A tristeza amanhece cansada em lágrimas e desconfortos, os olhos indormidos, as expressões de uns repetindo-se nos outros e, como numa desobriga, a mesma cena escorrendo na capela do cemitério pelo dia inteiro.
Quem numa hora dessa não se abre a um ombro amigo, a uma palavra de apoio, a uma oração de fé?
Há uma desolação coletiva, uma sensação de desamparo, as almas devastadas pelo vazio denso que só a perda de alguém muito querido causa. A dor de ver a morte vencendo a vida é mais profunda, é irremediável.
É nesse espaço de carências que aparece o farsante.
Chega cedo ao cemitério, veste-se de padre, ronda a capela e fica peruando os velórios, um por um, que ao longo do dia, até no fim da tarde, ainda vão acontecer.
São católicos? Pergunta como quem declara uma identidade. Sim. Todos geralmente o são.
Ele sabe que por aqueles mundos desprezados, itinerários de abandonos, onde já são poucas as arvores a fazerem sombras, as raízes lá embaixo na promiscuidade com os ossos restantes nos fundos das sepulturas, as esperanças até se diluem como as hóstias nas línguas úmidas dos contritos.
Ele sabe que em chãos de tantos atrasos as pessoas que chegam ao cemitério para enterrarem os seus mortos amolecem na disposição de seguirem em frente como se acreditassem que o horizonte acaba ali, na cova na qual um dia irão também desabar.
O farsante se aproveita das emoções em pranto, da tristeza no clima, do desalento geral. Ele se apresenta como intermediário divino, o porta - voz do conforto e da fé, a mão estendida da salvação, o portador da única bussola confiável e por isso pode ordenar a todos – sigam-me!
Está vestido de sacerdote, mas não é sacerdote. Fala manso numa entonação litúrgica, mas não é o padre. Abre a Bíblia espalmando-a sobre as duas mãos, recita versículos, não é esta a sua missão. Não estudou para isso.
As pessoas pranteando os seus mortos, um após o outro, na capela apertada daquele pedaço de Brasil distante em que o exercício de viver se confunde com o não esperar por mais nada a não ser morrer, ainda em reservas de fé, mas não sabendo mais no que ainda crer, caem fácil, fácil, na lábia do farsante.
O sermão se confunde com o discurso e vice versa ou com a mesma coisa ao contrário. Abaixem as cabeças que lá vêm os maribondos, ah meu Deus, só faltava essa, até aqui tem maribondos? Por um milésimo de segundo a tristeza sorri.
Como dizia o poeta, mas se existe Jesus no firmamento, cá na terra isso tem que se acabar. O farsante ignora o poeta, o seu clamor pela igualdade, não quer entrar em bola dividida, seu negócio é consolar os parentes e os amigos dos mortos, atirar a água benta no caixão do de cujos e encomendar sua alma a um destinatário que nem ele sabe.
Depois, é claro, ele diz ao dono do defunto que não cobra nada pelos serviços fúnebres, mas que tem uma fundação, uma obra de caridade, e dá então a facada para pegar um dinheirinho.
Cemitérios em chãos dos infernos de tão pobres parecem favelas. É uma sepultura por cima da outra, ossos de um lá embaixo por cima dos ossos de outro. Daí que entendo por que essa preferência de alguns por sepulturas prévias longe dos cemitérios e tão enormes.
O farsante que se faz passar por padre sabe que não vai durar muito com esse golpe. Logo alguém o pressentirá farsante e a policia irá atrás dele.
Por isso, cuidado. De repente, aparece alguém por aí com pinta de salvação, cerimonioso e gentil, querendo saber.
São maranhenses? Pergunta como quem declara uma identidade. Sim. Todos geralmente o são.
Pode ser o mesmo farsante. Ou um outro muito parecido.
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