Não há mais convívio entre generais contrários à intentona do dia 8 de janeiro e os envolvidos na aventura; Exército pode abrir processo interno para expulsar acusados por meio do chamado Conselho de Justificação
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, acompanhado do geneneral Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, comandante do Exército, participa da cerimônia em homenagem ao dia do Exército, no Quartel General, em Brasilia, no mês passado. Foto: WILTON JUNIOR / ESTADÃO CONTEUDO
Deslealdade. Esse é o mais educado dos adjetivos usados por generais para qualificar o comportamento de integrantes do governo de Jair Bolsonaro que planejaram aliciar comandantes de batalhões e até mesmo de brigadas para passar por cima dos integrantes do Alto Comando do Exército (ACE) que se recusavam a dar um golpe de estado e impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva. Quatro meses após a intentona do dia 8 de janeiro, a fratura criada na instituição não cicatrizou.
Expoentes do bolsonarismo continuam malvistos e desprezados pelos colegas, que se sentem constrangidos a cada nova descoberta feita pela Polícia Federal envolvendo militares da ativa e da reserva que assessoraram o ex-presidente. Na semana passada, a cúpula do Exército se reuniu em Brasília. Tratava-se de uma reunião administrativa, onde a chefia da Força tratou de seu orçamento e de operações que serão feitas com Argentina, Paraguai e Estados Unidos. Um outro tema, porém, pairava sobre os generais: a situação do tenente-coronel Mauro Cesar Cid.
Para os integrantes do Alto Comando, tudo o que o Exército não precisava agora era de mais problemas. A nomeação do general Marcos Amaro para a chefia do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) parecia normalizar a relação entre o atual governo e a caserna, inclusive com o retorno da segurança presidencial para as mãos do GSI. Amaro é visto pelos colegas como um oficial inteligente e íntegro. Foi instrutor da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) e conhece a área de informações.
Mesmo a atabalhoada inclusão do general Marcelo Goñes Sabbá de Alencar entre os militares excluídos na “faxina” do gabinete já parecia superada – Sabbá estava havia 9 dias no GSI quando se viu entre os afastados em razão da queda do general Marco Edson Gonçalves Dias, o G. Dias, então ministro-chefe do GSI. Havia entre os generais até mesmo a ideia de mandar Sabbá de volta ao GSI para corrigir a injustiça, mas, por fim, optou-se pela sua nomeação para a 2.ª Subchefia do Estado-Maior, responsável por orientar e avaliar o Sistema de Informações do Exército e sua área digital.
Foi quando chegaram ao comando do Exército as informações encontradas nos telefones celulares do tenente-coronel Cid e do ex-major Ailton Barros, ambos presos pela Polícia Federal sob a suspeita de terem participado de um esquema de falsificação de cartões de vacina contra a covid-19. Um diálogo revelado pela CNN mostrou o coronel Élcio Franco tramando um golpe de estado com o ex-major Barros.
Élcio Franco, ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde durante coletiva sobre o combate ao coronavírus Foto: Júlio Nascimento/PR
Este último diz que era preciso convencer o general Carlos Alberto Rodrigues Pimentel, do Comando de Operações Especiais (COpEsp), com sede em Goiânia, a mobilizar 1,5 mil homens para prender o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). O COpEsp é subordinado ao Comando Militar do Planalto (CMP), então ocupado pelo general Gustavo Henrique Dutra de Menezes, outra figura-chave nos eventos do dia 8. Dutra era um dos generais que os conspiradores designavam como “melancia” e pretendiam “bypassar”.
Franco, então assessor da Casa Civil, onde trabalhara com os ministros Luiz Eduardo Ramos e Walter Braga Netto, não demonstra nenhuma contrariedade à proposta do amigo. Antes, Franco trabalhara com Eduardo Pazuello, no Ministério da Saúde. Em comum com Ramos, Pazuello e outros expoentes do bolsonarismo, ele também é um Força Especial (FE), um militar formado no COpEsp, conforme mostrava o broche da caveira com um punhal que Franco costumava exibir no paletó.
A coterie dos Forças Especiais forneceu à intentona do dia 8 alguns dos principais expoentes no campo militar. O tenente-coronel Cid fazia parte dela e estava designado para comandar o 1.º Batalhão de Ações de Comandos, do COpEp. Foi da mesma brigada de Goiânia que saiu o coronel José Placídio Matias dos Santos, que no dia 8 convocou os colegas para o golpe: “Onde estão os briosos coronéis com tropa na mão?” A exemplo de Franco, Barros e outros, Placídio defendia que os colegas passassem por cima dos generais.
Seu modelo era o dos coronéis gregos que deram um golpe em 1967 e instalaram uma ditadura que durou sete anos sob a direção de Georgios Papadopoulos, para impedir a eleição do socialista Andreas Papandreou. Placídio ofendeu o comandante da Marinha, almirante Marcos Olsen, qualificando-o como “prostituta do ladrão” e o desafiou a puni-lo. O FE Placídio trabalhava no GSI com o general Augusto Heleno, outro oficial que saiu chamuscado do governo Bolsonaro, assim como Ramos, Pazuello e Braga Netto.
Todos, em maior ou menor medida, tornaram-se párias para os colegas em razão da deslealdade e da campanha de difamação e ataques movida contra integrantes do Alto Comando. Não há mais convívio entre os dois grupos. A fratura entre os bolsonaristas e a instituição está longe de acabar.
Por enquanto, nenhum dos golpistas é alvo de Conselho de Justificação, que pode declarar o acusado indigno para o oficialato, cassando o posto e a patente. O ACE decidiu aguardar as investigações da Polícia Federal e o processo no STF – o caso de Placídio estão nas mãos de Moraes. Em caso de condenação a mais de dois anos de prisão, os conselhos serão abertos e o militar, ainda que na reserva, será expulso.
O tenente-coronel do Exercito, Mauro Cesar Barbosa Cid, ajudante de ordens do presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia em Brasília Foto: Dida Sampaio/Estadão
Na avaliação dos generais, os integrantes da ativa envolvidos nos fatos são poucos. Nenhum comandante de organização aderiu à intentona do dia 8. Quem se moveu nas redes sociais ficou apenas nos chamados “atos preparatórios”, sem ultrapassar o limite que qualificaria seus atos como tentativa de crime contra o estado democrático de direito. Pelo menos é o que mostram, por enquanto, as investigações. Todos seriam somente valentões de WhatsApp. “Queria ver botar a cara aqui na frente”, disse à coluna um dos generais do ACE.
Mesmo o caso do coronel Cid é visto com cautela. Os generais negam que o pai do preso, o também general Mauro César Lorena Cid, que fora colega de turma de Bolsonaro na AMAN, esteja contrariado com o Alto Comando. O coronel não foi destratado nem humilhado. O comandante da Força, general Tomás Paiva, considera que Cid deve responder pelo que fez. Mas nada será feito contra o coronel de maneira açodada. As consequências do governo Jair Bolsonaro e da contaminação ideológica ainda incomodam. E cada vez que novos fatos surgem, uma frase começa a ser repetida: “Nunca mais”. A lição foi aprendida.
Marcelo Godoy, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 15.05.23. Atualizado às 14h30.
Nenhum comentário:
Postar um comentário