A medida, contudo, não significa vacinação à força, sem o consentimento do paciente. Estados e municípios poderão impor restrições para quem se recusar a ser vacinado
O ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso. Foto: Dida Sampaio / Estadão
Em um revés para o Palácio do Planalto, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta quinta-feira a favor da vacinação obrigatória contra o novo coronavírus. Por 10 a 1, o tribunal entendeu que Estados e municípios podem decidir sobre a obrigatoriedade da imunização e até mesmo impor restrições para quem se recusar a ser vacinado. A medida, contudo, não significa vacinação à força, sem o consentimento do indivíduo.
Na prática, o STF deu a Estados e municípios de todo o País o poder de definir as sanções contra os indivíduos que não queiram ser vacinados, desde que sejam medidas razoáveis – e amparadas em leis. A carteira de vacinação em dia já é exigida, por exemplo, para matrícula em escolas, concursos públicos e pagamento de benefícios sociais.
Integrantes da Corte ouvidos pela reportagem comparam a controvérsia com a questão do voto: ele é obrigatório no Brasil, mas o eleitor não é forçado a comparecer à seção eleitoral. No entanto, se o eleitor não vota e não justifica a ausência, está sujeito a sanções. A lógica em torno do imunizante contra o novo coronavírus seria semelhante: impor restrições a quem se recusa a se vacinar.
O julgamento foi concluído em um momento em que o presidente Jair Bolsonaro trava uma disputa política com governadores pelo protagonismo envolvendo a imunização da população. Mais uma vez, o STF tem atuado como poder moderador de conflitos para fazer frente à inércia do governo federal no enfrentamento da pandemia – e às posições do chefe do Executivo, que menospreza o imunizante e já se colocou contra a vacinação obrigatória.
“O Estado pode, em situações excepcionais, proteger as pessoas mesmo contra a sua vontade. A vacinação é importante para a proteção de toda a sociedade, não sendo legítimas escolhas individuais que afetem gravemente direitos de terceiros. É legítimo impor o caráter compulsório de vacinas que tenha registro em órgão de vigilância sanitária e em relação à qual exista consenso médico-científico”, disse o ministro Luís Roberto Barroso, o segundo a votar no julgamento, iniciado na última quarta-feira.
Barroso ressaltou que a expressão vacinação obrigatória não significa que alguém poderá ser imunizado à força, com recurso a algum tipo de coação ou violência física pelos agentes de saúde.
“O que decorre desse caráter compulsório é a possibilidade de a exigência da vacinação constituir condição para a prática de certos atos (como a matrícula em escola) ou para a percepção de benefícios (como recebimento de Bolsa Família), ou que sejam aplicadas penalidades em caso de descumprimento da obrigação. Qualquer condição ou sanção, para ser válida, deverá observar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, estando sempre sujeita ao crivo judicial”, frisou.
Em evento em Porto Seguro, na Bahia, Bolsonaro atribuiu a vacinação obrigatória a ditaduras. “Não podemos obrigar. Aqui nós vivemos numa democracia, pô”, disse o presidente em discurso. “Se o cara não quer ser tratado, que não seja. Eu não quero fazer uma quimioterapia e vou morrer, o problema é meu. Aqui não é Venezuela, aqui não é Cuba. E não temos ditadura aqui, como a imprensa cansa de alardear. Não persegui gays, não persegui mulheres, não persegui nordestinos, não persegui negros, liberdade total.”
Números.
Ao concordar com a vacinação compulsória contra a covid-19, o ministro Alexandre de Moraes destacou os efeitos da pandemia no Brasil, onde mais de 7 milhões de brasileiros já foram infectados.
“A preservação da vida, da saúde, seja individual, seja pública, em país como Brasil com quase 200 mil mortos pela Covid-19, não permite ao tratarmos desse tema, e por isso a importância dessa corte defini-lo, não permite demagogia, hipocrisia, ideologias, obscurantismo, disputas político eleitoreiras e principalmente não permite ignorância”, afirmou Moraes.
O ministro também criticou discursos radicais e obscurantistas contra os imunizantes.
“São as mesmas pessoas – e por isso é importante afastar a hipocrisia da discussão que ao defender que o indivíduo possa fazer o que bem entender contra a saúde pública -, que não se importam em correr pra tomar vacina de febre amarela, se submeter sem qualquer reclamação a revistas pessoais ou scanners em aeroportos e viajar ao exterior e ir a paraísos exóticos”, apontou.
Para a ministra Cármen Lúcia, o “egoísmo não é compatível com a democracia”. “A Constituição não garante liberdade a uma pessoa para ela ser soberanamente egoísta. É dever do Estado, mediante políticas públicas, reduzir riscos de doenças e outros agravos, adotando as medidas necessárias para proteger a todos da contaminação de um vírus perigoso”, disse a ministra. Marco Aurélio Mello concordou. “Vacinar-se é um ato solidário”, disse.
Indicado ao STF pelo presidente Jair Bolsonaro, o ministro Nunes Marques concordou com os colegas no sentido de que Estados e municípios podem instituir a obrigatoriedade da vacina, mas colocou uma série de requisitos para a medida entrar em vigor.
Nunes Marques exigiu que o Ministério da Saúde fosse ouvido e frisou que a vacinação compulsória deveria ser a “última medida de combate” contra o novo coronavírus, após campanha de vacinação e “esgotamento de todas as formas menos gravosas de intervenção sanitária”. O ministro acabou isolado nesses pontos.
Derrotas.
Ao longo dos últimos meses, o Supremo tem imposto uma série de derrotas ao governo federal em questões referentes à pandemia. O STF já contrariou Bolsonaro ao garantir a Estados e municípios o direito de decretar medidas de isolamento social para combater à disseminação da covid-19. O tribunal também obrigou o Ministério da Saúde a divulgar, integralmente, os números de mortos e infectados pela doença.
Nesta quinta-feira, em uma decisão individual, o ministro Ricardo Lewandowski autorizou governadores e prefeitos de todo o País a adquirir vacinas registradas por autoridades sanitárias estrangeiras, caso a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não dê aval ao imunizante estrangeiro dentro de um prazo de 72 horas. A medida pode ser tomada em caso de descumprimento do plano nacional de vacinação por parte do governo federal.
A Anvisa alega que a lei prevê o prazo de 72 horas para que dê aval ou não ao uso no País de imunizantes para a covid-19 registrados pelas autoridades sanitárias dos Estados Unidos, Europa, China ou Japão. O aval automático para a entrada dos produtos só será dado se a agência não se manifestar nesse prazo, segundo a Anvisa.
O órgão não estipula o mesmo prazo no caso em que estas vacinas obtenham apenas a autorização emergencial para uso naqueles países. O imunizante da Pfizer, por exemplo, obteve apenas este aval emergencial nos EUA e no Reino Unido, onde já começou a ser utilizado. O pedido à Anvisa para importar e distribuir uma vacina já registrada em outro país só pode ser feito pelas fabricantes. Ou seja, um governador não pode tomar essa iniciativa.
Rafael Moraes Moura, de Brasília para O Estado de São Paulo. Colaboraram Mateus Vargas e Emilly Behnke
Nenhum comentário:
Postar um comentário