sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Em "referendos", ucranianos votaram sob a mira de armas

Moscou alega participação recorde, observadores falam em resultados fraudados. À DW, moradores contam que sofreram ameaças para votar e que russos chegaram a levar urnas de porta em porta, ao lado de militares armados.

Pacientes foram forçados a votar até na cama do hospitalFoto: AFP/Getty Images

Os invasores russos na Ucrânia fizeram eleitores votarem nas ruas, em seções de votação improvisadas e até em suas próprias casas, levando urnas de porta em porta. Os relatos são de moradores das regiões ucranianas de Zaporíjia, Kherson, Lugansk e Donetsk, parcialmente ocupadas por Moscou.

Pseudorreferendos sobre a anexação desses territórios à Rússia foram realizados nos últimos dias nas quatro regiões. Recusar-se a participar da votação imposta era uma ameaça à vida, disseram os residentes locais, ressaltando que representantes dos chamados "comitês eleitorais" apareciam acompanhados de militares russos armados.

"Duas mulheres e três soldados russos com fuzis me perguntaram se eu votaria", contou a moradora de um vilarejo perto de Melitopol, em Zaporíjia. Ao questioná-los se ela tinha escolha, eles ficaram em silêncio. "Eu tive que fazer um xis onde eles apontaram [na cédula de votação] com o cano da arma."

Ela disse que, embora não quisesse votar, o fez porque temia que eles pudessem convocar seu filho de 35 anos para a guerra. "Foi bom que meu marido e meu filho estavam trabalhando no campo naquele momento. Não quero que eles levem meu filho, ele está na lista deles", afirmou, em lágrimas.

Coleta de dados sobre moradores

As listas representam uma ameaça para a população nos territórios ocupados, afirma Oleksiy Koschel, presidente da Associação de Eleitores da Ucrânia. Os invasores estão criando bases de dados porque, mesmo após seis meses de ocupação, "têm pouca informação sobre quem vive nos territórios ocupados", argumenta.

Segundo Koschel, durante os pseudorreferendos os russos também colheram dados sobre quem era pró-Ucrânia, que idioma falavam e quais homens estavam na idade de alistamento.

A população não apoia os invasores, afirma Koschel, ressaltando que é por isso que a distribuição de passaportes russos e a introdução do rublo nos territórios ocupados fracassaram.

Segundo o presidente da Associação de Eleitores da Ucrânia, os pseudorreferendos foram organizados às pressas e sem pessoal suficiente, o que tornou a votação caótica. Ele diz ainda que os russos recorreram a quaisquer métodos que pudessem inventar para falsificar o resultado.

Cidades vazias

As "votações" ocorreram durante cinco dias. Em apenas três dias, as chamadas "repúblicas populares" de Lugansk e Donetsk relataram uma participação recorde de até 87% – com mais de 1 milhão de votantes.

"Esses números são idiotas e irrealistas, porque a maioria dos moradores já deixou os territórios ocupados há muito tempo", escreveu Serhiy Haidai, chefe da administração militar de Lugansk, em mensagem no Telegram.

Ele observou que os russos chegaram a reivindicar um comparecimento às urnas de quase 50% em cidades que foram destruídas e quase completamente abandonadas no leste da Ucrânia, incluindo Lysychansk, Severodonetsk e Rubizhne.

"Os resultados foram falsificados", afirmou Haidai.

Em Kherson, no sul ucraniano, os invasores tinham a intenção de fornecer à mídia de propaganda imagens da população pró-Rússia indo em massa às urnas, disse uma moradora local que se identificou apenas como Hanna. Mas as coisas não saíram como planejado.

Às 8h da manhã, músicas soviéticas ecoaram, enquanto organizadores e militares russos esperavam pelos eleitores. "Mas nenhum eleitor apareceu, nenhuma fila se formou", conta ela. "Às 10h, eles fecharam os locais de votação e saíram batendo nas portas das casas  – "mas ninguém abriu".

Pacientes foram forçados a votar até na cama do hospitalFoto: AFP/Getty Images

Ali, os russos não conseguiram atrair a população a votar nem com ajuda humanitária. "Os únicos que vieram eram aqueles com mais de 70 anos que desejavam o retorno da União Soviética. Jovens e adultos de meia-idade ignoraram esse circo", afirma Hanna.

Segundo ela, apesar do terror e da perseguição, ainda restam na cidade moradores com mentalidade pró-ucraniana, à espera de serem libertados pelo exército de Kiev.

Uma residente de 82 anos de uma vila perto de Kherson contou que homens armados sugeriram que ela votasse "a favor de se juntar à Rússia". Quando ela recusou, eles disseram: "Vovó, você pode ganhar 10 mil rublos [cerca de 940 reais], incluindo caixas de comida. Você só precisa votar pela Rússia".

Em lágrimas, a ucraniana afirmou que não precisava nem da Rússia nem de esmolas. "Em fevereiro, eles mataram meu neto no campo de batalha."

Eleitores ameaçados

As tropas russas pressionaram e ameaçaram os eleitores durante os pseudorreferendos, garante Yaroslav Yanushevych, chefe da administração militar regional de Kherson. "Colaboradores, acompanhados de invasores armados, estão parando as pessoas nas ruas e usando ameaças para forçá-las a votar", escreveu ele no Telegram.

Em Lugansk, moradores disseram que "seções de votação" improvisadas foram instaladas em quintais de prédios residenciais e na entrada dos mercados. Um ônibus chegava, e uma urna transparente era colocada logo ao lado dele. "Não havia votação secreta, as pessoas marcavam as cédulas de joelhos", diz um residente de Lugansk.

O mesmo morador contou que colaboradores que trabalhavam para os conselhos locais eram obrigados a "votar" várias vezes em locais diferentes. "Disseram-nos que quanto mais vezes a mesma pessoa votar, melhor", afirmou uma mulher que trabalha em uma instituição educacional em Lugansk.

Ela disse ainda que todos os funcionários foram orientados a trazer cópias da carteira de identidade de estudantes que deixaram a cidade, para que pudessem votar no lugar deles. Isso foi fácil porque não havia listas de eleitores preexistentes no local da "votação", afirmou. Qualquer um que se recusasse a participar era ameaçado com cortes salariais ou com a perda total do emprego.

Isolando residentes

Segundo a Associação de Eleitores da Ucrânia e a ONG Opora, os invasores russos somente usaram listas nos pseudorreferendos que incluíam indivíduos que aceitaram voluntariamente ajuda russa, que ainda coletavam suas pensões pessoalmente nos correios, ou que eram empresários que pagavam impostos locais. Eles também usaram listas de eleitores retiradas de arquivos.

A pesidente da Opora, Olga Aivazovska, reiterou que a Rússia organizou uma votação falsa nos territórios ocupados da Ucrânia.

"Não houve expressão de vontade livre e legal", disse ela, acrescentando que o pseudorreferendo sob a mira de uma arma visa chantagear os parceiros ocidentais da Ucrânia.

Segundo Aivazovska, o primeiro a sofrer com o "voto" será o povo nos territórios ocupados – eles serão completamente isolados pela Rússia, sujeitos a uma mobilização total e forçados a aceitar passaportes russos. O terror que eles já estão vivendo só deverá aumentar, prevê ela.

Lilia Rzheutska e Anastasia Shepeleva para a Deutsche Welle,em 29.09.22

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