Em um discurso que buscou defender a união, Biden acertou ao dizer que a democracia prevaleceu. Mas por pouco. O sistema democrático dos EUA correu enorme risco nos últimos dois meses.
Um derrotado não aceitou a vitória do adversário e mentiu ao inventar fraudes inexistentes. Dezenas de deputados republicanos, bajuladores do agora ex-presidente, insistiram nesses ataques à democracia ao se recusarem a reconhecer a vitória do democrata.
Soldados da Guarda Nacional se posicionam em frente ao Capitólio durante posse do presidente dos EUA, Joe BidenSoldados da Guarda Nacional se posicionam em frente ao Capitólio durante posse do presidente dos EUA, Joe Biden | Stephanie Keith /AFP
Apenas duas semanas atrás, vândalos supremacistas e fascistas invadiram o Capitólio em uma insurreição contra o Congresso dos EUA após serem incitados pelo então presidente, agora ex, Donald Trump. Candidato derrotado nas eleições e um mentiroso compulsivo, o republicano sofreu um impeachment na Câmara dos Deputados pelo seu ato na semana passada e pode ser condenado no Senado. Insisto: todos estes acontecimentos ocorreram nas duas últimas semanas. Pense na velocidade e na anormalidade dos acontecimentos.
Diante deste cenário hostil à democracia americana, houve uma cerimônia de posse de um presidente dos EUA ontem em uma Washington tomada por militares para evitar novas ações violentas de grupos extremistas de viés trumpista, como Three Percenters, Proud Boys, Oath Keepers e Boogaloo. Para completar, Trump se recusou de forma repugnante a participar da solenidade de juramento de Joe Biden, eleito presidente dos EUA democraticamente com mais de 80 milhões de votos.
Em um discurso que buscou defender a união, Biden acertou ao dizer que a democracia prevaleceu. Mas por pouco. O sistema democrático dos EUA correu enorme risco nos últimos dois meses. Um derrotado não aceitou a vitória do adversário e mentiu ao inventar fraudes inexistentes. Dezenas de deputados republicanos, bajuladores do agora ex-presidente, insistiram nesses ataques à democracia ao se recusarem a reconhecer a vitória do democrata.
Pense em como este cenário é surreal. É uma distopia. Seria impensável anos atrás, antes de Trump assumir. Todos estávamos acostumados à normalidade das posses americanas com Clinton, Bush, Obama. Um exemplo de democracia, com um presidente entregando ao poder ao outro ao longo de décadas. Com o hino nacional entoado, o juramento com a Bíblia, seguido de um discurso a centenas de milhares de pessoas. Desta vez, não estava presente o incumbente, que de forma infantil viajou para a Flórida. Simbolicamente, fez falta. Na prática, deixou a cerimônia mais leve.
Além deste momento delicado da democracia americana, amenizado em parte pela presença de alguns integrantes do Partido Republicano, observamos uma cerimônia de posse na qual todos os participantes vestiam máscaras para se protegerem do coronavírus. Será esta a imagem que jamais esqueceremos nas próximas décadas. Biden assumiu a Presidência um dia depois de os EUA ultrapassarem a marca de 400 mil mortos pela pandemia de Covid19. Nunca, mas nunca imaginaríamos um momento tão dramático como este não apenas nos EUA como em todo o planeta. Tínhamos de ver o sorriso da Kamala Harris pelo brilho de seus olhos.
Aliás, Kamala é outro marco histórico. Por 45 vezes, dois homens tomaram posse como presidente e vice dos EUA. Foram 90, ao todo. Destes, 89 brancos, dos quais 87 protestantes e um católico (o segundo é Biden). Apenas um negro, Barack Obama. Ontem, os EUA finalmente e tardiamente viram uma mulher, negra de origem jamaicana e indiana, ocupar a Vice-Presidência. Ao longo de toda a história, pensem nisso, nunca uma pessoa do sexo feminino tomou posse na chapa presidencial. Quem sabe, um dia, vejamos uma mulher na Casa Branca como presidente.
Vamos torcer para Biden conseguir atingir seu objetivo de unir o país. Não será fácil, com milhões de americanos contaminados pelas mentiras propagadas pro Trump. O importante agora é combater a pandemia e tentar reconstruir a economia americana.
Guga Chacra, Jornalista, é correspondente da GloboNews em New York (USA). Este artigo foi publicado originalmente n'O GLOBO, em 21.01.2021.
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