Anistia a partidos aprovada pela CCJ da Câmara afronta a Constituição e tem de ser barrada pelo STF
No dia 16 passado, entre a deliberação sobre um projeto que torna o forró uma manifestação cultural nacional e outro para que a conta de luz passe a notificar sobre audiências públicas, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara encaixou um golpe contra a Constituição de 1988. Mais especificamente, contra o caput do artigo 5.º da Lei Maior, princípio basilar da República: a igualdade de todos perante a lei.
Por 45 votos a 10, o colegiado aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que concede anistia aos partidos políticos – a quarta em 30 anos – que violaram a lei que dispõe sobre as regras de distribuição dos recursos do fundo eleitoral, além de estabelecer cotas para candidaturas de mulheres e negros. As dez maiores bancadas na Câmara têm contas a prestar à Justiça Eleitoral, o que explica esse placar, expressão da solidariedade na desfaçatez.
A audácia dessa PEC é tanta que, a um só tempo, se faz letra morta da isonomia inscrita no texto constitucional, dificulta-se o acesso de grupos sub-representados ao Congresso e, como se não bastasse, afrontase o Supremo Tribunal Federal (STF) ao autorizar que partidos políticos peçam dinheiro a empresas para quitar dívidas contraídas até 2015, ano em que o STF proibiu a doação de pessoas jurídicas para legendas e candidatos.
Caso seja aprovada pelo plenário da Câmara e, ao final do processo, a PEC da sem-vergonhice seja promulgada pelo Congresso, partidos políticos tornar-seão entidades acima do bem e do mal no Brasil. A nenhuma outra organização privada é dado afrontar as leis e a Constituição de forma tão descarada e inconsequente – o que Roberto Livianu, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção e articulista do Estadão, chamou, com razão, de “autoproclamação da anarquia”.
Em qualquer país democrático no mundo, que cidadão ou empresa pode arrogar para si o estupendo poder da autoanistia? Essa PEC, mais que um escárnio, é uma evidente demonstração de que a maioria dos membros da CCJ da Câmara considerou que o Brasil é uma republiqueta de idiotas, formada por uma massa ignara que nem sequer é capaz de dimensionar a barbaridade que foi cometida por alguns de seus representantes eleitos.
Contra essa violência, primeiro, a sociedade civil precisa se insurgir e mostrar que está atenta à ação insidiosa de parlamentares que agiram não em seu nome, mas em nome dos interesses privados das organizações às quais pertencem. Além disso, o STF, evidentemente, não pode deixar de intervir nesse caso. Fez bem a deputada Sâmia Bonfim (PSOL-SP), membro da CCJ, ao impetrar mandado de segurança para que a tramitação da PEC da sem-vergonhice seja interrompida. A judicialização da política, como este jornal já sustentou não poucas vezes, é quase sempre indesejável. Não é incomum que o Judiciário seja visto como valhacouto de derrotados em debates que devem estar circunscritos ao Legislativo. Todavia, a quem recorrer senão ao guardião maior da Constituição quando nada menos que a CCJ da Câmara rasga um dispositivo constitucional de forma tão desabrida?
Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 18.05.23
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