Documento obtido pelo ‘Estadão’ mostra que Planalto privilegiou parlamentares influentes ao liberar R$ 3 bi em recursos; entre eles estão Davi Alcolumbre, Ciro Nogueira e até políticos sem mandato, como ex-ministro Gilberto Kassab
O governo do presidente Jair Bolsonaro inovou na prática de trocar verbas por votos no Congresso. Enquanto seus antecessores direcionavam seus esforços para cooptar o chamado baixo clero, grupo de parlamentares sem influência nas decisões da casas legislativas, mas que votam da mesma forma, o atual governo privilegiou caciques na Câmara e no Senado, empoderando ainda mais esses políticos. É o que mostra uma planilha de controle de recursos do Ministério do Desenvolvimento Regional, revelada nesta quinta-feira, 28, pelo Estadão, que beneficiou 285 congressistas com R$ 3 bilhões de dinheiro extra, além dos recursos que eles já têm direito a direcionar por meio de emendas.
Até mesmo quem não tem mandato, como o presidente nacional do PSD, Gilberto Kassab, pode indicar valores para obras. Um dos nomes fortes do Centrão, Kassab se tornou um conselheiro de Bolsonaro, mesmo sendo próximo do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), arqui-inimigo do mandatário.
O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) é quem recebeu a maior fatia do dinheiro “extra” destinado a redutos eleitorais por indicação política. No comando da Congresso, Alcolumbre se tornou um fiel escudeiro do presidente e evitou que o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho de Bolsonaro, fosse alvo do Conselho de Ética por seu envolvimento em um suposto esquema de rachadinha quando era deputado estadual no Rio.
A divisão da bolada tem sido negociada pelo ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, e acontece em meio à tentativa do Palácio do Planalto de eleger aliados no comando da Câmara e do Senado. A planilha, informal e sem timbre, inclui repasses de recursos do Orçamento que não são rastreáveis por mecanismos públicos de transparência, que vão além daqueles que os congressistas têm direito via emendas parlamentares. A “caixinha” paralela das obras do Ministério do Desenvolvimento Regional soma R$ 3 bilhões e, de acordo com a planilha, embora atenda a indicações de 285 parlamentares, há uma concentração de R$ 1,77 bilhão apenas entre dez senadores e quinze deputados.
O presidente do Senado, Davi Alcolumbre; parlamentar é quem recebeu a maior fatia do dinheiro ‘extra’ destinado a redutos eleitorais por indicação política Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado
Na condição de líder do Progressistas, o deputado Arthur Lira (AL), candidato de Bolsonaro ao comando da Câmara, aparece como tendo indicado R$ 109,6 milhões para obras em São Paulo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Paraná, fora outros R$ 5 milhões indicados individualmente. O grosso do montante, R$ 70 milhões, foi para a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do Rios São Francisco e Parnaíba (Codevasf), e outros R$ 30 milhões para o Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs), por meio de Termos de Execução Descentralizada, sem especificar quais Estados ou municípios devem ser atendidos. Lira tem apadrinhado indicados nesses dois órgãos.
No topo da lista, Alcolumbre teve aprovadas 44 indicações de repasses do governo federal em valores que totalizam R$ 329 milhões, considerando apenas as verbas extras do Ministério do Desenvolvimento Regional. Numa comparação, o montante supera, com folga, os R$ 289 milhões que o governo reservou para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos na proposta orçamentária de 2021.
O governo também destinou cifras elevadas por indicação do presidente nacional do Progressistas e líder do partido no Senado, Ciro Nogueira (PI), num total de R$ 135 milhões; do líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), R$ 125 milhões, e do relator do Orçamento no ano passado, deputado Domingos Neto (PSD-CE), R$ 170 milhões.
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Presidente do PSD, Kassab pôde direcionar R$ 25 milhões para três obras. Uma parte desse valor (R$ 10 milhões) aparece na lista como tendo sido indicada por ele em conjunto com Domingos Neto. O dirigente da sigla consta na planilha a que o Estadão teve acesso como “deputado”, cargo que não ocupa mais desde 2005, quando se tornou vice-prefeito e depois prefeito de São Paulo. Ele e parlamentares do PSD destinaram ao todo R$ 608 milhões da “caixinha”. O partido de Kassab conquistou um ministério no ano passado, quando o deputado Fábio Faria (PSD-RN) assumiu o Ministério das Comunicações, recriado por Bolsonaro para atender ao partido.
Nesta sexta-feira, o presidente indicou que pode aumentar o número de pastas na Esplanada dos Ministérios para distribuir a aliados caso seus candidatos vençam a disputa no Congresso. “Se tiver o clima no Parlamento, ao que tudo indica as duas pessoas que nós temos simpatia devem se eleger, não vamos ter mais uma pauta travada. A gente pode levar muita coisa avante e quem sabe até ressurgir ministérios”, disse, em referência a Lira e ao senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que disputa o comando do Senado com o apoio do Planalto.
Prêmio
Na planilha informal de controle de verbas para obras do Ministério do Desenvolvimento Regional revelada pelo Estadão, a liberação de dinheiro oriundo de créditos extras é identificada, em cada empenho, com a digital de cada parlamentar: o seu próprio nome. São espécies de “caixinhas” reservadas antecipadamente para os líderes de partidos e suas bancadas. Como não se trata de emenda, apenas o governo tem a informação de qual parlamentar apadrinhou o recurso. Dessa forma, não é possível identificar a digital de quem direcionou a verba caso haja algum esquema de corrupção envolvendo a obra contemplada.
Nesse sistema, até parlamentares que não têm proximidade com o governo federal foram beneficiados após encontrarem um “fiador”. E o maior deles é o presidente do Senado. Das verbas cujo destino ele pôde apontar, oito transferências, com valores somados de R$ 51,6 milhões, são listadas como de Alcolumbre ao lado de algum senador de oposição — na lista, encontram-se Humberto Costa (PT-PE), R$ 12 milhões, Rogério Carvalho (PT-SE), R$ 17 milhões, Weverton Rocha (PDT-MA), R$ 10 milhões, e Acir Gurgaz (PDT-RO), R$ 12,6 milhões. O Estadão apurou que o valor corresponde a um acerto do próprio Alcolumbre com lideranças do Senado feito no meio de 2020.
Mesmo na oposição a Bolsonaro, tanto o PT quanto o PDT anunciaram apoio a Pacheco na disputa pelo Senado, o que frustrou os planos de Simone Tebet (MDB-MS). A senadora tinha a esperança de atrair partidos de esquerda para derrotar o candidato do Palácio do Planalto.
Rodrigo Pacheco (DEM), Simone Tebet (MDB), Major Olímpio (PSL) e Jorge Kajuru (Cidadania) são os candidatos à presidência da Casa.
A decisão do governo em selar uma aliança com as lideranças do Centrão foi tomada em abril do ano passado, quando Bolsonaro passou a ser alvo de inquéritos por participar de atos antidemocráticos e por possível interferência na Polícia Federal. Além do cerco ao seu filho e senador Flavio (Republicanos-RJ), acusado de participar de “rachadinhas”, e pela gestão no controle da pandemia da covid-19.
Responsável pela articulação política do governo com o Congresso, o ministro Luiz Eduardo Ramos disse que as planilhas reveladas pelo Estadão não são da Secretaria de Governo. “Não está havendo nenhuma conversa relativa a negociação de voto. Seria até ofensivo, de minha parte, negociar voto em troca de cargos e emendas”, afirmou o ministro.
Para Bruno Brandão, diretor da Transparência Internacional – Brasil, a negociação com o Congresso é aceitável, mas não nos termos que o governo Bolsonaro impôs. “Aqui, nesta história, tudo é revelador da negociata. A começar pela moeda de troca, verbas não rastreáveis que ocultam as digitais do parlamentar, mas que vão irrigar prefeituras aliadas em troca de apoio e, muitas vezes, corrupção”, observou. “Depois o que se oferece do outro lado: o voto em um dos políticos mais ficha suja do Congresso para presidir a Câmara.”
Líder do governo admite que recursos ‘sensibilizam’ parlamentares
O líder do governo no Congresso, senador Eduardo Gomes (MDB-TO), admite que a liberação de verbas é um atrativo para sensibilizar parlamentares a apoiar o governo. “Tem uma sensibilização porque, se o parlamentar tem mais acesso, acaba sendo atendido. É evidente que, quando o governo tem essa sintonia e trabalha com municípios e estados, tem uma tendência de que fique com o governo. Isso sempre foi assim mesmo em outros governos”, disse o senador.
O líder do governo no Congresso, senador Eduardo Gomes (MDB-TO) Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado
Gomes aparece na lista como destinatário de três repasses totalizando R$ 85 milhões para o Tocantins via Codevasf. “Boa parte de recursos é para comprar equipamentos para os 139 municípios, atendendo aos interesses dos municípios”, afirmou.
Questionado sobre a falta de transparência quanto à autoria da indicação para os repasses, o líder do governo disse que é possível obter essas informações olhando as notícias e as postagens nas redes sociais nos municípios sobre a liberação de recurso federal. No entanto, ele reconheceu que seria conveniente “uma dinâmica mais clara” na divulgação.
Dos repasses para deputados, o PL foi o partido que abocanhou mais recursos — R$ 321 milhões ao todo. Um dos maiores recebedores na sigla, João Carlos Bacelar (BA) conseguiu R$ 70 milhões. Em entrevista ao Estadão, o deputado disse que desconhece a planilha, mas reconhece ter buscado o governo para a liberação dos recursos. “Sem falsa modéstia, R$ 70 milhões, para um estado gigantesco como a Bahia, é pouco. E uma obra grande, custa grana, custa dinheiro. E não vai ser a iniciativa privada, não vai ser Paulo Guedes (ministro da Economia) e esse neoliberalismo que vai investir dinheiro no Nordeste, não”, disse Bacelar.
O deputado deixou claro que a liberação de recursos da União acontece somente após negociações com o Palácio do Planalto. E exemplificou o “balcão de negócios” dizendo que chegou a procurar a Secretaria de Defesa Civil, do Ministério do Desenvolvimento Regional, na busca de recursos contra a seca. “O secretário me disse que o recurso ‘aqui’ é zero. Então perguntei: ‘para que serve a secretaria?’ Ele me disse aqui ‘só tem recurso se vier (com indicação) do Palácio.”
Do mesmo partido de Bacelar, Altineu Cortês (PL-RJ), conseguiu R$ 35 milhões do orçamento para destinar ao seu reduto eleitoral, os municípios de Itaboraí e São Gonçalo, no Rio de Janeiro. O deputado se mostrou surpreso, no entanto, ao saber que uma planilha do governo atrelava o nome dele a esses empenhos - que, conforme determina a legislação, devem ser feitos por critérios técnicos e, não, políticos. “Quero deixar claro que na minha cabeça não tem nada vinculado ao meu nome. Não tinha conhecimento da planilha. Eu sou o deputado ali das duas cidades. Não tem relação com a eleição na Câmara. Todo mundo do PL já vota no Arthur, somos do mesmo time, desde o início, para ganhar ou para perder”, afirmou.
O senador Nelsinho Trad (PSD-MS), cujo nome aparece na planilha ao lado de dois repasses em valores somados de R$ 59,8 milhões, para ações da Superintendência de Desenvolvimento do Centro Oeste (Sudeco) no Mato Grosso do Sul, disse que sequer tratou desses repasses com o governo. A equipe técnica do senador é que teria percebido a abertura de créditos e feito a inscrição de projetos. “Não teve nenhuma conversa política sobre esses repasses. É o preenchimento de um formulário online. Se eles liberaram é porque o projeto é bom”, disse.
Em nota, Kassab disse, por meio de sua assessoria que as bancadas do partido têm autonomia para a discussão junto ao governo federal de projetos prioritários nos estados. Ele não respondeu sobre o dinheiro atrelado ao seu nome na lista de contemplados.
Todos os demais citados na reportagem foram procurados pela reportagem, mas não se manifestaram até a publicação deste texto.
Breno Pires e Patrik Camporez, O Estado de São Paulo, em 29.01.2021, atualizado às 19h17
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