sábado, 23 de janeiro de 2021

O custo de ser pária

A permanência de Jair Bolsonaro na Presidência inviabiliza a recuperação da imagem do País e a retomada dos contatos produtivos e pacíficos com todas as nações.

O constrangedor isolamento do Brasil entre as nações civilizadas, resultado de uma política externa amalucada e irresponsável, deveria ser motivo mais que suficiente para que o chanceler Ernesto Araújo fosse demitido sem mais delongas. A pressão para que isso ocorra, aliás, nunca esteve tão forte. 

Parece estar se constituindo um consenso, inclusive em alguns setores do próprio governo, que a manutenção do sr. Araújo à frente do Itamaraty representa enorme risco para a imagem do Brasil, já tão desgastada, e justamente no momento em que o País, mergulhado numa pandemia mortal e numa crise econômica desafiadora, mais precisa da cooperação internacional.

A questão é que a demissão do sr. Araújo não resolveria nada, pois o problema não é o chanceler, mas o chefe dele. É a permanência do sr. Jair Bolsonaro na Presidência que inviabiliza a recuperação da imagem do País e a retomada dos contatos produtivos e pacíficos com todas as nações, que sempre foi a marca da diplomacia do Brasil.

É claro que o sr. Araújo é o responsável direto pela formulação da estapafúrdia doutrina externa bolsonarista e deve ter seu nome marcado na história, em letras maiúsculas, como o chanceler que se empenhou em destruir o legado do Barão do Rio Branco. Deve ser lembrado para sempre como aquele que conduziu a diplomacia nacional sob inspiração de um obscuro ex-astrólogo que vive nos Estados Unidos, espécie de guru de Bolsonaro et caterva.

Mas Ernesto Araújo não age por conta própria. É apenas o sabujo encarregado de colocar em palavras a mixórdia reacionária que resume a “visão de mundo” de Bolsonaro, o que, convenhamos, não é para qualquer um. 

Enquanto o Barão do Rio Branco, ciente das fragilidades brasileiras, fez do Brasil um país naturalmente voltado para o entendimento no concerto das nações, Bolsonaro escolheu comprar brigas gratuitas com algumas das maiores potências do planeta, para enfatizar a independência do País sob seu comando. Ao mesmo tempo, derretia-se de amores por Donald Trump quando este ocupava a presidência dos Estados Unidos, enquanto o resto do mundo civilizado, ciente do caráter daninho de Trump, tratava de se afastar dele. 

Em vez de independência, a doutrina bolsonarista isolou completamente o Brasil. Mas o sr. Araújo não se fez de rogado: anunciou que, se este era o preço a pagar por defender a “liberdade”, ou seja, “se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária”.

Perfeitamente alinhado a seu chefe, o ainda chanceler teve o descaramento de chamar de “cidadãos de bem” os terroristas que invadiram o Congresso dos Estados Unidos para interromper a confirmação da eleição de Joe Biden como presidente. Adicionando o insulto à injúria, Ernesto Araújo aproveitou para corroborar a tese golpista promovida pelo trumpismo de que houve fraude nas eleições, mentira que o presidente Bolsonaro repetiu vezes sem conta.

Se o chanceler for demitido, portanto, não será por ter descumprido ordens ou por ter sido desleal, mas sim, ao contrário, porque foi absolutamente fiel a Bolsonaro – e, por isso, criou grandes e gravíssimos problemas para o Brasil, hoje visto com reticências pelas duas grandes potências globais, Estados Unidos e China, além de enfrentar má vontade na União Europeia e na Índia. É uma façanha.

O afastamento de Araújo pode ser o gesto que o mundo espera de Bolsonaro para mudar um pouco a percepção negativa sobre o Brasil. Mas seria ingênuo acreditar que seu eventual substituto terá atuação muito diferente. 

Pode haver algum pragmatismo nos próximos tempos, especialmente depois que Donald Trump, ídolo de Bolsonaro e Araújo, deixou a Casa Branca. Um sinal disso é a carta que o presidente brasileiro endereçou a Joe Biden, novo presidente norte-americano, pregando uma boa relação. 

Mas todos sabem que a tal carta não vale o papel em que foi escrita: Bolsonaro menospreza profundamente tudo o que Biden representa – democracia, diálogo e serenidade – e nada o fará mudar de ideia. O chanceler, portanto, pode ser qualquer um – é Bolsonaro quem deliberadamente faz do Brasil um “orgulhoso pária”.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de São Paulo, em 23 de janeiro de 2021 

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