Com uma estrutura partidária tornada em tragicomédia e o poder parlamentar real exercido pelo Centrão, alguém acredita na instauração da paz e da ordem no País?
“O sistema presidencial de governo só funciona nos Estados Unidos. Em outros países, ele degenera em presidencialismo, ou seja, em ditadura” (Maurice Duverger)
Tivesse tido a oportunidade de acompanhar a eleição norte-americana de 2016 e os desmandos da era Trump, o mestre francês Maurice Duverger por certo teria sido mais sóbrio em sua avaliação do sistema de governo norte-americano.
Aqui, precisamos retroceder ao pleito presidencial de 1960, que deu a vitória ao ex-governador de São Paulo Jânio Quadros, lançado pela minúscula sigla do Partido Trabalhista Nacional (PTN). Consta que Jânio Quadros era um bom dicionarista, mas como político foi um dos mais grotescos espécimes do populismo latino-americano. Espargindo caspa pelos ombros e caprichando em seus dons teatrais, não teve dificuldade em personificar um líder gaiato que o tosco Brasil daqueles tempos acolheria com entusiasmo. Do lado oposto, a União Democrática Nacional (UDN), consciente de sua fragilidade diante da mística getulista – criptografada pela aliança PSD-PTB (Partido Social-Democrático/Partido Trabalhista Brasileiro) –, bandeou-se para o populismo janista. Acrescentemos que a Constituição da época não exigia que os candidatos a presidente e a vice pertencessem a um mesmo partido, e assim Jango, percebendo que Jânio venceria o Marechal Lott por larga margem, em vez de encarnar o evangelho segundo Getúlio, aliou-se por baixo do pano ao Messias da Vila Maria.
O resultado da aliança Jânio-Jango foi o previsível desastre. Tendo cumprido somente oito meses de governo, Jânio Quadros, obviamente tentando efetuar um golpe plebiscitário, enviou ao Congresso Nacional uma carta-renúncia, na intenção de que o povo o levaria nos ombros de volta ao Planalto. Agindo com sabedoria, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, sentenciou: “Uma carta de renúncia não é suscetível de votação. A renúncia do presidente da República é um ato de vontade e não depende do Congresso. Está recebida a carta! Arquive-se!”. Neste momento, Jango, em viagem oficial à China, foi notificado por uma junta militar que tomara o poder de que seria preso assim que pusesse o pé no território nacional.
Decorridos 61 anos, limito-me a lembrar que a possibilidade de uma guerra civil logo se delineou, em razão da resistência do Rio Grande do Sul, hipótese contornada por um improvisado “parlamentarismo” (um típico semipresidencialismo) que radicalizou o País e desembocou diretamente no golpe militar de 1964.
O curioso dessa história é que, na prática, tivemos vários ensaios de “semipresidencialismo” antes mesmo de ele surgir na França – sem maiores consequências até a tentativa de golpe contra o presidente João Goulart, em 1961, que forçou a formalização do sistema sob a falaciosa denominação de parlamentarismo. Até então, uma figura informal semelhante à de um primeiro-ministro já fora investida, com poderes variáveis, ora pelo ministro da Justiça, ora pelo da Fazenda. Durante os governos militares, tivemos no papel o general Golbery do Couto e Silva, Petrônio Portella e o ministro Leitão de Abreu, este chefiando a Casa Civil. Sem esquecer, é claro, que no início dos anos 90 o presidente Itamar Franco retomou o modelo do “semi-informal”, que ganhou seriedade não por suas qualidades intrínsecas, mas porque a função foi entregue ao senador Fernando Henrique Cardoso.
É lógico que a experiência de 1961-1963 nada tinha de parlamentarismo; era um emaranhado de contradições. Em tese, é lícito cogitar que a instauração (ou não) de um sistema parlamentarista mediante plebiscito seria um caminho consistente. E, de fato, chegou a ser voz corrente que o Ato Adicional do referido emaranhado estipulara a realização de um plebiscito cinco anos após o estabelecimento do “parlamentarismo”. Quanto a esse ponto, não há dúvida de que alguém andou vendendo gato por lebre. (A seguir, com grifos meus.) O artigo 22 das Disposições Transitórias apenas autorizava o Legislativo a fazer o que é de sua obrigação: “Poder-se-á complementar a organização do sistema parlamentar de governo ora instituído, mediante leis votadas, nas duas Casas do Congresso Nacional, pela maioria absoluta de seus membros”. À vacuidade do artigo 22, acrescentava-se no artigo 25 uma pérola de engenharia constitucional: “Art. 25. A lei votada nos termos do artigo 22 poderá dispor sobre a realização de plebiscito que decida da manutenção do sistema parlamentar ou volta ao sistema presidencial, devendo, em tal hipótese, fazer-se a consulta plebiscitária nove meses antes do termo do atual período presidencial”.
Nos dias de hoje, com uma estrutura partidária transformada em tragicomédia e o poder parlamentar real exercido por aquela chusma denominada Centrão, alguém acredita na instauração da paz e da ordem no País?
O presidente Charles De Gaulle não disse, mas poderia com plena razão dizer que o Brasil não é um país sério.
Bolívar Lamounier, o autor deste artigo. é cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 20.05.23
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