. Simplesmente, o assunto não interessa (ou interessa) aos detentores do poder. 

Roberto Livianu, o autor deste artigo, é Procurador de Justiça no Ministério Público de S. Paulo, doutor em Direito pela USP, escritor, professor, palestrante e idealizador do Instituto Não Aceito Corrupção. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 03.07.23

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