Vemos o avanço de ditaduras plebiscitárias, como Rússia e Hungria, e o crescimento irresistível do modelo chinês
Plenário da Câmara do Deputados em Brasília.Plenário da Câmara do Deputados em Brasília. Brenno Carvalho / Agência O Globo
Quando Bolsonaro foi eleito, surgiu por aqui uma fornada de livros sobre a decadência da democracia e a ascensão do autoritarismo em várias partes do mundo. “Como as democracias morrem”, “O povo contra a democracia”, os novos títulos se sucediam, e havia neles alguns pontos convergentes. A globalização deixou muita gente para trás, criando ressentimentos. A confiança nas elites políticas se esvaiu diante de líderes preocupados com seu próprio interesse, de costas para a sociedade.
Neste momento, no Brasil, a democracia está próxima de receber um ataque que a enfraquecerá ainda mais. Trata-se de um projeto que anistia as transgressões dos partidos não só quanto ao respeito às cotas minoritárias, mas também quanto à prestação de contas de milhões de reais gastos: compra de avião, toneladas de carne e outras despesas extravagantes.
Os partidos criam regras e as transgridem. O TSE decide puni-los, e eles criam mais uma lei de anistia para suas próprias transgressões. Eles se dotam, simultaneamente, do poder de regular e de perdoar, incluindo no perdão gastos com o fundo eleitoral. Só com as eleições, os partidos em 2022 consumiram R$ 4,9 bilhões. O fundo partidário distribuiu um pouco mais de R$ 1 bilhão.
Interessante observar que a manobra da anistia envolve quase todos os partidos, deixando de fora apenas a coligação Rede-PSOL e o Partido Novo. A mais importante consequência de uma medida como essa é o abismo que se forma entre política e opinião pública, deixando o caminho aberto para oportunistas que eventualmente queiram inventar uma nova política.
O caminho econômico, além de difícil, não é o único. Não há sinais de que as elites políticas brasileiras tenham entendido a mensagem de 2018 e ignorem que soluções autoritárias continuam sendo atraentes à medida que se aprofunda a desilusão com a democracia.
Bolsonaro fez isso em 2018. A “nova política” se desmoralizou com a introdução do orçamento secreto. Os bolsonaristas agrupados no PL apoiam a anistia, logo não teriam condições de se diferenciar num futuro próximo. Mas a existência do abismo é um convite à aventura, e ela não tem de ser vivida necessariamente pelos mesmos personagens.
Num livro recente chamado “A crise do capitalismo democrático”, o jornalista Martin Wolf analisa não somente a globalização e suas lacunas, mas, apesar de sua ênfase na economia, destaca também a questão política. Assim como todos os outros autores, Wolf está longe do otimismo com o futuro da democracia, ressaltado num célebre ensaio de Francis Fukuyama, “O fim da História”.
Ninguém mais acredita que a democracia é para sempre, e muitos duvidam de sua capacidade de encarar as reformas necessárias para sobreviver. O que vemos no mundo é o avanço de ditaduras plebiscitárias, como na Rússia ou na Hungria, e o crescimento irresistível do modelo autoritário chinês.
Como jornalista econômico, Wolf ressalta que está na própria economia a explicação para a fragilidade democrática. Mas não deixa de avançar noutros pontos essenciais:
— Nem a política nem a economia funcionarão sem um substancial nível de honestidade, confiança, autocontenção e lealdade às instituições. Na ausência desses fatores, um ciclo de descrédito corroerá as relações políticas, sociais e econômicas.
Concordo com a ideia de que nenhum sistema político consegue sobreviver sem a prevalência de normas fundamentais de comportamento. Essa ideia, aplicada ao Brasil, mostra que a luta pela democracia está perdida em alguns fundamentos. Melhorar a economia é essencial. Wolf reconhece que as pessoas querem estabilidade e prosperidade para si e para os filhos. Na ausência disso, tornam-se ressentidas.
Há poucos sinais de que as elites políticas tenham aprendido as lições de 2018, não aparece nelas um simples núcleo destinado a salvá-las de suas próprias tendências à autodestruição. Digo autodestruição num contexto democrático; os piores vão sempre se adaptar aos regimes autoritários. Por enquanto, estamos apenas esperando o ataque que virá na forma de anistia.
Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é Jornalista e escritor. Publicado originalmente n'O Globo, em 22.05.23
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