Omissão e pregação de condutas que resultam em morte devem ser punidas
No dizer do presidente Jair Bolsonaro, quem tomar a “vachina” correrá o risco de virar jacaré. Ele realmente afirmou que a Coronavac, vacina produzida pelo Butantan com insumos vindos da China, assim como todas as outras, pode causar doenças terríveis e até a morte.
Quando, na fase dos testes, um dos voluntários que tomaram essa vacina morreu, Bolsonaro ficou numa incrível felicidade, porque isso provaria que a “vachina” seria mesmo perigosa. Mesmo depois de saber que a morte foi por suicídio, ele continuou a tripudiar e a condenar a vacina, por ser proveniente da China e por ser do interesse daquele que ele elegeu como seu adversário nas eleições de 2012: o governador de São Paulo, João Doria.
Essa conduta poderia ser apenas inconsequente e reveladora da frágil inteligência de Bolsonaro, mas, como atingiu o governo chinês, do qual dependemos para obtenção dos insumos necessários à produção de vacinas, criou um incidente diplomático dos mais sérios. Sem os insumos da China, os governos do Brasil e de São Paulo não terão como produzir 1 milhão de vacinas por dia e, portanto, a campanha de vacinação terá de ser interrompida.
Bolsonaro, seus filhos e o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, não gostam da China e deixaram isso claro em sucessivas manifestações. Assumiram tal conduta não só por burrice, mas por aquela arrogância própria de quem está no poder e acha que pode fazer o que quiser.
Tal situação é grave e danosa a todos nós que estamos ansiosos para tomar a vacina. Agora, como resultado da desastrosa diplomacia brasileira, a população parece estar concluindo ser necessário afastar o presidente, antes que seja tarde demais.
Enfim, repetem-se em relação ao presidente Jair Bolsonaro os mesmos fatores jurídicos e políticos que levaram o Brasil a aprovar o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, dois anos atrás. Prova disso é que já são 61 os pedidos apresentados ao presidente da Câmara dos Deputados, ao mesmo tempo que aumenta progressivamente a insatisfação dos brasileiros, expressa nas ruas por panelaços e pelo incrível volume de manifestações nas redes sociais.
Resumidamente, os argumentos para os pedidos de impeachment são, principalmente, o crime de responsabilidade por omissão, ou seja, deixar de enfrentar o avanço da pandemia; e não fornecer aos Estados e municípios os insumos necessários para o atendimento aos doentes, o que também configura crime de responsabilidade. A falta de oxigênio, levando a mortes por asfixia, tornou ainda mais grave esse clima de descontentamento nos últimos dias.
A Constituição federal diz com toda a clareza que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco da doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (artigo 196).
No Direito brasileiro está cristalizado o entendimento de que existe crime por ação e por omissão. No caso, verifica-se não só a omissão do presidente Jair Bolsonaro, como também o seu estímulo à ocorrência de mais mortes, porque recomendou que os brasileiros não tomem a vacina.
Nas relações de Direito privado o silêncio é interpretado como concordância da parte silente em relação à pretensão da outra parte. No Direito público, envolvendo decisões de interesse coletivo, a situação é diversa, porque a omissão do administrador, o seu não decidir, a sua inércia configuram abuso de poder e podem, sim, ser interpretados como crime de responsabilidade num juízo político-jurídico perante o Congresso Nacional.
Diante das premissas fáticas, envolvendo omissão e pregação de condutas contrárias ao interesse público, que resultam em morte, o silogismo jurídico conduz a uma conclusão necessária: a de que o administrador faltoso precisa ser punido.
Os bolsonaristas sempre dizem que graças ao presidente acabou a corrupção no País, mas deixam de considerar que a compra de apoio político no Congresso Nacional, pagando com bens que a todos os brasileiros pertencem, constitui afronta das mais graves aos princípios da administração pública.
O poder concedido à autoridade pública tem limites certos e forma legal de administração, não é carta-branca para arbítrios ou favoritismos. Todo ato do administrador público deve estar de conformidade com a lei, com a moral e com o interesse público.
Há interesse pessoal, não público, em conceder nossas repartições a este ou àquele deputado ou senador, ou seja, comprar apoio com dinheiro nosso. Essa conduta reprovável cheira a abuso de poder e corrupção. Em certos casos mais graves, pode até configurar crime de responsabilidade.
Aperta-se o cerco em torno de Bolsonaro e, quando isso acontece, ele procura desviar a atenção do público para outro tema. Por isso, propositadamente, falou e repetiu uma enorme besteira: a de que as Forças Armadas podem decidir se teremos ou não uma ditadura. Não percebe que com isso provoca a irritação dos próprios militares.
Aloísio de Toledo César, o autor deste artigo, é Desembargador Aposentado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Foi Secretário estadual de Justiça. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 23 de janeiro de 2021.
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