quarta-feira, 28 de junho de 2023

A independência da Justiça é inegociável

Aplicação equilibrada da lei é condição indispensável ao País. Indicações políticas de Lula e Bolsonaro ao STF alimentam o retrocesso. Judiciário precisa resgatar sua autoridade

Interpretações excêntricas do ordenamento jurídico podem causar muitos e graves danos. Exemplo atual é o caso do art. 142 da Constituição. Por meio do marco constitucional de 1988, o País conseguiu restabelecer o regime democrático, assegurando, entre outros pontos, a separação e a independência dos Poderes. Não há nenhuma dúvida quanto a isso: a Constituição de 1988 veio instaurar o Estado Democrático de Direito.

No entanto, apesar de toda a clareza, há quem pretenda utilizar o texto constitucional de 1988 – no caso, o dispositivo sobre as Forças Armadas – como justificativa para autorizar uma intervenção militar no País, afrontando os princípios democráticos mais básicos. Em algumas vezes, a manobra é defendida abertamente. Noutras, fala-se em um suposto papel de moderação e de harmonia institucional que caberia às Forças Armadas exercer. Num e noutro caso, trata-se de violação da Constituição. No Estado Democrático de Direito, o poder é civil, sem nenhum tipo de tutela militar.

A desvirtuação golpista do art. 142 é um caso extremo. Mas são inúmeras as situações em que interpretações equivocadas do Direito – sobre, por exemplo, as liberdades individuais, a atividade econômica, a vida política e as relações trabalhistas – podem causar graves prejuízos ao País. A depender da aplicação que é dada à lei, em vez de reduzir as desigualdades, a Justiça pode contribuir para reproduzir e intensificar privilégios. Em vez de favorecer o desenvolvimento econômico, ela pode impor mais empecilhos e incertezas ao ambiente de negócios.

A importância de uma interpretação adequada do Direito remete diretamente à importância da composição dos tribunais superiores: Superior Tribunal de Justiça (STJ), Tribunal Superior do Trabalho (TST), Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e Superior Tribunal Militar (STM) – além, por óbvio, do próprio Supremo Tribunal Federal (STF). Esses órgãos colegiados definem a interpretação que deve ser dada à Constituição e às leis. De forma muito concreta, eles definem qual é o Direito no País.

Ciente do papel fundamental do STF e dos tribunais superiores no funcionamento do regime democrático, a Constituição definiu procedimentos e requisitos exigentes – reputação ilibada e notável saber jurídico – para o preenchimento desses cargos. Houve nítida preocupação do legislador constituinte para que esses órgãos não ficassem reféns do corporativismo das carreiras públicas. Na definição dos integrantes desses tribunais, o papel fundamental caberia ao Executivo e ao Legislativo, por meio da sabatina no Senado.

Infelizmente, nos últimos anos, as lideranças políticas parecem ter perdido a noção de sua responsabilidade, institucional e democrática, no preenchimento desses cargos. Em vez de fortalecerem o caráter técnico das indicações, respeitando a exigência constitucional do notável saber jurídico, os chefes do Executivo federal vêm fazendo o oposto. Jair Bolsonaro e Lula da Silva podem ter muitas diferenças, mas o fato é que os dois, com as últimas indicações ao Supremo, atuaram na mesma direção: a deterioração institucional da Corte com a indicação, por motivos não republicanos, de pessoas notoriamente abaixo das exigências do cargo.

O País tem um problema gravíssimo quando suas duas grandes forças políticas atuam em detrimento da independência da cúpula do Judiciário. Não há discurso a favor da democracia ou da liberdade individual capaz de reparar o profundo dano que é colocar no Supremo pessoas sem a devida qualificação, por razões meramente políticas. Para piorar, o Senado tem sido conivente com esse retrocesso que afeta o funcionamento do Estado e toda a vida em sociedade.

É preciso cobrar maior responsabilidade do Executivo e do Legislativo, punindo nas urnas quem age no cargo contrariamente ao interesse público. Mas também o Judiciário pode e deve reagir. Diante dessas tentativas de manipulação, que minam sua autoridade, cabe à Justiça zelar especialmente por sua colegialidade e pela rigorosa fundamentação técnica de suas decisões.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 28.06.23

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