Existem 56 pedidos de impeachment de Jair Bolsonaro. O País não pode ficar refém de alguém que despreza a vida da população.
Em geral, grandes adversidades oferecem aos governantes a oportunidade de exercer uma liderança que, em tempos normais, dificilmente ocorreria. Não é preciso realizar feitos extraordinários. Muitas vezes um comportamento mediano é capaz de assegurar, numa grande crise, novo patamar de reconhecimento a muitos governantes. Jair Bolsonaro, no entanto, conseguiu o exato oposto.
Em vez de representar uma oportunidade de aplainar resistências e consolidar uma natural liderança – afinal, vigora no País o regime presidencialista –, a pandemia do novo coronavírus significou, para Jair Bolsonaro, uma multiplicação do número de pedidos de impeachment.
Desde 2019, 61 denúncias contra Jair Bolsonaro a respeito de crimes de responsabilidade foram protocoladas na Câmara dos Deputados. Desse total, 54 foram apresentadas depois de março de 2020, quando começou a pandemia no País.
No futuro, historiadores vão querer estudar e entender como o presidente Jair Bolsonaro realizou esse feito. O fato é que ele conseguiu. No meio de uma pandemia, com inúmeras preocupações e desafios a serem enfrentados, cidadãos das mais diversas orientações políticas e ideológicas, bem como partidos e entidades, viram-se na obrigação de denunciar o presidente da República por crime de responsabilidade.
Em tese, o impeachment deveria ser a última coisa a se pensar numa pandemia. Com um vírus mortal circulando pela sociedade, a causar morte e sofrimento e a exigir sérias restrições da atividade social e econômica, não se deveria cogitar de afastar do cargo o presidente da República. Esse raciocínio foi, no entanto, inteiramente invalidado pela conduta de Jair Bolsonaro. Suas ações e omissões na pandemia impuseram à Nação uma nova preocupação, dentro de um quadro que já era bastante desafiador.
Não se diga que essa reação foi apenas nos primeiros meses da pandemia, nos quais poderia haver alguma perplexidade do poder público perante um fenômeno completamente novo. Mesmo agora, com protocolos bem consolidados pela comunidade internacional e vacinas contra a covid-19 aprovadas, o presidente Jair Bolsonaro continua se mostrando completamente incapaz de lidar responsavelmente com a crise sanitária.
A reiterada conduta de Jair Bolsonaro motivou, por exemplo, a apresentação por cinco partidos da oposição (PT, PDT, PSB, Rede e PCdoB) de uma nova denúncia coletiva, baseada, entre outros pontos, na morte por falta de oxigênio de pacientes no Amazonas e no Pará.
Esse excepcional conjunto de pedidos de impeachment durante a pandemia não pode ser ignorado. Entre outras coisas, manifesta que o sistema de controle amplo dos crimes de responsabilidade, previsto no Direito brasileiro, está funcionando. Segundo a Lei 1.079/1950, qualquer cidadão pode denunciar o presidente da República ou ministro de Estado por crime de responsabilidade perante a Câmara dos Deputados.
Segundo o Estado apurou, dos 61 pedidos de impeachment apresentados desde janeiro de 2019, apenas 5 foram arquivados, por descumprimento de requisitos formais, como a falta de assinaturas. Existem, assim, 56 pedidos sobre a mesa do presidente da Câmara dos Deputados, a quem compete verificar o preenchimento dos requisitos legais e, se for o caso, submetê-los à apreciação de comissão especial, composta por representantes de todos os partidos. O caráter especial dos tempos atuais – apesar do início da vacinação, o País ainda está distante de vencer a pandemia – não deve significar a inviabilidade, por princípio, de qualquer pedido de impeachment.
A maioria das denúncias contra o presidente da República por crime de responsabilidade ocorreu precisamente em função de sua conduta no enfrentamento da crise sanitária. Depois de quase um ano de pandemia, Jair Bolsonaro deu mostras mais que suficientes de que não vai mudar. O Direito e a Política dispõem de instrumentos para sanar essas situações. Que o presidente da Câmara não tenha receio de usá-los. O País não pode ficar refém de alguém que despreza não apenas a Constituição, mas a vida e a saúde de sua população.
Editorial / Notas & Informações, O Estado de São Paulo, em 22 de janeiro de 2021
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