Bolsonaro trabalha para afeiçoar o governo e a cultura cívica do País a suas ideias autoritárias
Há já nove sofridos meses o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril de 2020 irrompeu na cena política como se despejaram sobre Mariana os 62 milhões de m3 de rejeitos da barragem do Fundão. Por certo, o efeito tóxico de palavras e imagens divulgadas não escorreu sobre o Brasil do mesmo modo, não teve a massa física descomunal da lama da Samarco. Mas seu impacto destrutivo sobre a confiança, os valores e ideais que sustentam as instituições democráticas não foi menor. Crenças, compromissos, padrões de civilidade, respeito à lei, às opiniões e ideais divergentes, à saúde e à paz não se medem em metros cúbicos. Mas essa dimensão ideal da vida em comum tem seu modo próprio de ser densa.
A restauração da democracia custou-nos mais e foi mais lenta que a mineração do ferro. Levou-nos um quarto de século para restabelecê-la e já mais de 30 anos em que, em meio a percalços e decepções tristes, vimos mantendo o curso da nossa um tanto desengonçada, mas resiliente democracia.
Já ali a enxurrada de palavrões do presidente para atacar governadores e prefeitos violava a “dignidade, à honra e ao decoro do cargo”, para usar expressões da lei dos crimes de responsabilidade (Lei 1.079/1950). Mas naquela reunião houve algo muito mais grave, o anúncio do presidente de que iria armar o povo, o que vem fazendo continuamente com a liberação da compra de armas em paralelo a um constante esforço de sedução política e emocional das Polícias Militares e de incorporação de inédito contingente de militares na administração civil. Como entendê-lo?
Estará o Brasil sendo invadido por potência estrangeira? As instituições democráticas estão sendo subvertidas por movimentos terroristas ou insurrecionais? Há iniciativas separatistas a pôr em risco a unidade nacional? Nossas Forças Armadas estão desunidas?
A óbvia impossibilidade de responder sim a qualquer dessas perguntas faz pensar que a intenção revelada na intimidade do governo tinha outra lógica: ou era ameaça “de mudar por violência a forma de governo da República” ou um caso de delírio paranoico estruturado. Felizmente, até agora essas intenções subversivas não se materializaram, pois o Judiciário, o Congresso, os grandes órgãos de formação da opinião, não obstante ameaças veladas ou explícitas, como a recente declaração de que são as Forças Armadas que decidem sobre manter ou não a democracia, têm conseguido sustentar nosso compromisso constitucional com as instituições da democracia representativa, prevenindo a ação de grupos de assalto direitistas, como se viu recentemente nos EUA.
Todavia, como se isso já não fosse demais, desde então, embora não mais se tenha tido acesso ao que se passa nas conciliábulos do poder, não têm sido menos ostensivos nem menos graves os desserviços de Bolsonaro aos interesses permanentes do País. Na verdade, desde então, sem arrependimentos, não deixou ele de trabalhar, incansável e astutamente, para afeiçoar o governo e a cultura cívica do País a suas convicções reacionárias e autoritárias. Para desfigurá-las, se possível por dentro, mas pronto para pô-las abaixo, se bloqueada essa via. As formas de fazê-lo e as frentes de ação foram muitas e não há como resenhá-las aqui. Mas é preciso destacar ao menos três dessas linhas de desatino continuado.
A primeira é a da hiperideologizada e errática política externa, cujos malfeitos vão do rebaixamento da dignidade da Presidência da República do Brasil contida na subserviente e ridícula declaração de amor a Trump, num encontro da ONU, aos patéticos volta-faces das declarações, oficiosas e oficiais, sobre a China, o maior parceiro comercial do Brasil.
A segunda, a incompetência manifesta no trato das complexas e resvaladias questões da política ambiental, cujos danos ao meio ambiente e à imagem internacional do Brasil são de enorme gravidade.
Mas o mais grave desses danos está na violação flagrante do dever solene assumido pelo presidente quando, ao tomar posse, jurou promover o bem geral do povo brasileiro. Ou não viola desgraçadamente esse juramento o desprezo com que Bolsonaro trata a pandemia?
A indiferença aos doentes, aos que não doentes temem a doença, aos que não a temem, mas adotam as sofridas condutas de isolamento social em solidariedade ao próximo, os efeitos de seus incontáveis exemplos de deseducação sanitária e humanista não são prova de que o presidente maltrata o povo brasileiro? Demitir dois sérios ministros da Saúde em meio à gravíssima crise de saúde pública, dizer que a proteção dos vulneráveis é encargo das famílias, não do Estado, ter tido a mais incompetente e perigosa das negociações sobre as vacinas, isso não é admitir que tudo o que têm feito os serviços de saúde em nossa defesa o foi à sua revelia? Quando a covid-19 já matou mais de 220 mil pessoas e no Amazonas a eutanásia passa a ser recurso para evitar os atrozes óbitos por asfixia, declarar que a morte a todos espera não é escarnecer do sofrimento dos brasileiros neste tempo de desgraças? Manter tais posições contra a opinião pública mundial não parece expressar uma opinião só sustentável pelo bronze frio de convicções eugenistas?
Não terá isso fim? É para isso que se elege e mantém um presidente?
João Carlos Brum Torres, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia. Foi Secretário do Planejamento do Rio Grande do Sul. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 29.01.2021.
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