O ministro da Justiça revive Armando Falcão com Lei de Segurança Nacional contra críticas
Em janeiro de 1970, sendo ministro da Justiça Alfredo Buzaid, o governo militar editou o Decreto-Lei n.º 1.077, estabelecendo a censura, visando a “preservar a moral e os bons costumes”. O obscurantismo cresceu no governo seguinte com Armando Falcão no Ministério da Justiça, quando se montou plano de combate sistemático a publicações “obscenas e subversivas”, propondo aplicar a Lei de Segurança Nacional, pois a censura e a “benigna” Lei de Imprensa seriam insuficientes na guerra psicológica adversa (confira-se: Douglas Atilla Marcelino, Subversivos e Pornográficos: censura de livros e diversões nos anos 1970).
Livros extraordinários foram proibidos e inquéritos policiais-militares, instaurados por crime contra a segurança nacional, como sucedeu com Rose Marie Muraro (A Mulher na Construção do Mundo Futuro), Renato Carvalho Tapajós (Em Câmara Lenta) e Lourenço Diaféria, sendo os últimos até presos.
Em maio de 2018 escrevi nesta página que com Bolsonaro haveria risco da volta da ditadura. Hoje o ministro da Justiça revive Armando Falcão, aplicando a Lei de Segurança Nacional a críticas jornalísticas.
Em parecer conjunto ofertado ao Conselho Federal da OAB, Alexandre Wunderlich e eu analisamos a origem e o significado do conceito de segurança nacional, como próprio de regime autoritário, razão por que deve haver nova lei de defesa do Estado. Segurança nacional vinha a ser uma estratégia para garantia da consecução dos “objetivos nacionais permanentes”, visando, primordialmente, a assegurar a mantença do regime militar por via da contenção de qualquer efetiva oposição nos campos político, econômico, psicossocial e militar, reprimindo opiniões, emoções e atitudes contrárias ao sistema vigente.
A Lei de Segurança Nacional hoje em vigor, editada em 1983, guarda graves resquícios autoritários, bastando lembrar que os artigos 16 e 17 admitem ser a lei apropriada para tutela do regime excepcional vigente.
Numa democracia, a crítica ao presidente não se inclui como lesão ao Estado de Direito, pois não abala a estrutura do sistema democrático, inserindo-se no campo da liberdade de expressão como questão de interesse público. Essa teleologia não corresponde à postura do ministro da Justiça ao representar para enquadramento de crítica como crime contra a segurança nacional ou crime comum.
Hélio Schwartsman, em artigo na Folha de S.Paulo (Por que torço para que Bolsonaro morra), pondera que o presidente, em seu negacionismo, prejudica a vida de muitos, argumentando que, sob a ótica do consequencialismo, o sacrifício de indivíduo pode ser válido, se dele advier um bem maior. O ministro da Justiça viu nesse texto, cujo título é de mau gosto, crime contra a segurança nacional onde há mera avaliação crítica, longe de causar qualquer abalo à estrutura democrática.
Foi, aliás, nesse sentido a decisão do ministro Mussi, do STJ, ao apreciar habeas corpus: “Não é possível verificar, em análise preliminar, que tenha havido motivação política ou lesão real ou potencial aos bens protegidos pela Lei de Segurança Nacional, capaz de justificar o eventual enquadramento de Schwartsman”.
Sem aprender a lição, o ministro de Justiça requisitou inquérito contra o advogado Marcelo Feller em vista de opinião exarada em debate na televisão sobre a frase do ministro Gilmar Mendes de estar o Exército se associando, na pandemia, a um genocídio. Para o advogado, “o discurso e a postura do presidente da República são diretamente responsáveis por pelo menos 10% dos casos de covid no Brasil”. É, alias, o entendimento de muitos infectologistas.
O procurador federal João Gabriel Morais de Queiroz solicitou o arquivamento do inquérito, com judiciosas considerações: “A lei de segurança não pode ser empregada para constranger ou perseguir pessoa que se oponha licitamente externando opiniões desfavoráveis ao governo (...) a lei de segurança nacional, como instrumento de defesa do estado, deve ser reservada para casos extremos(...)”. A Justiça Federal arquivou o inquérito.
Mas o incansável ministro da Justiça requisitou inquérito policial agora pelo crime de induzimento ao suicídio contra os jornalistas Ruy Castro e Ricardo Noblat, que replicara artigo de Ruy no qual se aventava ser o suicídio a forma de o presidente Trump entrar para a História como herói, tal como Getúlio Vargas, argumentando que “se Trump optar pelo suicídio, Bolsonaro deveria imitá-lo”.
O ministro viu nessa frase “desrespeito à pessoa humana, à nação e ao povo de ambos os países”. E mais: um crime de induzimento ao suicídio, que vem a ser criar na mente da vítima a vontade firme de se aniquilar, atuando no plano psíquico com potencialidade para a levar ao suicídio.
A requisição de inquérito por crime de induzimento ao suicídio, em vista de ideias jocosas em artigo de jornal, seria apenas de um ridículo atroz se não consistisse em abuso de poder do ministro da Justiça, por perseguir criminalmente críticos do governo com tipificação penal forçada de fato absolutamente anódino.
Até quando?
Miguel Reale Júnior, Advogado, é Professor Titular Sênior da Faculdade de Direito da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 06.02.2021.
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