Brian Klaas, autor do livro ‘Corruptíveis’, fala sobre os perigos à democracia vividos em países como Brasil e EUA e avalia como agem os líderes políticos desses locais
Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, e Jair Bolsonaro, presidente do Brasil Foto: Tom Brenner / Reuters
“Quando você começa a normalizar o autoritarismo, a corrupção e as violações anti-democráticas, as pessoas começam a aceitar isso e fica muito difícil reverter”. Essa frase do analista político americano Brian Klaas reflete a preocupação de muitos eleitores no Brasil e em diferentes países que passaram por testes democráticos nos últimos tempos, entre eles os Estados Unidos, que viram o Capitólio ser invadido por partidários de Donald Trump no dia 6 de janeiro, data em que o Congresso estava reunido para certificar a vitória de Joe Biden como novo presidente americano.
No livro “Corruptíveis: o que é o poder, que tipos de pessoas o conquistam e o que acontece quando chegam ao topo’', Klaas discute a necessidade de se reformar sistemas para evitar que a corrupção seja uma prática daqueles que detêm o poder. Em conversa com o Estadão, o analista avalia o cenário eleitoral brasileiro, o impacto do discurso anticorrupção e como líderes internacionais continuam colocando a democracia em xeque em seus países.
Por que decidiu escrever esse livro?
Quando eu penso em todo o progresso que fizemos em todas as áreas da sociedade, vejo o quanto avançamos. Mas quando se trata de poder, temos ainda a mesma pergunta que tinham os gregos e romanos na Antiguidade: ‘como colocamos as pessoas erradas no poder?’. Eu queria prover o máximo possível de evidências científicas sobre esse problema e mostrar que é solucionável. Alguns pensam que é um problema inerente à humanidade, mas acho que podemos reformar os sistemas e fazer com que eles funcionem e, assim, ter melhores pessoas no poder.
Mas a corrupção está presente em todos os níveis de nossa sociedade.
Quando se tem a cultura da corrupção e sistemas que permitem a corrupção, isso atrai pessoas corruptas. De maneira geral, eu digo, sistemas errados atraem pessoas erradas. As pessoas tendem a culpar o outro, mas seria muito mais útil se a gente começasse a pensar nos sistemas que criam esse outro nessas posições de poder. O ditado diz que o poder corrompe. O livro fala que isso é totalmente verdadeiro, mas acredito que há uma necessidade de reformar o sistema primeiro para que ele funcione direito. Se você não é corrupto, precisa achar esse sistema atrativo. Os políticos brasileiros modernos não parecem tão atrativos porque temos um sistema que está afetando a estrutura de poder. E essas reformas podem vir de um líder que está disposto a fazê-las ou por pressão da sociedade.
Qual é o impacto das fake news nesse processo?
A política está se tornando disfuncional porque as pessoas não concordam mais sobre o que é real e o que é falso. A democracia requer o compartilhamento de um senso de realidade, no qual temos de concordar sobre o que está acontecendo antes de descobrir como arrumar. O problema é que se a realidade está sendo questionada, a política se torna um palco para essa espécie de guerra entre discursos, um ambiente de polarização disfuncional. Ninguém quer que isso se perpetue, a não ser que seja para ter mais poder.
Quantas pessoas querem passar o dia tendo mentiras contadas sobre elas, tendo de discutir constantemente o que é verdade e o que é mentira e cercadas de gente corrupta? Esse problema volta ao ponto de que certos tipos de pessoas se colocam em determinadas situações em troca de poder. E isso é mediado pelo sistema. Então, o sistema é cheio de fake news e cria problemas piores do que os que já existem. Para os eleitores, isso é problemático porque não se consegue avaliar alguém sem saber o que é real e o que é falso.
Qual é a importância das eleições?
As eleições podem ser muito úteis se funcionarem direito. Se há um bom trabalho dos jornalistas e uma boa avaliação dos eleitores, demandando as informações que os políticos não dão, a eleição pode ser muito útil porque é a oportunidade de o público avaliar o que quer dos que estão no poder. O problema vem quando se há informações que mostram que determinada pessoa está na política apenas pelo poder, e ainda assim alguns eleitores votam por esse candidato, em parte por conta de uma lavagem cerebral e das propagandas. Vladimir Putin é genuinamente popular na Rússia, por exemplo. Mesmo se as eleições fossem livres lá, ele provavelmente ganharia.
Temos a ideia de que se mostrarmos ao povo que determinada pessoa é corrupta e só quer o poder, então ela vai perder a eleição, e isso não é verdade. Acredito que parte disso se trata de avaliarmos nós mesmos, o que significa para a nossa sociedade ver que um número razoável de eleitores continua votando por alguém, sabendo o que de errado essa pessoa está fazendo? Isso, acredito, se aplica ao Brasil. Há uma questão que é: por que tanta gente, apesar das acusações óbvias contra (Jair) Bolsonaro, continua apoiando o presidente? Aqui a resposta não é apenas a desinformação, mas também as crenças sobre para que serve o poder. E, infelizmente, muita gente na política moderna - e isso é verdade tanto nos EUA quanto no Brasil - enxerga o poder como uma forma de ir atrás do seu inimigo, e não como uma forma de alcançar metas e melhorar vidas. Quanto mais a política se tornar uma batalha entre quem vence e quem perde, e menos uma forma de realizar ações concretas, mais teremos as pessoas erradas no poder.
Como a busca por soluções fáceis e rápidas influencia a continuidade de sistemas corruptos?
Durante momentos de crise no passado, e digo na idade da pedra mesmo, era razoável se voltar ao líder e pedir que ele solucionasse o problema de uma invasão, por exemplo. Em tempos de guerra, fazia sentido se voltar para alguém fisicamente mais forte. Mas esse sentido foi se adaptando. Agora, temos a tendência de nos voltarmos para quem fala ‘vou resolver isso para você’, quando na realidade sempre que se enfrenta uma situação complexa e problemática - como a atual no Brasil - você precisa de alguém que diga ‘será difícil, haverá custos’. Mas ninguém votará por essa pessoa. Por que continuamos sendo seduzidos por quem nos vende mentiras e promessas que não serão cumpridas? Por que continuamos sendo enganados? Parte do entendimento para combater isso é compreender que o seu ímpeto inicial é achar a solução simples e a resposta imediata.
Qual é o papel da religião nesse contexto?
Depende muito da sociedade. Em algumas, a religião tem um papel muito limitado na política; em outras, tem um papel determinante. Religião é uma área que pode se tornar uma espécie de fiscalizador do poder. Por exemplo, se você vive em uma sociedade onde o líder religioso tem legitimidade política, ele tem a posição única de criticar os que estão no poder de uma forma que pessoas comuns não poderiam e a população vai escutar. O poder religioso, isso eu posso dizer, está sujeito aos mesmos problemas do poder político. Muitas vezes, as pessoas abusam do poder religioso num sistema que não está regulado minimamente.
Falando dos EUA, é possível calcular o impacto do governo Trump para a democracia?
Sim, foi um dano enorme. Primeiro porque, e aqui existe um paralelo com o Brasil, a democracia basicamente funciona de acordo com normas e Trump violou quase todas. Como resultado, ele tornou essa prática normal. Então, as novas gerações de republicanos estão fazendo as mesmas coisas, testando o sistema como ele testou e agora vemos riscos significativos ao processo democrático. O problema maior é que o partido dele, o Republicano, está se tornando autoritário e vimos isso com o episódio de 6 de janeiro. O que acho preocupante sobre isso é que quando você começa a normalizar o autoritarismo, a corrupção e as violações anti-democráticas, as pessoas começam a aceitar e fica muito difícil reverter porque vira parte do novo normal em nossa política.
Acredito que o sistema democrático dos EUA está sob risco e o país pode se tornar não democrático em anos ou décadas. Isso seria terrível para os EUA e para o mundo, porque é o país com o maior quintal democrático no mundo. É muito falho em muitos aspectos, mas um mundo liderado pela China seria muito mais negligente com as leis, em minha opinião. E aqui acredito que há um paralelo com o Bolsonaro, quando começamos a considerar que o que ele faz é aceitável como comportamento político porque ele simplesmente fez coisas que antes eram inaceitáveis.
Falando do Brasil, vemos em alguns discursos políticos que vale tudo em nome do combate à corrupção. Qual é o perigo desse discurso?
O principal a se ter em mente é que proteger o sistema da democracia é mais urgente do que qualquer outra questão que exista, mais do que a questão da corrupção. E a razão para isso é que uma vez que a democracia se vai é muito, muito difícil recuperá-la. A maioria dos países que analisei onde a democracia havia sido quebrada, ela não havia sido recuperada, os países continuam sendo autoritários ou ditaduras, uma completa bagunça. É muito mais fácil defender o que resta da democracia do que tentar trazê-la de volta após ser destruída.
A segunda coisa a se ter em mente é que pessoas que são corruptas e abusam do poder frequentemente acusam seus oponentes de serem corruptos e abusarem do poder. É uma projeção. O problema é que num ambiente de fake news, as pessoas começam a se perguntar o que realmente está acontecendo. Veja o caso Trump: os próprios republicanos acusavam os democratas de serem anti-democráticos e isso é absurdo, mas eles diziam isso e os seus seguidores acreditavam. A corrupção pode ser usada, de forma cínica, como uma arma contra os inimigos. Como o presidente Xi na China ou em países como Madagascar, um presidente diz que vai acabar com a corrupção, mas o que realmente faz é ir atrás para acabar com seus inimigos e o círculo de amigos corruptos do presidente não são investigados ou processados.
Não estou dizendo que não se deveria haver uma preocupação com a corrupção. Apenas digo que é preciso ter cuidado porque qualquer movimento anticorrupção pode ser usado para que as pessoas que estão no poder e as que estão fora sejam tratadas de forma diferente quando agem de forma corrupta.
Qual é a importância de encontros internacionais, como a Assembleia-Geral da ONU, para esse contexto político?
As formas como os líderes internacionais interagem entre eles é um sinal de legitimidade. Ser convidado para um evento internacional é algo que os líderes no poder desejam. O ponto é que há formas diferentes de interagir no cenário internacional e é mostrar que existem consequências para os líderes que tomam determinadas ações. Por exemplo, acredito que alguns líderes não deveriam ser convidados para eventos internacionais em razão de seus atos. Mohammed Bin Salman, da Arábia Saudita, está muito provavelmente envolvido na morte do jornalista Jamal Khashoggi. Ele deveria ser tratado da mesma forma que Joe Biden, Emmanuel Macron e etc? Acredito que não. O mesmo vale para Putin. Acho que ele não deveria ser convidado para eventos internacionais.
A questão difícil é como calibrar isso para alguém como Bolsonaro, que não é a pior pessoa no mundo, existem ditadores que fizeram coisas muito piores que ele, mas que claramente está levando o Brasil para uma direção errada e cometendo sérios danos à democracia. O que é importante é pensar num sistema onde haja consequências para os líderes que se comportam de forma errada. E essa resposta pode vir dos eleitores, dos jornalistas, de cortes anti-corrupção ou juízes. Mas também pode ser uma resposta internacional e pode ser tratar esses líderes como pária. Abuso de poder precisa ter consequências e, infelizmente, aqueles que abusam do poder na esfera política hoje, não enfrentam as consequências. Geralmente não perdem as eleições, não são processados - Trump é um exemplo disso, se fosse qualquer outra pessoa no país já teria ocorrido o processo.
Qual é a importância da imprensa nesse contexto?
A maioria das pessoas não pode interagir com aqueles que estão tentando chegar ao poder. As pessoas comuns no Brasil têm pouco conhecimento do que Bolsonaro realmente está disposto a fazer porque nunca o conheceram, não conhecem seu entorno. Então, esse papel de dar informação sobre as pessoas poderosas recai sobre a imprensa e, por isso, uma das primeiras coisas que os líderes autoritários fazem é atacar a imprensa, tentar calá-la. Por isso, é tão importante defender a imprensa quando um ataque desse ocorre. É uma espécie de última chance de expor o comportamento de abuso de poder porque a imprensa pode dizer coisas que ninguém mais pode.
Como você se sentiu ao entrevistar ditadores para o livro?
O impressionante é que quando se conversa com pessoas que fizeram coisas horríveis, elas não parecem horríveis. Na maior parte do tempo, elas são charmosas, engraçadas e agradáveis. Isso é estranho quando você sabe que está falando com alguém acusado de crimes de guerra, por exemplo, e mesmo assim ri de suas piadas. Mas acho que no fundo a questão é que as pessoas que fazem coisas horríveis ao redor do mundo são, geralmente, muito habilidosas em manipular, são muito boas em fazer os outros gostarem dela.
Você acredita que o contexto pós-pandemia pode facilitar processos corruptos?
As pessoas estão saindo da pandemia exaustas. Em países autoritários, a pandemia permitiu a expansão dos poderes em formas que podem ser problemáticas no futuro. Mas também acredito que a pandemia nos ensinou lições importantes, como a necessidade de cooperar, dividir informações, procurar evidências para tomar decisões. Espero que isso transpareça na política também.
Algo que tento mostrar no livro a todo momento é que a eleição de nossos líderes não é racional. E precisamos pensar com cuidado nas evidências, biografias. Agora, no pós-pandemia, precisamos colocar os holofotes em nossos líderes, até porque alguns deles ganharam poderes excepcionais com a desculpa de conter danos e eles devem devolver essa autoridade. Mas sabemos que, em alguns países, esse estado de emergência será usado para perseguir os oponentes, mesmo que a intenção original da ampliação dos poderes tenha sido dar uma resposta ao aumento da Covid.
Fernanda Simas para O Estado de S. Paulo, em 28.09.22 às 20h57
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