Se o líder pensa com os intestinos e não domina ódios pessoais, perde acatamento político. Leia aqui o artigo de Roberto Romano publicado no Estadão hoje.
Das cenas grotescas protagonizadas pelo presidente Jair Bolsonaro, a que foi exibida no último dia 27 de janeiro é das mais repulsivas. Cercado por tietes, ele exibiu todo o ódio à imprensa. A causa do destempero encontra-se na denúncia sobre os estranhos gastos do Executivo federal com alimentos. Um estadista responderia com números e documentos. Mas, ao proferir, sorrindo, vocábulos pornográficos, o governante recebeu ovações de arruaceiros e chaleiras. Tal vitupério exige processo judicial por indecente uso do cargo. Frases que no pior bordel são evitadas, nos lábios de um presidente causam asco.
O “mito” não entenderá a citação abaixo, pois sua força cognitiva é pequena. Mas entre ministros, políticos que a ele se aliam e antigos apoiadores talvez exista algum saber. A eles me dirijo. Ao discutir a governabilidade, diz Spinoza: “A república não pode fazer com que os homens (...) respeitem o que gera riso ou náusea. (...) Para garantir o poder é preciso guardar as causas do medo e do respeito, caso oposto não há mais um Estado. É impossível para os que operam o mando político (...) bancar o palhaço, violar ou desprezar abertamente as leis por eles mesmos estabelecidas, pois assim eles perdem a majestade e mudam o medo em indignação e o estado civil em estado de guerra” (Tratado Político). Tais enunciados vêm de Maquiavel, pensador das práticas que permitem manter o poderio civil.
Repito: o presidente nada compreende de semelhantes teses. Mas quem negou sua utilidade perdeu cargos, para não mencionar a cabeça. Assim foi com Carlos I da Inglaterra e Luís XVI na França. Sempre chega a vez de quem imagina a si mesmo como impune e infenso às leis.
O decoro na fala e na postura corporal integra toda autoridade política, jurídica, religiosa, militar. Menciono outro escrito que certamente não será compreendido pelo sr. Jair Bolsonaro e seus marombeiros. Trata-se de Hannah Arendt: “Se for preciso verdadeiramente definir a autoridade, deve-se fazê-lo opondo-a ao mesmo tempo ao constrangimento pela força e à persuasão por argumentos”. No setor público ou privado cada um reconhece a superior hierarquia de quem ostenta autoridade. Não é pelo vezo de prender ou censurar, perseguir ou caluniar aos berros os oponentes que alguém consegue respeito público.
Dito de outro modo: se você precisa gritar para que lhe obedeçam, sua autoridade não existe. Inteligência, decoro, respeito à hierarquia, autoridade: um estadista pode receber da vida doses desiguais desses elementos. Ele compensa a fraqueza de um com a força de outro. Mas o dirigente que enxovalha o seu cargo não tem autoridade, só lhe cabe o título atribuído por Spinoza: palhaço.
Todo clown possui dupla face: a risível e a trágica. A primeira é exibida a cada novo dia pelo sr. Jair Bolsonaro. A trágica surge em decisões imprudentes e impudentes durante a pandemia. Tantas sandices comete o “mito” – e aí vai um alerta aos militares responsáveis pela força física estatal – que podemos temer: a indignação diante do descalabro pode “mudar o estado civil em estado de guerra”.
Aliás, são hábitos do líder a mão armada e o incentivo aos instrumentos da morte que impulsionam fraturas civis. Junto vem o boicote pérfido a vacinas como a Coronavac – esperanças de vida – por mesquinhos alvos políticos. A teoria infame de Carl Schmitt é praticada por ele: a política como forma de gerar o inimigo. E assim são corroídos os elos que garantem a união interna do Estado.
Recordo o dito usado por João de Salisbury (Policraticus) sobre governantes desprovidos de saber. Rex illiteratus quasi asinus coronatus est (um rei iletrado é quase um asno coroado). Para governar urge mover conceitos políticos, militares, filosóficos, jurídicos e outros. A edificação do Estado moderno se norteia pelo preparo do governante. Erasmo publicou um tratado sobre o tema, Institutio Principis Christiani. Ele cita Salisbury: “Liberdade real e virtude só podem ser obtidas onde existe a liberdade de palavra. O bom príncipe do bom Estado deve aceitar pacientemente as palavras livres, quaisquer que elas sejam”. Os turpilóquios de Bolsonaro contra a imprensa ameaçam o verbo independente. Erasmo adverte contra os aduladores. Na educação do príncipe o cavalo ensina a governar, pois não aceita violência e recusa imperícia ou lisonja. O sáfaro que ignora tais peculiaridades equinas vai ao chão. Aduladores, como os do espetáculo obsceno indicado no início deste artigo, lambem botas do poderoso ocasional. Se ele perde força, as línguas de aluguel procuram outra fonte de poder.
Gabriel Naudé, autor das Considerações Políticas Sobre os Golpes de Estado (1640), louva o saber do governante e recorda o dito de Luís XI: “Quem não sabe dissimular não sabe governar”. Se o líder pensa com os intestinos, em vez do cérebro, e não domina ódios pessoais, perde acatamento político.
Os destemperos de Jair Bolsonaro evidenciam carência de autoridade, decoro, saber. Ele quer os poderes do Legislativo e do Judiciário. O lugar que lhe cabe, no entanto, não é no palácio, mas na arena ou picadeiro.
Roberto Romano é Professor na UNICAMP e autor de "Razões de Estado e Outros Estados da Razão" (Editora Perspectiva). Publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 31.01.2021.
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