Se migrarmos para um cenário de dominância fiscal, seremos levados a um quadro caótico
Por Nathan Blanche
Este é meu terceiro alerta nos últimos meses de que o barco Brasil continua num mar de incertezas quanto ao equilíbrio fiscal. Para se ter ideia das dificuldades do governo para elaborar o Orçamento de 2021, até a data de hoje não foi instaurada a Comissão Mista do Orçamento do Congresso. Sem essa peça básica de planejamento e execução orçamentária para o ano que vem e sem avanços nas necessárias reformas fiscais, é grande a possibilidade de o País zarpar para uma rota de elevada incerteza a partir de janeiro.
Um sinal claro do caos fiscal que se aproxima no próximo ano e causa tanta insegurança nos agentes econômicos e no Tesouro Nacional está no cronograma de vencimento de títulos públicos da dívida interna. Até abril de 2021 vencem R$ 605,3 bilhões em títulos, um aumento de 71% em relação aos R$ 354,5 bilhões que venceram até abril de 2020. Olhando o volume completo de vencimentos para 2021, é R$ 1,1 trilhão em títulos a serem pagos pelo Tesouro, um aumento de 40,5% ante os R$ 782,5 bilhões programados para 2020.
Tradicionalmente, o que se faz é rolar a dívida, pagando dívida velha com emissão de dívida nova. Mas em meio aos crescentes riscos fiscais, os prêmios exigidos para as novas emissões estão aumentando semanalmente. Em 17/9/2020, por exemplo, foram leiloadas LTNs (títulos prefixados) com vencimento em janeiro de 2024 pagando juros de 5,51%. Poucos dias depois, em 1.º/10, as taxas subiram para 6,12%.
O aumento dos prêmios exigidos pelo mercado financeiro nada mais é do que a precificação dos crescentes riscos fiscais, o que encarece o custo do serviço da dívida no futuro, comprometendo o processo de consolidação fiscal ao longo do tempo. Para fugir das taxas mais elevadas presentes nos juros futuros o Tesouro acaba optando por suprir suas necessidades de financiamento ofertando títulos de prazos mais curtos. Troca-se, assim, a estratégia de consolidação fiscal de longo prazo pelas necessidades emergenciais de curto prazo.
O resultado desse quadro é uma aceleração do crescimento da dívida. Entre 2013 e 2019 a dívida aumentou 23,8 pontos porcentuais. Mas em 2020, em meio aos enormes gastos no combate à pandemia e aos efeitos nocivos para a arrecadação, a dívida bruta deve atingir 97% do PIB, um aumento de 21 pontos porcentuais apenas em um único ano!
Sem a retomada do processo de ajuste fiscal, como avanço das privatizações e reformas que foquem no controle dos gastos (como as PECs emergencial, do Pacto Federativo e da reforma administrativa), caminharemos facilmente para que a dívida supere os 100% do PIB no médio prazo.
Vários economistas vêm alertando para o risco iminente de um cenário de dominância fiscal, ou seja, quando o custo fiscal do aumento das taxas de juros pelo Banco Central (BC) supera os benefícios da política monetária no combate à inflação. Mesmo com um BC tendo a devida autonomia de ação para colocar a taxa de juros onde ela deve estar para controlar a inflação, num cenário de dominância fiscal o uso da Selic como instrumento primordial da política monetária dentro do regime de metas de inflação perde sua eficácia. O resultado seria a volta de um processo inflacionário, que seria tanto maior quanto maior for o desequilíbrio fiscal e o endividamento público.
Não estamos nesse ponto ainda, mas, no limite, caso migremos para um cenário de dominância fiscal, seríamos conduzidos a um quadro caótico semelhante à década de 1980, no qual a inflação era a variável de ajuste dos desequilíbrios econômicos e fiscais.
Não sem motivo a inflação começou a ganhar novamente espaço nos noticiários e ser motivo de preocupação. Dúvidas quanto às causas e à duração da recente alta dos preços no atacado e no varejo, em contexto de aumento da incerteza sobre a trajetória fiscal, têm levado muitos analistas a revisar suas apostas quanto ao momento em que o BC começará a subir juros. Em meio a essa discussão, surge a questão do repasse aos preços da depreciação cambial. Dirigentes do BC afirmaram que, caso haja pressão de demanda de câmbio no final do ano, não hesitariam em intervir no mercado, ofertando proteção (hedge) para conter novo movimento de depreciação da moeda. Não é o objetivo da autoridade monetária controlar a inflação por meio de política cambial, mas a soma de todas essas fontes de pressão, em contexto de crescente risco fiscal, parece exigir da autoridade monetária medidas que vão além do eventual aumento antecipado da taxa de juros.
Paulo Guedes, conhecido por ser superlativo em suas falas, recentemente, disse que “o Brasil pode ir para uma hiperinflação muito rápido, se não rolar a dívida pública satisfatoriamente”. Mas a tomar pela nossa enorme dívida e pela falta de ações concretas para contornar seu crescimento, não se deve ignorar o alerta do ministro. Por outro lado, o caminho não é só “... vender ativos, privatizar, desalavancar os bancos públicos e até vender um pouco de reservas”, como ele destacou. Isso pode alterar o nível da dívida, mas não a sua dinâmica, que exige respeito ao teto dos gastos e reformas fiscais. O trabalho é árduo e exige foco e articulação política.
Nathan Blanche é sócio-diretor da Tendência Consultoria Integrada. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 26.11.2020.
Nenhum comentário:
Postar um comentário