Muitos ficaram com as boas lembranças que o poeta, em nome de todos nós, resumiu em saudades – ah que saudades que eu tenho da aurora da minha vida...
Outros só souberam da infância como um tempo que passou quase correndo sem lhes dizer pouco ou quase nada do que lhes poderia ensinar no aprendizado de viver.
Muitos receberam cedo as cobranças, sofreram as urgências das necessidades que suprimem as esperas e tiveram que tanger seus sonhos mais sonhados para os desvãos da memória para nunca serem esquecidos e no tempo certo, amadurecidos, serem despertados.
Antônio Carlos, o futuro maestro Tom Jobim, ficou órfão cedo e sua referência paterna foi o padrasto, que lhe deu um piano, passou-lhe o gosto pela música. Até firmar-se no mundo como grande compositor, estudou muito, trabalhou muito e passou por muitas necessidades.
Quando vejo o orgulho e a devoção com que Paulo, o seu filho músico, cuida do legado paterno e o difunde, e o exibe ao mundo, tudo bem guardado num acervo que só os grandes em vida podem fazer interessar, me emociono com as certezas das suas inspirações.
Numa manhã, há alguns anos, eu estava sossegado numa loja de discos, no aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, garimpando uma prateleira de jazz, atrás de mais um Chet Becker, quando ouvi uma mulher de voz assanhada perguntando se já haviam recebido o disco da filha da Ellis.
Achei aquilo um tanto desrespeitoso com a moça. Ela tem talento próprio e formação musical. Quando Ellis morreu de overdose, aos 36 anos de idade, seus três filhos, João, Pedro e Maria Rita, eram ainda muito pequenos. Tiveram infância normal, adolescência normal, hoje trabalham duro.
Assisti há pouco o DVD em que os filhos de Ellis resgatam a sua história, a sua luta, a sua integridade como artista sintonizada com o seu tempo, que abriu espaços a jovens promissores como Gil, Edu, Chico, Belchior e Fagner.
No resgate da história de vida da mãe, os filhos de Ellis nos provam o quanto o canto muitas vezes gritado daquela mulher pequenininha, naquele contexto, valeu a pena para o Brasil.
Na mesa ao lado, na padaria, o moreno abancado com a mulher, dois filhos, uma babá e a sogra, quase não consegue usufruir daquele momento em família, tantas são as pessoas que passam e param e as que se levantam para alcança-lo. Mostra-se atencioso e bem-educado.
Imagina só o que ele sofreu na escola e o que amargou na vida por muitos anos pelo simples fato de ser o filho que carrega o nome do pai, um homem adorado pelas multidões e pouco depois atirado pelo preconceito e pela inveja, unidas numa mesma maldade, para uma temporada no inferno de onde só saiu quando a saúde já não lhe garantia mais a alegria para viver.
Wilson Simonal Filho, o Simoninha, é o moreno gente fina na mesa ao lado, aqui na padaria da esquina. Ele e o seu irmão, o maestro e arranjador Max de Castro, acabam de resgatar de forma emocionante e corajosa a memória de seu pai, um dos maiores ídolos da canção popular no Brasil.
O jovem senhor que me visita testemunhou, menino ainda, a intimidade de um dos momentos mais trágicos da supressão das liberdades democráticas no Brasil, a deposição pelos militares de um Presidente da República, no caso o seu pai João Goulart. O pai, a mãe, a irmã e ele, amargaram décadas no exílio.
O pai, aliás, nunca voltou. Melhor dizendo, voltou morto, num caixão coberto com uma nova bandeira de uma nova luta, resumida na unica aspiração nacional – Anistia.
João Vicente Goulart cuida agora de resgatar a memória do seu pai, ontem tão ultrajada e hoje ignorada por muitos no Brasil. Ele é o Presidente do Instituto João Goulart.
Aquele verso do Poema Enjoadinho, do Vinicius – Filhos? Melhor não tê-los, não cabe nos exemplos de filhos como os de Tom Jobim, de Ellis Regina, de Wilson Simonal e de João Goulart.
Um comentário:
Olá MEV, boa noite.
Tive o prazer de conhecer Ellis pessoalmente, bem como César Camargo Mariano. Na época, conheci também a criança Maria Rita. Hoje é uma cantora que tem vida própria - e nem seria justo compará-la com a pimentinha genial - por que, além de épocas diferentes, Ellis conviveu numa época de predominância política onde qualquer um que alevantasse a voz viraria ídolo nacional. E ela, gaúcha, destemida, fez isso e quando já era a maior (e mais técnica) cantora que o Brasil já produziu. Maysa Matarazzo é outra história. Abraços.
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