quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Lula acelera a demagogia

O presidente promete que os eleitores vão trabalhar menos e andar de graça em ônibus, como se um Estado cronicamente deficitário fosse capaz de absorver toda a irresponsabilidade petista

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva cobrou da equipe econômica que conclua de uma vez os cálculos sobre o programa tarifa zero no transporte de ônibus urbanos. A pressa não é tanto para colocar a medida em prática já no ano que vem, mesmo porque ainda existe uma lei eleitoral em vigor que restringe o lançamento desse tipo de proposta a meses do pleito, mas para garantir sua apresentação a tempo de que ela possa se tornar uma promessa de campanha do petista em 2026.

Estudo da Universidade de Brasília (UnB) aponta um custo mínimo de R$ 80 bilhões anuais. Para a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), seriam ao menos R$ 90 bilhões por ano, e para a Confederação Nacional de Municípios (CNM), R$ 200 bilhões. A verdade é que ninguém sabe, ao certo, quanto a tarifa zero vai custar, mas todas as estimativas apontam para custos incompatíveis com qualquer âncora fiscal e inviáveis para um país com a extensão territorial e a população do Brasil.

O governo, espertamente, já tem resposta para quem o critica por prometer o que não pode cumprir. Afinal, a mesma coisa se dizia sobre o compromisso de isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) para quem ganha até R$ 5 mil mensais. O correto seria ter corrigido a tabela para todos os contribuintes, mas isso ficaria caro demais até mesmo para os padrões petistas.

A alternativa, portanto, foi criar um puxadinho tributário para garantir o benefício ao eleitorado que Lula queria reconquistar. E se já era improvável que as perdas de arrecadação geradas por essa benesse seriam compensadas pela taxação da alta renda, a corrida das empresas para antecipar o pagamento de dividendos a pessoas físicas até o fim deste ano é uma prévia do rombo com o qual o País terá de lidar a partir do ano que vem, quando a medida entrar em vigor.

A redução da jornada de trabalho sem redução de salários e o fim da escala 6x1, que Lula resolveu encampar, se insere nesse mesmo contexto. A premissa para fazer esse movimento sem prejuízo à atividade econômica é que haja um aumento da produtividade – ou seja, produzir mais com menos. A produtividade, por sua vez, só cresce quando há investimentos em inovação, tecnologia, qualificação profissional e melhoria do ambiente de negócios.

Reduzir a jornada sem aumento da produtividade é fazer o caminho oposto. O resultado é alta no custo por hora trabalhada, desindustrialização, desequilíbrio na balança comercial, avanço do desemprego e socorro público ao setor privado. Antes fosse mero pessimismo. Basta analisar o que aconteceu na França, que adotou a medida há mais de 20 anos. Com o agravante de que, no Brasil, a produtividade da economia cai há décadas.

Mas, para Lula, nada disso importa. Como o presidente jamais desceu do palanque e sempre se comportou como candidato, quanto mais inexequível a proposta, melhor. No caso da tarifa zero, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que se orgulha de não dizer não aos pedidos do chefe, certamente encontrará alguma maneira capenga de colocar essas propostas de pé a tempo de incluí-las na campanha e pautar o debate eleitoral, obrigando os adversários a também se comprometerem com elas.

Ao Estadão, o deputado Jilmar Tatto (PT-SP), que lançou um livro sobre o tema no mês passado cujo prefácio foi escrito por ninguém menos que o próprio Haddad, disse duvidar de que alguém tenha coragem de se opor à tarifa zero às vésperas da eleição. “Ninguém é contra, nem o Centrão, nem a direita”, afirmou.

De fato, ninguém que disputará o voto dos eleitores ousará questionar a pertinência de impor um custo dessa monta a um Orçamento já deficitário e que não tem receitas suficientes para arcar nem mesmo com as políticas públicas que já lhe cabem nas áreas de saúde e educação – o que dirá para o transporte público urbano.

Daí se vê a diferença entre uma estratégia eleitoral inconsequente, pensada para angariar o maior número de votos possível, como é a de Lula, e um programa de governo consistente e capaz de conduzir o País ao crescimento econômico.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 10.12.25

Senado vota hoje (10) na CCJ novas regras para impeachment de ministros do STF; veja as mudanças

Relator do projeto, Weverton Rocha prevê que OAB, PGR, partidos políticos e cidadãos em abaixo-assinado com 1% do eleitorado podem propor impedimento

Presidente da Casa, Davi Alcolumbre, decidiu acelerar proposta para dar resposta a liminar de Gilmar Mendes que endureceu as regras para dificultar saída de ministros

O ministro Gilmar Mendes na sessão de posse do ministro Edson Fachin como presidente do STF (Supremo Tribunal Federal) e do ministro Alexandre de Moraes como vice-presidente - Pedro Ladeira/Folhapress

O senador Otto Alencar pautou para a quarta (10) a votação do projeto que atualiza as regras para o impeachment. "Será o primeiro item da pauta", disse o parlamentar à coluna.

O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, decidiu acelerar a tramitação da matéria depois que o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Gilmar Mendes endureceu as regras de impedimento de ministros da Corte por meio de uma liminar.

O senador Weverton Rocha (PDT-MA), relator do projeto, afirma que ele já foi finalizado e será apresentado ainda hoje aos principais líderes do Senado.

Ele antecipou à coluna as mudanças que vai propor nas regras, que valeriam não apenas para os magistrados da Suprema Corte, mas também para autoridades de outros poderes, inclusive o presidente da República.

Em primeiro lugar, diz ele, haverá uma "reorganização da legitimidade de quem pode apresentar o pedido de impeachment".

Hoje, qualquer cidadão pode bater às portas do Senado e pedir o impedimento de um ministro do STF, por exemplo.

Com as novas regras, isso muda. Apenas entidades e órgãos como a OAB, a PGR (Procuradoria-Geral da República) e partidos políticos com representação no Congresso poderão apresentar o pedido.

Os cidadãos também poderiam fazê-lo, desde que por meio de um abaixo-assinado endossado por 1% do eleitorado.

"Isso qualifica o ato, não deixa que seja feito de forma solta, injuriosa ou dolosa, apenas para manifestar divergência com a autoridade", diz ele. "Não se pode usar instrumento de exceção como meio de atuação política, para manifestar descontentamento ou divergência com a autoridade", afirma ainda o parlamentar.

Uma segunda mudança: o presidente do Senado, a quem cabe arquivar ou dar seguimento ao pedido de impeachment, teria um prazo de 15 dias úteis para analisá-lo e tomar uma decisão.Hoje, esse prazo é indefinido, e o comandante da Casa pode simplesmente deixá-lo na gaveta, sem qualquer decisão.

Pela nova proposta, caso ele arquive o pedido, o plenário teria o poder de desarquivá-lo, também no prazo de 15 dias.

O quórum para isso, no entanto, seria de 2/3 dos parlamentares. Nas regras anteriores, era necessário o apoio da maioria simples de 41 senadores presentes no plenário — ou seja, de 21 deles — para que o processo de impeachment fosse aberto.

Pela nova regra proposta pelo senador Weverton seriam necessários ainda os votos de 2/3 dos 81 senadores para que, ao fim do julgamento, um ministro fosse enfim expelido da Suprema Corte.

Após a votação na CCJ, que deve ocorrer na quarta (10) se nenhum senador pedir vista para melhor análise da proposta, ela segue para o plenário do Senado. Aprovada, será enviada à Câmara para análise dos deputados.

Mônica Bergamo, a autora deste texto, é jornalista e colunista da Folha de S. Paulo. Publicado originalmente em 10.12.25 (edição online).

Projeto reduz pena, mas prisão em regime fechado só cai de 7 para 2 anos se Bolsonaro trabalhar e estudar

Relator fala em prisão por 2 anos e 4 meses em regime fechado, mas período dependerá de trabalho, estudo e de interpretação pelo STF.

 Proposta proíbe somatória de crimes e diminui punição de quem atuou em contexto de multidão; ex-presidente seguiria condenado a mais de 20 anos

Bolsonaro acompanha sua mulher, Michelle, à porta da PF de Brasília, onde está preso - Gabriela Biló - 23.nov.2025/Folhapress

O novo parecer do projeto de lei de redução de penas para os condenados pelos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, protocolado nesta terça-feira (9) pelo deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP), pode diminuir o tempo de prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em regime fechado para 2 anos e 4 meses, segundo o relator e parlamentares de oposição.

A depender da interpretação, porém, o texto pode levar a uma redução menor, para algo entre 3 anos e 4 meses e 4 anos e 2 meses em regime fechado. Eventual redução para o patamar esperado pela oposição dependerá da remição da pena, ou seja, de Bolsonaro reduzir seu tempo preso por meio de trabalho ou estudo.

Com a condenação atual, o tempo em regime fechado é estimado entre 6 anos e 10 meses a pouco mais de 8 anos. Em dezembro, a Vara de Execução Penal estimou que o ex-presidente deve passar para o regime semiaberto em 23 de abril de 2033 –após quase 8 anos.

A proposta teve sua votação prevista para esta terça no plenário da Câmara dos Deputados, conforme anúncio do presidente Hugo Motta (Republicanos-PB). O parecer foi protocolado em seguida, após meses de negociação. A oposição desistiu de propor uma emenda ao projeto para anistiar de forma ampla e irrestrita todos os condenados pelos atos golpistas, em troca do apoio do centrão à redução de penas.

Bolsonaro foi condenado a 27 anos e três meses de prisão pelo STF (Supremo Tribunal Federal) por cinco crimes, como líder da trama golpista. Outros sete réus foram condenados a penas que vão de 2 a 26 anos de reclusão. Além deles, centenas de pessoas foram punidas pelos atos do 8 de Janeiro.

O parecer protocolado por Paulinho impede que sejam somadas as penas dos crimes de abolição violenta do Estado democrático de Direito e de golpe de Estado, quando ocorrerem no mesmo contexto, aplicando apenas a pena daquele que é maior. Com isso, no caso de Bolsonaro, seria descartado o crime de abolição violenta do Estado democrático de Direito (6 anos e 6 meses de prisão). Restariam ainda 20 anos e 9 meses de prisão.

A legislação prevê a possibilidade de progressão de regime, para que o condenado com bom comportamento possa migrar para o semiaberto ou aberto após um tempo. O projeto fixa que, nesses casos, o regime de progressão será após o cumprimento de um sexto da pena, não mais um quarto.

Com as mudanças feitas pelo projeto, a progressão ocorreria após 3 anos e cerca de 4 meses.

O relator, no entanto, diz que a redução será maior. "Dá mais de 3 anos, mas depois tem a remição de penas, e cai para 2 [anos e] 4 [meses", disse Paulinho à Folha, sem detalhar como ocorrerá. O projeto determina que a remição poderá ocorrer mesmo em regime domiciliar, o que atualmente não é permitido.

Crimes Pela lei atual Pelo projeto de Paulinho

Organização criminosa 7 anos e 7 meses 7 anos e 7 meses

Golpe de Estado 8 anos e 2 meses 8 anos e 2 meses

Abolição violenta do Estado democrático de Direito 6 anos e 6 meses _

Dano qualificado 2 anos e 6 meses 2 anos e 6 meses

Deterioração do patrimônio tombado 2 anos e 6 meses 2 anos e 6 meses

Pena total 27 anos e 3 meses 20 anos e 9 meses

Progressão de regime 6 anos e 10 meses (25%) 3 anos e 4 meses (16%)

Progressão com remição de pena Sem previsão legal Abate-se 1 dia a cada 6 dias de leitura e abate-se 1 dia a cada 3 dias de trabalho: progressão em 2 anos e 4 meses

Fonte: Paulinho da Força (Solidariedade-SP), relator do projeto de redução de penas da trama golpista

Advogados, no entanto, apontam que a redução pode ser menor, já que o texto pode ser interpretado de forma a ampliar a pena por golpe de Estado entre um sexto e dois terços, a depender da interpretação do juiz –neste caso, o STF.

Com isso, o tempo de prisão iria para algo entre 21 anos e 10 meses e 25 anos e 1 mês. Com a progressão, o regime fechado poderia chegar a 4 anos e 2 meses antes de Bolsonaro migrar para o semiaberto.

O projeto pode ter efeito maior sobre outros condenados pela trama golpista. Além de impedir a somatória das penas e o tempo para progressão de regime, o texto permite a redução das penas entre um terço e dois terços quando os crimes forem praticados "em contexto de multidão", como foi o caso das centenas de condenados pelos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, que depredaram as sedes dos três Poderes.

Para esta redução de penas, no entanto, o condenado ou réu não pode ter praticado ato de financiamento ou exercido papel de liderança para a tentativa de golpe de Estado.

Com a aprovação do projeto, o centrão afirma que ficará mais fácil de convencer Bolsonaro a apoiar a candidatura presidencial do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos). Na sexta (5), o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) se colocou como candidato, mas depois sinalizou que seu "preço" seria a aprovação da anistia. Em entrevista à Folha, ele recuou e disse que sua candidatura é "irreversível".

O projeto, caso aprovado pela Câmara, ainda precisa passar pelo Senado Federal e depois ter o aval do presidente Lula (PT), que pode vetá-lo. Deputados de esquerda se insurgiram contra a proposta e defenderão que o petista vete o texto.

Raphael Di Cunto e Carolina Linhares, repórteres, de Brasília - DF, originalmente, para a Folha de S. Paulo, em 09.12.25

Câmara aprova projeto de redução de penas que beneficia Bolsonaro com aval do PL e protesto do governo

Paulinho da Força transformou texto de anistia em proposta para livrar ex-presidente mais cedo da prisão. Deputados de esquerda apontaram que proposta pode beneficiar criminosos violentos, o que relator nega

O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), com o deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP), que relata o projeto de redução de penas - Pedro Ladeira/Folhapress

A Câmara dos Deputados aprovou, nesta quarta-feira (10), o projeto que substituiu a anistia ampla e prevê apenas a redução de penas para o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e os demais presos por participação nos ataques às sedes dos Poderes em 8 de janeiro de 2023.

O projeto, relatado pelo deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP), ainda tem que passar pelo Senado. O presidente da Casa, senador Davi Alcolumbre (União-AP), disse que a matéria deve ser votada ainda neste ano.

Foram 291 votos a favor ante 148 contrários. Os destaques que poderiam alterar o texto foram rejeitados, em sessão que terminou às 3h56.

Quando a urgência do projeto foi aprovada, em setembro, houve 311 votos favoráveis e 163 contrários (com 7 abstenções).

O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), com o deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP), que relata o projeto de redução de penas

O PL de Bolsonaro votou a favor e aceitou a redução de penas, embora tenham insistido por meses no perdão completo. Já o governo Lula (PT) votou contra, seguindo orientação da ministra Gleisi Hoffmann (Relações Institucionais). Deputados governistas apresentaram uma série de questões de ordem para atrasar a votação.

A votação ocorreu na madrugada, após um dia de confusão na Câmara com a expulsão à força do deputado Glauber Braga (PSOL-RJ) do plenário —ele ocupou a Mesa em protesto contra seu processo de cassação. Houve agressões e cerceamento à imprensa por parte da polícia legislativa.

Como mostrou a Folha, o projeto terá impacto também sobre outros criminosos, com uma progressão mais rápida de regime para pessoas consideradas culpadas por coação no curso do processo, incêndio doloso e resistência contra agentes públicos, entre outros crimes, de acordo com estudo técnico de três partidos.

Deputados de esquerda usaram o argumento de que o texto beneficiaria o crime organizado para tentar derrotá-lo. No plenário, Paulinho negou: "O projeto trata apenas do 8 de Janeiro, não tem nenhuma possibilidade de esse texto beneficiar crime comum".

A aprovação ocorre dias após o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) pressionar pela anistia ao dizer que poderia desistir de ser candidato à Presidência em troca do perdão ao seu pai. O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), no entanto, disse que pautou o tema por vontade própria e não para atender a pedido de ninguém.

O texto pode diminuir o tempo de prisão de Bolsonaro, condenado a 27 anos e 3 meses de prisão na ação da trama golpista, para 2 anos e 4 meses em regime fechado, segundo o relator e parlamentares de oposição.

A depender da interpretação, porém, o projeto pode levar a uma redução menor, para algo entre 3 anos e 4 meses e 4 anos e 2 meses em regime fechado. O patamar esperado pela oposição dependerá da remição da pena, ou seja, de Bolsonaro reduzir seu tempo preso por meio de trabalho ou estudo.

Com a condenação atual, o tempo em regime fechado é estimado entre 6 anos e 10 meses a pouco mais de 8 anos. Em dezembro, a Vara de Execução Penal estimou que o ex-presidente deve passar para o regime semiaberto em 23 de abril de 2033 —após quase 8 anos.

Reivindicação do bolsonarismo desde o ano passado, o projeto de uma anistia ampla foi transformado em redução de penas por Paulinho após um acordo que envolveu a cúpula da Câmara, controlada pelo centrão, e o STF (Supremo Tribunal Federal). Por um lado, o centrão se opunha ao perdão total, e o relator, que é próximo de Alexandre de Moraes, não queria afrontar o Supremo.

Em seu relatório, Paulinho cita Aristóteles para afirmar que a virtude consiste no meio-termo e que o equilíbrio é a marca de seu texto. Na tribuna, ele fez um discurso pacificador.

A decisão de Motta de pautar o projeto de redução de penas nesta terça (9) pegou o relator e os líderes partidários de surpresa. A medida estava parada na Câmara em meio a um impasse —o PL insistia na anistia ampla e o Senado não dava sinais de que poderia votar o projeto em seguida, questões que foram superadas.

Houve um acordo para que os parlamentares bolsonaristas não tentassem, durante a votação do plenário, transformar a redução de penas em anistia por meio da apresentação de emendas ou destaques.

Antes da votação, Motta afirmou que a "questão da anistia está superada" e que só caberá a redução de penas. O presidente da Casa disse que queria virar o ano com o assunto definido.

Segundo aliados, Bolsonaro deu aval à redução de penas nesta terça. O ex-presidente afirmou que o projeto não resolveria o problema dele, mas resolveria o de apoiadores.

O líder do PL, deputado Sóstenes Cavalcante (RJ), afirmou que o partido seguirá insistindo no perdão completo, mas só no ano que vem.

Sóstenes afirmou que os bolsonaristas não estão satisfeitos, mas resolveram ceder porque o calendário de votações até o fim do ano está apertado e, com a medida, presos pelo 8 de Janeiro poderiam passar o Natal fora da prisão.

"Jamais vamos desistir da anistia, mas o calendário legislativo nos pressiona. É o degrau possível nesse momento para que as famílias possam dignamente passar o Natal em suas casas", disse.

Para o líder do PT, Lindbergh Farias (RJ), Motta foi influenciado por Flávio. O senador, que se lançou à Presidência na semana passada, disse que desistiria se houvesse anistia e a reversão da inelegbilidade para seu pai. Em entrevista à Folha, Flávio voltou atrás e disse que sua candidatura é irreversível.

Força majoritária na Câmara dos Deputados, o centrão reagiu mal à candidatura de Flávio, por preferir Tarcísio de Freitas (Republicanos), e defende a redução de penas em vez da anistia. Por isso, a fala do senador foi vista como chantagem por políticos desse grupo.

Já Sóstenes, na mesma linha de Motta, também negou que a votação tivesse relação com a declaração do senador. "Foi uma decisão pessoal dele [Motta], sem nenhuma outra circunstância. Não tem relação [com Flávio] porque nós não vamos votar a anistia. A condição do senador Flávio foi muito clara: votar a anistia e ter seu pai na urna. O que estamos votando aqui é um remendo."

Carolina Linhares e Raphael Di Cunto, repóteres, originalmente, de Brasília - DF para a Folha de S. Paulo, em 10.12.25.

terça-feira, 9 de dezembro de 2025

De novo a farra eleitoral

Manobra no Orçamento permite ao governo Lula doar cestas básicas e tratores em meio à campanha

Em julho de 2022, quando o mundo político estava prestes a entrar no chamado “defeso eleitoral” – período de três meses anterior ao calendário de votação, quando fica suspensa boa parte da liberação de benesses públicas –, o Congresso aprovou, em votação ágil de 20 minutos, dois projetos que autorizavam o governo de Jair Bolsonaro a distribuir de cestas básicas a tratores em plena campanha e até realocar verbas de um município a outro, dependendo da conveniência. As medidas ampliavam o nível de obscuridade do chamado “orçamento secreto”, escândalo denunciado pelo Estadão, que consistia na liberação de gastos com emendas sem que o nome do parlamentar fosse divulgado ou mesmo o destino dos recursos públicos.

Pois eis que Bolsonaro fez escola e agora, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, medida idêntica foi aprovada pelo Congresso, de forma igualmente sorrateira, em manobra na votação do texto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2026. Um dos artigos do texto permite ao governo fazer a doação de benefícios, como cestas básicas, ambulâncias, tratores e outras benesses, mesmo no período de campanha, quando a lei eleitoral proíbe esse tipo de prática justamente para garantir a lisura do pleito e impedir o abuso do poder econômico na disputa.

Além de representar uma total desqualificação da Justiça Eleitoral, passando por cima de critérios básicos de equidade de condições entre os candidatos, o tal artigo é mais um drible para garantir a farra de distribuição de recursos públicos em 2026. Soma-se ao inédito calendário elaborado no acordo entre o Executivo e o Congresso para garantir a distribuição de R$ 19 bilhões em emendas parlamentares ainda no primeiro semestre do ano que vem – portanto livre das restrições eleitorais –, ao aumento de cerca de R$ 160 milhões em despesas dos partidos e à previsão de R$ 1 bilhão para o Fundo Partidário e mais R$ 4,9 bilhões para o Fundo Eleitoral em campanhas partidárias.

E todo o tipo de argumento mal fundamentado é suficiente para sustentar o aval de deputados e senadores a uma medida que claramente desrespeita a lei eleitoral que, ao menos em teoria, é o instrumento jurídico que deve prevalecer em qualquer eleição. Ao defender o dispositivo que abre as torneiras das verbas públicas durante a campanha, o relator na matéria, deputado Gervásio Maia (PSB-PB), afirmou ao Estadão que a lei não proíbe inauguração de obras durante a campanha, mas somente a participação de candidatos. Por essa lógica, diz, também não se pode “proibir algo que acontece na administração pública”.

A questão é que isso significa corromper os princípios éticos básicos que garantem a lisura do processo eleitoral, além de ameaçar o compromisso fiscal do Orçamento federal ao abrir espaço para a farta distribuição de máquinas agrícolas, ambulâncias, tratores e outros equipamentos a municípios. Mas, ao que parece, respeito a limites éticos e legais está um tanto démodé em Brasília.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, originalmente, em 09.12.25

Fachin quer código de ética para tribunais inspirado em regra alemã e vai usar CNJ para criá-lo

Presidente do Supremo Tribunal Federal já discutiu a proposta com demais ministros da Corte e presidentes de outros tribunais superiores; código de conduta deve ser fruto do trabalho de observatório do Conselho Nacional de Justiça

Presidente do STF, Edson Fachin, quer implementar código de conduta a tribunais superiores Foto: Wilton Junior/Estadão

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Edson Fachin, encampou como um dos objetivos da sua gestão à frente da mais alta instância do sistema de Justiça a criação de um código de ética para disciplinar a conduta de magistrados de tribunais superiores.

A proposta enfrenta resistência interna no STF e em outras Cortes. Conforme apurou o Estadão, o código de conduta deve caminhar em duas frentes: no STF, para disciplinar a conduta dos seus ministros, e no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), para criar um regramento para os membros dos demais tribunais superiores.

O presidente do STF já conversou com os colegas de Corte e presidentes de outros tribunais superiores. De acordo com um interlocutor de Fachin, ele tem trabalhado na proposta desde o primeiro dia da sua gestão por se tratar de um projeto que sempre defendeu, inclusive antes mesmo de assumir a Presidência. A iniciativa é inspirada em regras do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, como é nomeada a Suprema Corte alemã.

A proposta caminhará no CNJ e abarcará todos os tribunais superiores, exceto o Supremo. No Conselho, também presidido por Fachin, o trabalho será feito por meio do Observatório da Integridade e Transparência no Poder Judiciário.

Os integrantes do observatório definiram como foco do plano de trabalho quatro temas centrais que estão relacionados a questões que seriam exploradas num eventual código de ético: transparência da remuneração da magistratura; ética, lobby e conflito de interesses; Transparência de dados; e Sistemas de integridade, aplicação de tecnologia e governança.

Na reunião do Observatório realizada no dia 24 de novembro, Fachin afirmou que o grupo deve se consolidar como uma “instância de produção técnica rigorosa e como catalisador de políticas que reforcem a confiança pública, a integridade e a legitimidade de um Judiciário republicano”.

Ministro aposentado do STF, Celso de Mello afirmou ao Estadão que a proposta de Fachin de criação de um código de ética “merece amplo apoio público”.

“Trata-se de medida moralmente necessária e institucionalmente urgente. Em democracias consolidadas, a confiança na Justiça exige não apenas juízes honestos, mas regras claras, que impeçam qualquer aparência de favorecimento, dependência ou proximidade indevida com interesses privados e governamentais”, afirmou.

“Não basta ser imparcial. É preciso ser imparcial e também parecer imparcial. A Justiça não se sustenta no prestígio pessoal de seus julgadores, mas na confiança pública que inspira”, completou.

“No caso do STF e dos tribunais superiores, um código de conduta não reduz a independência dos ministros; ao contrário, protege-a, afastando suspeitas, prevenindo constrangimentos e fortalecendo a autoridade moral das decisões da Corte”, prosseguiu.

A criação de um código de ética específico para membros de tribunais superiores se faz necessária, na avaliação de alguns magistrados ligados a Fachin, porque o Código de Ética da Magistratura não contempla ministros de Cortes como o STF, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), o Tribunal Superior do Trabalho (TST) e o Superior Tribunal Militar (STM).

Porém, os juízes dessas instituições são constantemente convidados para participar e palestrar, com remuneração, em eventos organizados por poderosos atores econômicos. Mesmo quando não há pagamento, é comum que os organizadores paguem a viagem e a acomodação dos ministros, o que também pode provocar conflito de interesse e questões éticas.

Como revelou o Estadão, ministros de tribunais superiores recebem cifras elevadas para palestrar em eventos. Especialistas apontam que essa prática, além de provocar conflitos éticos, cria acesso desigual à Justiça por parte dos agentes econômicos capazes de pagar para ter o ministro no seu evento. A falta de um código de ética impede sanções ou reprimendas a posturas de magistrados.

A decisão de Fachin ocorreu antes da informação de que o ministro do STF Dias Toffoli viajou para assistir a final da Libertadores, em Lima, no Peru, no jatinho de um empresário e na companhia do advogado de um dos diretores do Banco Master, instituição que é investigada em processo relatado pelo magistrado.

Casos como esse levaram a Suprema Corte dos Estados Unidos a instituir um código de ética para os seus membros no final de 2023. Dois membros do tribunal – Clarence Thomaz e Samuel Alito – se envolveram em um escândalo revelado pela imprensa americana de relações suspeitas e conflituosas com empresários, como, por exemplo, viagens totalmente custeadas para destinos luxuosos.

Eventos com o Fórum de Lisboa, popularmente conhecido como “Gilmarpalooza”, também são alvos constantes de questionamentos no Brasil sobre os seus limites éticos, tanto pela proximidade com grandes empresários que participam do encontro em Portugal quanto pelo fato de ser organizado pelo instituto de educação de um membro do STF, o decano Gilmar Mendes.

Weslley Galzo, Jornalista, de Brasília - DF para o Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 08.12.25 (edição online)

É hora do voto distrital

Fortalece vínculo entre eleitor e eleito, reduz custos das campanhas e diminui a influência de 'puxadores de votos' e do 'crime organizado'. 

Modernização do sistema é oportunidade de reconectar o Brasil com a política e construir um Parlamento mais responsável e transparente

O relator do projeto do voto distrital misto, deputado Domingos Neto (PSD-CE), ao lado do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), durante reunião de líderes - Marina Ramos - 23.out.25/Câmara dos Deputados

"Nada é mais poderoso do que uma ideia quando chegou o tempo certo", escreveu Victor Hugo. A frase descreve bem o momento atual da política brasileira: as pesquisas mostram um afastamento crescente entre eleitos e eleitores.

Levantamento do Datafolha revelou que 64% dos brasileiros não se lembram em quem votaram para deputado federal. Outro estudo, da Quaest, aponta que 66% desaprovam o trabalho desses representantes. Apenas 15% acompanham com regularidade a atuação dos parlamentares.

O relator do projeto do voto distrital misto, deputado Domingos Neto (PSD-CE), ao lado do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), durante reunião de líderes

O relator do projeto do voto distrital misto, deputado Domingos Neto (PSD-CE), ao lado do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), durante reunião de líderes - Marina Ramos - 23.out.25/Câmara dos Deputados

O resultado é um sistema com baixa responsabilização e pouca transparência. O modelo proporcional ainda cria distorções conhecidas, como a eleição de candidatos com votação mínima puxados por nomes de grande apelo. O caso mais emblemático é o do ex-deputado federal Enéas Carneiro, que em 2002 recebeu 1,5 milhão de votos e elegeu cinco candidatos com ele, um deles com apenas 275 votos.

Esse cenário alimenta a sensação de falta de representatividade e reforça a necessidade de mudanças. Não há soluções mágicas, mas há caminhos possíveis. Um deles é o voto distrital misto, modelo já adotado com sucesso na Alemanha, Reino Unido e EUA.

O sistema dividiria cada estado ou município em distritos equivalentes à metade das vagas a serem preenchidas. São Paulo, por exemplo, teria 35 distritos para suas 70 cadeiras na Câmara dos Deputados. Em cada distrito, cada partido apresenta um candidato, e o mais votado é eleito. A outra metade das vagas é definida pelo voto proporcional, contabilizado para o partido do candidato escolhido no distrito, com listas preordenadas e reserva mínima de um terço para as mulheres.

Os distritos são formados com base em critérios técnicos, utilizando dados do IBGE. O modelo aproxima representantes de suas comunidades, fortalece o vínculo entre eleitor e eleito, reduz os custos das campanhas e diminui a influência de "puxadores de votos" e do "crime organizado", que exploram brechas do sistema atual.

A proposta do voto distrital misto foi aprovada no Senado em 2017 e já teve sua constitucionalidade reconhecida pelo TSE e pelo STF. Desde 2018, aguarda deliberação na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Sua implantação não exige mudança na Constituição: basta uma lei complementar.

Recentemente, o Congresso Nacional voltou sua atenção à crise de representatividade, movimento que levou o presidente da Câmara, Hugo Motta, a designar o deputado Domingos Neto como relator do projeto.

A proposta foi então submetida às lideranças partidárias, que prontamente a aprovaram.

Este tema é defendido há anos pelas associações comerciais, entidades municipais formadas pela iniciativa privada, sem recursos públicos e com forte ligação com a vida econômica e social de suas comunidades.

Organizadas nas 27 federações estaduais e reunidas nacionalmente pela CACB (Confederação das Associações Comerciais e Empresariais do Brasil), uma rede com cerca de 2.500 entidades, as associações comerciais têm capilaridade e legitimidade para impulsionar esse debate. Acreditam que o voto distrital fortalece as comunidades, melhora a representação e contribui para um país mais eficiente e democrático.

É hora de avançar. A modernização do sistema eleitoral não é apenas um debate institucional, é uma oportunidade de reconectar o Brasil com a política, aproximar cidadãos de seus representantes e construir um Parlamento mais responsável e transparente.

Guilherme Afif Domingos, o autor deste artigo, é Secretário de Projetos Estratégicos do governo do estado de São Paulo e presidente emérito da CACB (Confederação das Associações Comerciais e Empresariais do Brasil). Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 08.12.25 (edição impressa).

É sério isso?

Ao ungir Flávio como sucessor político, Bolsonaro tenta prolongar relevância política. Cena foi mal coreografada e ninguém acreditou que candidatura do filho é para valer

O ex-presidente Jair Bolsonaro e seu filho Flávio - Sérgio Lima/AFP - SERGIO LIMA/AFP

Eu até entendo o que Jair Bolsonaro quis fazer ao ungir o filho Flávio como seu substituto na disputa presidencial. O ainda capitão deve ter imaginado que o gesto pacificaria a família, que está em pé de guerra, e prolongaria por mais algum tempo o maior poder político que ainda lhe resta, que é o de influir sobre o campo da direita no primeiro turno da eleição do ano que vem.

O raciocínio se assenta sobre uma assimetria fundamental. Se Bolsonaro der sua bênção a algum candidato da direita sobre o qual não tenha controle total, como Tarcísio de Freitas ou a algum outro governador, ele na prática se condena à irrelevância, pois teria esgotado seu poder derradeiro.

Dois homens em traje formal, o primeiro em primeiro plano desfocado e o segundo ao fundo focado, ambos com expressão séria. Ambiente interno com outras pessoas ao fundo.

E o quadro fica pior, pois o candidato bolsonarista, para ter uma chance de triunfar no segundo turno, em algum momento precisará afastar-se de Bolsonaro e da grande rejeição que vem com ele.

Com Flávio como indicado, o ex-presidente seguiria no controle do processo, até abril, se for trabalhar para que a direita tenha um candidato competitivo, ou até outubro, se opção for por manter o sobrenome Bolsonaro em evidência.

O problema é que a cena foi tão mal coreografada que ninguém acreditou que os Bolsonaros falavam a sério. Com menos de 48 horas de ungido, o próprio Flávio já anunciava que poderia desistir.

O último Datafolha mostra que o bolsonarismo, embora ainda longe de morto, é uma força em decadência. A maioria dos brasileiros (54%) acredita que a condenação de Jair foi justa —é golpista!— e que ele tentou evadir-se —é fujão!. Se o clã esticar demais a corda, poderá vê-la romper-se. O centrão, embora prefira ver a vitória de um presidente de direita em 2026, sobrevive bem em qualquer ambiente. O bloco não deixou de prosperar com Lula à frente do Executivo.

Resta uma boa notícia para a parcela dos brasileiros que acredita que criminosos condenados devem sofrer na cadeia. A prisão acelera o ocaso da influência política do ex-presidente, e a perda de status social acarreta intenso sofrimento psicológico.

Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, é jornalista. Foi editor de Opinião da Folha de S.Paulo. Publicado originalmente em 07. 12. 25 (edição impressa).

segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

A República? Ora, a república

O problema está justamente no vale-tudo, tudo mesmo, em que prevalece a mistura de interesses pessoais e partidários

Vista aérea do Congresso Nacional. Ao fundo a Praça dos Três Poderes — Foto: Cristiano Mariz/Agência O Globo/27-12-2023

Claro que é prerrogativa do presidente da República indicar nomes para o Supremo Tribunal Federal. Está na letra da lei. Mas o espírito da lei pede mais. O indicado, além do notório saber jurídico e da reputação ilibada, deve ser capaz de exercer a neutralidade e a independência para julgar até o próprio presidente que o indicou. Ingenuidade, dirão — e com razão, quando se observa a prática política de hoje. O problema está justamente aí, nesse vale-tudo — tudo mesmo — em que prevalece a mistura de interesses pessoais e partidários.

O presidente Lula exerce sua prerrogativa quando indica Jorge Messias, advogado-geral da União, a uma vaga no Supremo. Mas qual a principal credencial do indicado? Ser próximo do presidente, um quadro de sua confiança — como admitem abertamente seus colaboradores. Messias não é um estranho no mundo jurídico. Mas é, antes de tudo, um quadro do PT — tendo participado de várias gestões petistas e assessorado parlamentares do partido.

O presidente do Senado não tem a prerrogativa de indicar nomes ao Supremo. Pode sugerir, como fez, mas não pode reclamar ou ficar irritado quando “seu” nome não é contemplado. Sua função constitucional é, ao contrário, garantir que o indicado do presidente passe por uma sabatina justa e criteriosa, de modo que os senadores possam formar um juízo independente sobre o indicado. 

Ingenuidade de novo, dirão. Mas esse é o espírito que forjou as instituições republicanas. E que passa muito longe de práticas como acelerar ou atrasar a sabatina, em meio a barganhas — perdão, negociações. Além disso, se o indicado é um quadro do PT, por que o presidente do Senado não poderia brigar por um quadro do Senado, um nome mais próximo a ele?

E assim estamos hoje: a quilômetros de distância dos critérios de independência e competência acima de qualquer dúvida. Não é esse o único momento em que a República e o interesse público são maltratados.

Congresso aprova LDO em troca de 65% das emendas antes da eleição e dá aval para governo mirar piso da meta em 2026 e socorrer Correios

Ainda na semana passada, depois de meses de enrolação, o Congresso aprovou a Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2026. Garante o pagamento de 65% das emendas parlamentares no primeiro semestre. É descarado: os atuais deputados e senadores terão milhões à disposição justamente a tempo de irrigar suas campanhas eleitorais. Lula disse que, com as emendas, os parlamentares sequestraram o Orçamento. Tem razão. Mas o governo também não respeita o Orçamento.

Para aprovar a LDO, os governistas trocaram as emendas por “espaço fiscal” — dinheiro para gastar fora da meta. A meta para 2026 é um superávit de R$ 34 bilhões. Mas, se der zero, o governo a terá legalmente cumprido, pois o Orçamento oferece uma margem de tolerância. Na verdade, a mágica vai além: se fizer um déficit de uns R$ 10 bilhões, cumprirá a meta de superávit. É que alguns gastos não entram na contabilidade oficial, como os R$ 10 bilhões que podem ser alocados para tentar salvar os Correios.

O governo gasta o dinheiro efetivamente, gasta mais que arrecada, toma emprestado e, ainda assim, cumpre meta de superávit. Se o Orçamento é assim desmoralizado, por que os parlamentares se preocupariam com isso de equilíbrio fiscal?

No Rio, toda a política foi mais uma vez desmoralizada, com a prisão do presidente da Assembleia Legislativa, Rodrigo Bacellar. O que ele fazia com R$ 90 mil em dinheiro vivo, que guardava numa mochila?

Para coroar a semana, na sexta passada, na surdina, o Senado aprovou um reajuste salarial para servidores do Tribunal de Contas da União. A remuneração pode chegar a R$ 64 mil mensais, bem acima do teto constitucional de R$ 46.366,19. Esse extrateto, como no caso de milhares de juízes e outros funcionários, é isento de IR. Em 2026, o governo cobrará mais IR dos contribuintes que ganham mais de R$ 600 mil por ano (R$ 50 mil ao mês), para compensar a isenção dos que ganham até R$ 5 mil. Justiça tributária, explicam. Mas não para todos.

Carlos Alberto Sardenberg, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 08.12.25. Edição online.

Arsenal dos bandidos ficou mais forte e mais novo após decretos pró-armas de Bolsonaro, diz estudo

Levantamento do Instituto Sou da Paz analisou 255,9 mil apreensões na região Sudeste entre 2018 e 2023; fuzis e 9 mm aumentam. 

Há indícios de que armas recém-compradas migram ao mercado clandestino rapidamente, afirma entidade

A flexibilização promovida pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no acesso a armas no Brasil alterou o perfil do armamento apreendido pelas polícias no Sudeste e impulsionou a modernização do arsenal dos criminosos, aponta estudo realizado pelo Instituto Sou da Paz.

Intitulado "Arsenal do Crime: Análise do perfil das armas de fogo apreendidas no Sudeste", o levantamento investigou 255,9 mil apreensões realizadas pelas polícias estaduais e pela Polícia Federal de 2018 a 2023. Os dados foram obtidos por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação).

A quantidade de armas apreendidas sofre queda contínua desde a aprovação do Estatuto do Desarmamento, diz o estudo. Houve reversão em 2023, quando a região registrou 37.994 ocorrências do gênero ante 36.370 do ano anterior.

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) durante solenidade de assinatura de decreto presidencial que flexibilizou regras para atiradores esportivos, caçadores e colecionadores de armas - Pedro Ladeira - 7.mai.2019/Folhapress

O ex-presidente está hoje preso na Superintendência da PF em Brasília, condenado no processo da trama golpista.

A flexibilização do acesso a armas no Brasil foi promessa de campanha de Bolsonaro, que historicamente fez críticas ao Estatuto do Desarmamento e alegava que a medida permitia que as famílias se defendessem.

A mudança mais expressiva envolve pistolas 9 mm, cuja compra foi facilitada em norma editada por Bolsonaro em maio de 2019.

Entre todas as apreensões de pistolas na região Sudeste, modelos 9 mm respondiam por 28,5% das ocorrências em 2018, um ano antes da flexibilização, percentual que saltou a 50,5% em 2023. Seu uso até então era restrito às polícias e às Forças Armadas. O presidente Lula (PT) revogou as normas do antecessor ao assumir o Planalto. Na ocasião, o petista chamou as medidas de "criminosos decretos de ampliação do acesso a armas e munições, que tanta insegurança e tanto mal causaram às famílias brasileiras".

O crescimento redesenha as características do arsenal clandestino, diz a pesquisa. Apreensões de revólveres caíram de 42,2%, em 2018, para 37,6%, em 2023, à medida que as de pistolas foram de 25,1% para 35,9% no mesmo período.

Em São Paulo o padrão se repete. Ocorrências do gênero envolvendo pistolas saíram de 25,6% para 33,4% no primeiro e no último ano, respectivamente, enquanto a apreensão de revólveres caiu de 47,4% para 43,5%.

A participação das armas 9 mm no total de pistolas apreendidas no estado, enquanto isso, escalou de 8,4% para 37,2% no período analisado. Foram 273 apreensões no primeiro ano da série e 1.305 no último.

O levantamento aponta também que as armas apreendidas estão mais novas. Em 2018 houve 170 apreensões de modelos fabricados até dois anos antes da respectiva ocorrência, número que em 2023 chegou a 843 somente em território paulista.

Para o instituto, o aumento "traz um indicativo forte de que armas recém-adquiridas no mercado legal estão migrando rapidamente para o universo criminal".

Fuzis também entram nessa conta: foram 4.444 apreensões no Sudeste, 910 das quais em São Paulo. O estado vem registrando aumento: os fuzis abrangiam 0,9% das apreensões em 2018 e em 2023 corresponderam a 1,5%.

O número de armas artesanais no geral caiu durante período analisado.

O estudo diz que elas representam parte expressiva dos aparatos com maior poder de fogo, a exemplo do que ocorria em Santa Bárbara d'Oeste —onde uma fábrica clandestina foi fechada pela PF em operação que levou 11 pessoas a serem denunciadas neste ano. Investigações apontam que facções se utilizam desse tipo de fábrica para se armar.

Um dos decretos de Bolsonaro permitiu que CACs (Caçadores, Atiradores Desportivos e Colecionadores) comprassem por ano até 5.000 munições para armas de uso liberado e mil para as de uso restrito, como fuzis ou carabinas, por exemplo. O texto também foi revogado.

O que foi o decreto de armas de Bolsonaro revogado por Lula

"Eram quantidades absurdas, fora de qualquer razoabilidade, o que possibilitou esquemas de 'laranjas'", afirma o consultor sênior do Sou da Paz, Bruno Langeani, coordenador da pesquisa sobre o Sudeste.

No ano passado, relatório do TCU (Tribunal de Contas da União) mostrou que 2.579 pessoas mortas estavam registradas como CACs. Na ocasião, de acordo com o relatório do órgão, 9.387 pessoas com mandados de prisão estavam com o registro ativo para possuir armas. Outros 19.479 tinham processos de execução penal em aberto.

Para Langeani, o levantamento "é um raio-x do mercado criminal" e revela também que as armas ilegais estão mais presentes nas casas dos brasileiros e são usadas tanto por organizações como por cidadãos comuns, em crimes patrimoniais.

Em São Paulo, 31,8% das armas foram apreendidas em ambiente residencial, embora ocorrências em vias públicas sejam as mais frequentes.

O levantamento diz também que "a malha rodoviária é um ponto relevante de apreensões, sugerindo que uma parcela significativa estava em trânsito, inclusive para o Rio de Janeiro ou estados do Nordeste".

A capital paulista lidera as dez cidades paulistas com mais apreensões em números absolutos, com 14.842 armas capturadas de 2018 a 2023, mas não entra no ranking se considerados índices proporcionais, à frente do qual está Guaratinguetá.

Com 121 mil habitantes e 380 armas apreendidas no período, o município registrou 312,2 armas capturadas a cada cem mil habitantes, maior índice do estado, segundo a pesquisa.

A PM concentra 72% das 68.204 apreensões em São Paulo, percentual bastante superior aos 14,9% que registra a Polícia Civil, diferença que mostra fragilidades na política de segurança, diz Langeani.

"O estado não tem nenhuma delegacia especializada para combater tráfico de armas nem um trabalho de fiscalização específico contra grupos vulneráveis."

Ex-presidente alegou defender liberdade

Quando assinou os primeiros decretos flexibilizando as regras para armas, logo ao assumir o governo, Bolsonaro afirmou que a medida devolvia à população a vontade de decidir. "Por muito tempo, coube ao Estado determinar quem tinha ou não direito de defender a si mesmo, à sua família e à sua propriedade", declarou na ocasião.

Mais tarde, afirmou que armar a população poderia evitar golpes de Estado. "Nossa vida tem valor, mas tem algo com muito mais valoroso do que a nossa vida, que é a nossa liberdade. Além das Forças Armadas, defendo o armamento individual para o nosso povo, para que tentações não passem na cabeça de governantes para assumir o poder de forma absoluta", disse.

Na campanha de 2022, por sua vez, reafirmou as declarações e disse que armas garantem segurança às famílias e à soberania nacional. O instrumento, declarou, é "a garantia de que a nossa democracia será preservada".

André Fleury Moraes, jornalista, originalmente, para a Folha de S. Paulo, em 07.12.25, edição  online.

Combate ao crime: demanda urgente

A esperança só renascerá quando a autoridade do Estado se fizer presente em cada rua, em cada morro, em cada esquina onde hoje reina o medo

A megaoperação no Rio de Janeiro, com ao menos 120 mortos e mais de uma centena de prisões, é um retrato brutal de um país que há décadas convive com a corrosão de sua autoridade. O Estado brasileiro, leniente e omisso, permitiu que o crime organizado se transformasse em poder paralelo. O drama carioca não é uma tragédia isolada. É a consequência direta de anos de complacência, permissividade e cumplicidade institucional diante do avanço do narcotráfico.

A ação conjunta de 2,5 mil policiais civis e militares contra o Comando Vermelho nos complexos do Alemão e da Penha revelou o grau de militarização das facções criminosas. A reação foi a esperada: fogo pesado, barricadas, drones lançando bombas, pânico generalizado. O Estado, que por tanto tempo se ausentou dessas comunidades, agora precisa entrar nelas com blindados. E quando o faz, ideólogos, militantes e intelectuais de gabinete apressam-se em repetir os velhos slogans: “massacre”, “chacina”, “genocídio”. Mas o que esses termos escondem é a incapacidade de encarar a realidade. O verdadeiro genocídio é o das famílias pobres condenadas a viver sob o jugo do tráfico, sem liberdade, sem segurança, sem paz.

É uma tragédia. Nenhuma operação deve banalizar a vida. Mas é igualmente irresponsável transformar criminosos armados com fuzis em vítimas da sociedade. O combate ao crime não é uma escolha moral entre o bem e o mal absolutos, mas uma exigência de sobrevivência social. O Estado que abdica de reprimir o crime perde o direito de se chamar Estado. A omissão, como já adverti em outro contexto, é uma forma de cumplicidade.

A leniência com o crime organizado é o maior escândalo silencioso do Brasil contemporâneo. O poder público, por covardia, ideologia ou conveniência, tem fechado os olhos ao domínio territorial das facções. No Rio, comunidades inteiras vivem sob leis próprias, impostas por bandos armados que executam, punem e cobram impostos. Essa degradação institucional é fruto direto de duas ausências: a ausência do Estado como provedor de serviços e a ausência da autoridade como garantidora da ordem. Quando o Estado se retira, o tráfico ocupa. E quando tenta voltar, é recebido a tiros.

A complacência jurídica e política alimentou esse monstro. Decisões judiciais que restringem operações policiais em áreas dominadas pelo crime, como as do ministro Edson Fachin, criaram uma espécie de salvo-conduto para a bandidagem. A polícia, desmoralizada e engessada por regras impraticáveis, tornou-se alvo fácil de críticas e emboscadas. A cada operação, exige-se da força pública um padrão de perfeição impossível em um ambiente de guerra urbana. Exige-se que o policial arrisque a vida, mas não se admite que ele reaja. A inversão de valores chegou ao limite.

Não há democracia possível onde o crime é soberano. O Rio de Janeiro, laboratório trágico dessa anomia, vive um colapso moral e institucional. As facções não apenas controlam territórios, mas impõem códigos de conduta, toques de recolher e punições sumárias. Impedem moradores de visitar familiares em áreas rivais, controlam o comércio e a circulação. É um Estado paralelo em funcionamento – e, pior, tolerado por uma parcela da elite política e intelectual que prefere denunciar o “excesso policial” a enfrentar a causa real da violência.

A cooperação entre governos e forças de segurança, tão alardeada, continua frágil. Na megaoperação de terça-feira, as forças fluminenses agiram praticamente sozinhas. A ausência de uma coordenação nacional contra o crime organizado é mais uma expressão da nossa paralisia federativa. Enquanto o tráfico é uma empresa multinacional, o Estado brasileiro ainda se comporta como um conjunto de feudos desarticulados. É preciso integrar inteligência, cortar fluxos financeiros, endurecer penas e acabar com as portas giratórias das delegacias, onde o criminoso sai antes do policial que o prendeu.

O combate ao crime é uma demanda legítima e urgente da sociedade. Três em cada quatro brasileiros vivem em áreas onde o crime organizado está presente. Um em cada quatro afirma que facções impõem regras de comportamento em seu bairro. Esses números são intoleráveis. O cidadão comum – o trabalhador que pega ônibus às 5 horas da manhã, a mãe que teme o filho aliciado pelo tráfico – está farto do discurso das cátedras e das ONGs. Ele quer segurança, lei e ordem. Quer o direito elementar de viver sem medo.

É evidente que a polícia deve agir dentro da lei. Nenhum excesso deve ser tolerado. Mas também é evidente que a lei precisa proteger quem a defende. A sociedade brasileira não pode continuar refém de um sistema penal frouxo, de um Judiciário que legisla a favor da impunidade e de um discurso ideológico que desarma moralmente a ação do Estado. A paz não se conquista com conivência, mas com autoridade e justiça.

A sociedade brasileira clama por segurança, não por slogans. A esperança só renascerá quando a autoridade do Estado se fizer presente em cada rua, em cada morro, em cada esquina onde hoje reina o medo. Recuperar o território, física e moralmente, é mais do que uma tarefa policial. É uma missão civilizatória.

Carlos Alberto Di Franco, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo (edição on line), em 08.12.25

Supremo faz ‘ataque preventivo’ diante da iminência de perda de poder

Antes que suas atribuições sejam reduzidas, o Judiciário aumenta suas defesas — aqui e no resto do mundo


Decisões como a do ministro Gilmar Mendes fazem parte de um fenômeno bem documentado na literatura de ciência política e do direito comparado: cortes reagindo preventivamente quando percebem ameaça política real Foto: Wilton Junior

A decisão do ministro Gilmar Mendes — restringindo a possibilidade de pedidos de impeachment contra ministros do STF exclusivamente à Procuradoria Geral da República — foi recebida com surpresa e acusada, por alguns, de autoproteção corporativa. Mas, ao contrário do que parece, o movimento deve ser interpretado como parte de um fenômeno bem documentado na literatura de ciência política e do direito comparado: cortes reagindo preventivamente quando percebem ameaça política real.

Em democracias, tribunais constitucionais dependem de legitimidade e de estabilidade institucional para exercer suas funções. Quando ambos os pilares começam a estremecer por ataques diretos de outros poderes, é comum que as cortes adotem decisões que funcionam como escudos preventivos contra tentativas de redução de suas competências ou captura-las politicamente.

Decisões como a do ministro Gilmar Mendes fazem parte de um fenômeno bem documentado na literatura de ciência política e do direito comparado: cortes reagindo preventivamente quando percebem ameaça política real

Decisões como a do ministro Gilmar Mendes fazem parte de um fenômeno bem documentado na literatura de ciência política e do direito comparado: cortes reagindo preventivamente quando percebem ameaça política real Foto: wilton junior

Esse comportamento é previsível. Instituições não são atores neutros em ambientes de conflito. Tom Ginsburg e Aziz Huq mostram que, quando os custos de inação superam os custos de ação, supremas cortes tendem a “endurecer” e produzir jurisprudência defensiva, destinada a aumentar sua resiliência diante de ameaças externas. Da mesma forma, estudos recentes mostram que o desgaste da confiança pública no Judiciário, hoje observável em várias democracias, incentiva movimentos estratégicos de autopreservação por parte das cortes.

O caso brasileiro se encaixa perfeitamente nesse padrão. O Congresso discute, há meses, propostas para reduzir poderes do STF. Nesse ambiente, a probabilidade de uma reação preventiva aumenta. A decisão de Gilmar Mendes, nesse sentido, não deve ser vista isoladamente, mas como parte de um tabuleiro institucional mais amplo.

Não se trata de um fenômeno brasileiro. Em Israel, por exemplo, a High Court of Justice realizou um movimento semelhante em 2023–2024, quando o governo de Binyamin Netanyahu tentou aprovar reformas para enfraquecer a corte. A resposta do Judiciário israelense foi clara: decisões robustas, assertivas e coordenadas para bloquear, antes que fosse tarde, a erosão de suas competências. O que ocorreu ali se tornou um caso paradigmático de preemptive strike judicial — uma reação institucional à iminência de perda de poder.

O mesmo mecanismo ajuda a explicar o comportamento do STF agora. Quando o Legislativo sinaliza que pretende mudar as regras do jogo, a tendência é que o tribunal identifique a conjuntura como perigosa. Se o sistema político ameaça alterar os pesos e contrapesos, a resposta do Judiciário tende a ser justamente reforçá-los.

Carlos Pereira, o autor deste artigo, é cientista político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV EBAPE) e sênior fellow do CEBRI. Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 08.12.25

burocracia como negócio

Os oligopólios notariais são a mais próspera anomalia do Brasil: feudos travestidos de função pública, que prometem segurança jurídica, mas entregam privilégios, custos abusivos e atraso

Em 25 dos 27 Estados brasileiros, o ofício mais bem pago não é o de empresário, médico ou jogador de futebol. É o de tabelião – nos outros dois, é o de juiz ou procurador. Como radiografou uma reportagem do Estadão, uma casta de delegatários investidos de “fé pública” subverte há séculos uma função estatal em “mina de ouro vitalícia”. Ganha-se mais autenticando assinaturas do que dirigindo empresas ou salvando vidas. É o retrato do patrimonialismo: a burocracia como negócio.

O cartel cartorial é uma anomalia que sobreviveu à República, à industrialização e à revolução digital. Enquanto países modernos digitalizaram seus registros e integraram cadastros, o Brasil cultiva uma distopia de balcões, carimbos e taxas. Criados para dar segurança jurídica, os cartórios consolidaram um ecossistema de privilégios blindado pelas corporações de juízes e procuradores, que levam parte do butim. Um microcosmo do clientelismo, onde a função é pública, e os lucros, privados.

Em média, os tabeliães faturam R$ 156 mil mensais, e alguns mais de meio milhão. A receita anual dos cartórios – mais de R$ 30 bilhões – supera o orçamento somado de programas como o Farmácia Popular, o Mais Médicos e a merenda de todas as crianças da rede pública. Um enclave rentista sem concorrência cimentado por lei – verdadeiros feudos de arrecadação.

O mantra da “segurança jurídica” dá verniz a um Leviatã notarial que sobrevive de rituais anacrônicos. Em pleno século 21, o cidadão ainda precisa reconhecer firma, autenticar cópias e peregrinar de guichê em guichê para provar que é quem diz ser – eternamente cativo de uma burocracia bizantina que transforma o tempo em tributo e condena o País a ser um dos mais lerdos e caros do planeta para abrir empresas, registrar propriedades e executar contratos.

A distorção é, a um tempo, moral e econômica. Segundo a Câmara Brasileira da Indústria da Construção, a burocracia cartorial encarece a casa própria em até 12% – uma taxa informal sobre o direito de morar. As taxas formais variam grotescamente – o protesto de uma dívida pode custar R$ 69 no Ceará e R$ 4 mil no Piauí. Essa máquina de produzir desigualdades e asfixiar a produtividade não é acidente: é produto do lobby do carimbo e do balcão que bloqueia toda tentativa de simplificação, padronização ou transparência.

O contraste internacional é humilhante. Na Suécia, registros civis e fiscais são totalmente digitais e gratuitos. Portugal privatizou o notariado, mas fixou tarifas e limitou ganhos. Na França, os notários são oficiais nomeados pelo Estado, com tabela nacional e controle público. Até a Estônia permite abrir empresas em minutos, com total rastreabilidade digital. Já o Brasil conserva capitanias hereditárias sustentadas por selos, carimbos e taxas do século 19.

Não se trata de destruir a fé pública, mas de modernizá-la. O País precisa de um novo pacto cartorial, guiado por eficiência, transparência e concorrência. Isso implica consumar a digitalização dos registros públicos; fixar um teto remuneratório vinculado ao serviço público; padronizar e publicar os emolumentos sob autoridade independente; e permitir concorrência territorial e fé pública compartilhada com instituições certificadas, como já ocorre em Portugal. E, sobretudo, quebrar a simbiose entre burocracia, Justiça e política que perpetua essa reserva de mercado oligárquica.

Nenhum país que aspire à modernidade pode tolerar um despotismo capilarizado que transforma o ato de registrar uma escritura em privilégio de casta. A digitalização e a competição não ameaçam a segurança jurídica – apenas retiram dos carimbos o monopólio da confiança. É hora de devolver ao cidadão o tempo e o dinheiro sequestrados por uma elite extrativista.

Desburocratizar os cartórios é mais do que uma reforma administrativa: é um gesto civilizacional. É libertar o Brasil do cativeiro do papel, dos labirintos de formulários e dos rituais de submissão ao balcão. Nenhuma democracia decente transforma o selo público em fortuna privada. A República começa quando a assinatura deixa de ser negócio – e volta a ser um ato de fé na lei, não no tabelião.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 10..11.25

domingo, 7 de dezembro de 2025

Câmara tem de cassar Eduardo, Ramagem e Zambelli

Deputados fugitivos têm condenações na Justiça; filho de Bolsonaro tramou contra o país e falta sessões

Plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília (DF) - Kayo Magalhaes/Divulgação Câmara dos Deputados

Com provável condenação de Eduardo, os três ficarão inelegíveis; cassação acrescentaria rejeição de práticas ofensivas ao mandato popular

A imagem mostra o plenário da Câmara dos Deputados do Brasil, com um formato circular. Há várias cadeiras vazias e algumas pessoas em pé e sentadas, discutindo. No fundo, há painéis eletrônicos exibindo informações. O ambiente é bem iluminado e possui uma decoração moderna.

A Câmara dos Deputados depara-se com a inusitada situação de ter de lidar com um trio de parlamentares que fugiu do país para escapar das garras da Justiça. Mandatos eletivos, conferidos no exercício da soberania popular, deveriam ser cassados só em situações excepcionais pelos pares —chegou-se a esse ponto nos três casos.

Carla Zambelli (PL-SP), presa na Itália enquanto aguarda a conclusão de processo de extradição, e Alexandre Ramagem (PL-RJ), que se evadiu para os Estados Unidos, têm contra si diplomas de condenação criminal transitada em julgado expedidos pelo Supremo Tribunal Federal.

A deputada foi condenada a dez anos de prisão por invasão do sistema computacional do Conselho Nacional de Justiça e emissão de um mandado falso de prisão contra o ministro Alexandre de Moraes. Em outro processo, pegou mais cinco anos pela famigerada perseguição, de arma em punho, a um provocador na véspera do segundo turno de 2022.

Ramagem, ex-chefe da Abin na administração Jair Bolsonaro (PL), foi sentenciado a 16 anos de prisão no mesmo julgamento que condenou o ex-presidente e outros seis réus por tentativa de golpe de Estado. Como não cabe mais recurso desta decisão, tampouco das contra Zambelli, a cassação dos mandatos decorre de um comando constitucional.

No artigo 15, a Carta de 1988 abre poucas exceções a permitir a anulação dos direitos políticos, sendo uma delas a "condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos". Resta em aberto, como tema de longa controvérsia, o modo como essa ordem deve ser cumprida.

O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), parece inclinado a submeter a decisão, no caso da dupla condenada, ao plenário da Casa. Não é despropositado consultar todo o corpo dos deputados, já que os pares deveriam resolver sobre perda de mandato, e espera-se que a ampla maioria vote pela cassação em obediência à Constituição.

A situação do fujão Eduardo Bolsonaro (PL-SP) é distinta, embora ele mereça a mesma punição. Saiu do país para tramar com o governo dos Estados Unidos contra a soberania e a economia brasileiras e falta às sessões desde março último. Nesse período, os contribuintes já desembolsaram R$ 1 milhão para sustentar a estrutura do representante que não representa mais ninguém.

Pelas regras da Câmara sobre ausências, o seu posto de deputado poderá ser declarado vago em março de 2026. Concomitantemente, responde à revelia a um processo no STF por coação que deverá colocá-lo na mesma situação de Zambelli e Ramagem.

Com a provável condenação de Eduardo Bolsonaro, os três ficarão inelegíveis pelos próximos ciclos eleitorais, o que para políticos já significa castigo severo. A cassação dos mandatos acrescentaria a seus deploráveis currículos a rejeição, pelos pares, de práticas incompatíveis com o exercício da função parlamentar.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 06.12.25 (edição impressa). / editoriais@grupofolha.com.br


Venezuela e a impunidade de Trump

A estigmatização de Maduro cria um vácuo legal onde Trump pode operar com impunidade, mas é um território extremamente perigoso.

            DA FOME    

Não estamos preparados para o poder sem máscaras. E muito menos quando se trata dos Estados Unidos. Quando a Rússia ou a China violam o direito internacional, chamamos isso pelo que é: pressão, ameaças, abusos. Se for Washington, a gramática muda. Falamos de "inconsistências", de "sinais confusos", de "dificuldade de decifração". O eufemismo é um refúgio cognitivo: evita reconhecer que a potência hegemônica ocidental voltou a jogar conforme as regras, algo que denunciou durante décadas em sussurros quando se tratava de outros países. Na Venezuela, essa deriva atinge sua expressão mais brutal . Trump declarou o espaço aéreo de um país soberano "fechado" sem qualquer base legal. Ordenou o maior destacamento naval no Caribe desde a crise dos mísseis e está realizando operações em alto-mar com dezenas de mortes sem provas ou julgamento, justificando-as como parte da luta contra o narcotráfico, enquanto anuncia sua intenção de perdoar Juan Orlando Hernández , o ex-presidente hondurenho condenado por conluio com narcotraficantes. O objetivo é claro: acelerar a queda de Maduro e colher os benefícios na forma de petróleo. O que não está claro é o limite.
Tudo acontece à luz do dia, e quase ninguém diz uma palavra, nem mesmo a Espanha, onde a política latino-americana costuma provocar reações imediatas e exageradas. Por que esse silêncio? Uma razão pode ser estrutural: as ferramentas diplomáticas são inúteis contra uma potência que não reconhece regras nem árbitros, nem mesmo a obrigação de fingir. A outra razão é mais perturbadora: Maduro é um ator desacreditado, e isso serve como um atalho moral. Como ele cometeu violações dos direitos humanos e perdeu legitimidade, parece menos grave para uma grande potência desrespeitar as regras. Essa estigmatização cria um vácuo normativo onde Trump pode operar com impunidade, mas é um terreno extremamente perigoso. Se hoje toleramos a arbitrariedade contra Caracas porque “ela merece”, amanhã ela será aplicada a qualquer cenário. A erosão do direito internacional sempre começa onde é politicamente vantajoso desviar o olhar.

Aqueles que hoje fecham os olhos, movidos pelo desprezo por Maduro, devem lembrar que a normalização do abuso é sempre performativa. Não é que Trump tenha poder e por isso ele seja normalizado; é que validar sua impunidade é o que amplifica seu poder. O que toleramos por conveniência acaba se tornando um precedente e se estabelecendo como prática legítima. Cada silêncio ou gesto de indulgência, cada crítica adiada, contribui para ampliar a margem de manobra daqueles que desrespeitam as regras. E aí reside o verdadeiro perigo: não em aplicar arbitrariedade contra um regime impopular, mas no fato de que, uma vez aceita, essa arbitrariedade fica disponível para qualquer situação. A comunidade internacional não apenas testemunha a expansão do poder de Trump, como a favorece abertamente ao não se incomodar, porque quem é afetado é Maduro. Porque uma coisa é exercer pressão diplomática, aplicar sanções ou buscar uma transição democrática, e outra bem diferente é ignorar execuções extrajudiciais em alto-mar ou a declaração ilegal de uma zona de exclusão aérea. E tudo isso acontece sob o governo de um presidente que persegue juízes e procuradores do Tribunal Penal Internacional e exige anistias gerais para apagar os crimes de guerra de Putin e Netanyahu. Se essa é a “libertação” que Trump oferece, a Venezuela pode descobrir que sempre há mais um degrau na escada da desordem. E o resto do mundo pode aprender que um poder sem máscaras só precisa, para se expandir, que o resto de nós continue fingindo que o que todos nós, sem exceção, sabemos que está acontecendo, não está.

Mariam Martinez-Bascuñán, a autora deste artigo, é Professora de Teoria Política na Universidade Autônoma de Madri. Autora do livro "Gênero, Emancipação e Diferenças" (Plaza & Valdés, 2012) e coautora de "Populismos" (Alianza Editorial, 2017). Entre junho de 2018 e 2020, foi editora de Opinião do jornal EL PAÍS. Atualmente, é colunista e colaboradora do mesmo jornal, além de membro de seu conselho editorial. Publicado originalmente por EL PAÍS, em 07.12.25

'O verdadeiro perigo da inteligência artificial é a estupidez humana'

 "Trabalhamos de graça para o Instagram ao fazer o upload de nossas fotos, para que a rede social exista e fature milhões. É preciso estar consciente e aproveitar os benefícios das plataformas sem deixar que os riscos nos prejudiquem", afirma.

Laura G. De Rivera acredita que os algoritmos estão determinando nossas vidas sem que percebamos (Crédito: Laura G. De River)

É noite e você decide sair para jantar. É possível que seu parceiro não saiba o que você quer comer, mas a inteligência artificial sabe: à tarde, ela te viu assistindo a vídeos de tacos e tem certeza de que agora você não consegue parar de pensar neles.

"Se não tomarmos decisões, outros as tomarão por nós", escreve a jornalista e escritora espanhola Laura G. de Rivera em seu livro Esclavos del algoritmo: Manual de resistencia en la era de la inteligencia artificial (Escravos do Algoritmo: Um Manual de Resistência na Era da Inteligência Artificial, em tradução livre), resultado de anos de pesquisa.

"Vivemos imersos em pensamentos, desejos e sentimentos impostos de fora porque, ao que parece, nós, humanos, somos bastante previsíveis. Basta aplicar a estatística às nossas ações passadas, e é como se alguém lesse nossa mente", continua.

A precisão em prever nossas necessidades ou desejos é tão grande que Michal Kosinski, psicólogo e professor da Universidade Stanford (EUA), demonstrou em seus experimentos que um algoritmo bem treinado, com dados digitais suficientes, pode prever o que você quer ou do que você gosta mais do que a sua mãe.

Soa bem, em princípio, a ideia de que a inteligência artificial possa prever os interesses de uma pessoa com extrema precisão. Mas isso tem um preço, diz Rivera, e é um preço alto: "Perdemos a liberdade, perdemos a capacidade de sermos nós mesmos, perdemos a imaginação."

"Trabalhamos de graça para o Instagram ao fazer o upload de nossas fotos, para que a rede social exista e fature milhões. É preciso estar consciente e aproveitar os benefícios das plataformas sem deixar que os riscos nos prejudiquem", afirma.

A BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) conversou com Rivera durante o Hay Festival, que acontece entre 6 a 9 de novembro na cidade peruana de Arequipa, evento que reúne 130 participantes de 15 países.

Capa do livro "Esclavos del algoritmo", com o título em letras vermelhas. (Crédito: Penguin Random House)

"A informação é poder. E a corrida para se apropriar dela está desenfreada", escreve a autora

Qual é a solução para não nos tornarmos escravos do algoritmo?

A solução, na minha opinião, é muito simples, está ao alcance de qualquer pessoa, é gratuita e não tem impacto ambiental. É simplesmente pensar. Em outras palavras, usar o cérebro. É uma capacidade humana que está em desuso, que se perdeu.

A cada momentoem que não estamos trabalhando ou com outras pessoas, pegamos o celular e nos distraímos com a tela. Já não pensamos na sala de espera do médico nem quando nos entediamos em casa.

Esses espaços que antes serviam para pensar estão hoje completamente ocupados por uma distração constante. Pelo smartphone, recebemos um bombardeio de estímulos que nos impede de refletir.

Há outras coisas que se podem fazer, mas para mim esta é a mais básica e a mais fácil. Só o pensamento crítico pode defender a liberdade individual diante do controle algorítmico e da vontade de terceiros.

É quase impossível não fornecer dados ao se inscrever em uma plataforma. E ainda mais difícil ler todas as letras miúdas de um serviço ou rejeitar os "cookies" toda vez que entramos em um site. Nos tornamos preguiçosos?

Somos um pouco preguiçosos e um pouco marionetes, mas também nos falta informação.

Muita gente não percebe que, ao passar horas no TikTok, está trabalhando de graça para a plataforma. Elas fornecem à plataforma todos os seus dados de comportamento online, e esses dados têm valor econômico.

Por isso, a educação é fundamental: ela explica como funciona o modelo de negócios dessas grandes plataformas.

Como é possível que o Google seja uma das empresas mais ricas do mundo se não nos cobra pelos seus serviços? 

Refletir sobre isso é muito importante para que as pessoas entendam o quão valiosas são todas as informações que fornecemos sobre nós mesmos.

"Decidir nos assusta muito, e preferimos ser como robôs, que nos digam o que fazer", diz a jornalista (Crédito: Getty Images)

Quais são os perigos da inteligência artificial?

Na realidade, o verdadeiro perigo é a estupidez humana, porque a inteligência artificial em si não precisa fazer nada com você; ela é apenas composta de zeros e uns.

O problema é que somos tão preguiçosos que, se as coisas forem feitas por nós, melhor ainda. Isso nos coloca numa posição em que somos mais facilmente manipulados.

Vivemos um adormecimento generalizado da vontade. Resignamo-nos diante da digitalização do sistema de saúde, da vigilância em massa e da educação online dos filhos. Aceitamos injustiças, abusos e ignorância como fatos inevitáveis contra os quais não nos rebelamos, por pura preguiça.

Quais podem ser as consequências de confiar inteiramente nas previsões automáticas de um sistema algorítmico?

Quando delegamos decisões importantes, que podem até envolver vida ou morte, o risco é muito alto, sobretudo porque estudos mostram que os humanos tendem a acreditar que, se um computador diz algo, deve ser verdade, mesmo que pensemos diferente.

Então, a quem você vai deixar que decida? À sua mãe, ao seu professor, ao seu chefe ou à inteligência artificial?

Esse é um problema muito antigo da humanidade. Gosto muito do livro do psicanalista, sociólogo e membro da Escola de Frankfurt, Erich Fromm, O Medo à Liberdade, que é dedicado precisamente a isso.

Fromm argumenta que os seres humanos preferem receber ordens porque têm pavor da ideia de a decisão ser tomada por eles mesmos. Tomar decisões nos assusta, e preferimos ser como robôs, recebendo ordens. E Fromm já dizia isso no começo do século 20.

São necessários centros de dados e outras infraestruturas cada vez maiores para a inteligência artificial (Crédito: Getty Images)

Existe alguma maneira de evitar divulgar nossos dados online?

Claro que sim. Há maneiras de não entregar nossos dados, ou de entregar apenas o mínimo necessário. Mas o mais importante é entender como as plataformas funcionam. Só assim é possível tomar medidas, ainda que seja apenas para dificultar um pouco a vida dos que lucram com seus dados e com sua vida. É possível adotar pequenos hábitos, como rejeitar os "cookies" ao entrar em um site.

O que mais podemos fazer?

Podemos também falar sobre a necessidade de regulamentações que nos protejam e sobre o desenvolvimento da ética por parte das empresas que utilizam inteligência artificial.

A sra. está se referindo ao caso Edward Snowden, que expôs os sistemas de vigilância em massa usados ​​pelas agências de inteligência dos EUA?

Sim. Para mim, Snowden é um dos heróis deste século para mim, mas existem outros. O caso dele é o mais conhecido.

Há também Sophie Zhang, cientista de dados do Facebook, que foi demitida após alertar internamente sobre o uso sistemático de contas falsas e bots por governos e partidos políticos para manipular a opinião pública e semear o ódio.

Zhang percebeu que, em muitas partes do mundo, na América Latina, na Ásia e até mesmo em alguns lugares da Europa, havia políticos usando contas falsas, com seguidores inexistentes, com curtidas e compartilhamentos incessantes, para enganar os cidadãos e fazê-los acreditar que tinham apoio e aceitação popular que não eram verdadeiros.

Toda a complexa teia de informações sobre nossa vida privada é armazenada em grandes centros de dados ((Crédito:Getty Images)

Quando relatou o problema a seus superiores, Sophie Zhang percebeu, surpresa!, que ninguém queria fazer nada para resolvê-lo.

Demorou um ano, por exemplo, para que o Facebook apagasse a rede de seguidores falsos do então presidente de Honduras, Juan Orlando Hernández, declarado culpado pelo Tribunal Federal de Distrito em Nova York por conspirar para importar cocaína aos Estados Unidos e por posse de metralhadoras.

Em seu livro, a sra. também menciona o caso da engenheira de computação Timnit Gebru, codiretora da equipe de Ética em IA do Google, que também foi demitida.

Sim, por denunciar que os algoritmos favorecem a discriminação racial e de gênero. Ela alertou que os grandes modelos de linguagem podiam representar um risco: as pessoas poderiam acreditar que eram humanos e ser manipuladas por eles. Apesar da carta de protesto assinada por mais de 1.400 funcionários da empresa, Gebru acabou demitida.

Outro "denunciante" é Guillaume Chaslot, ex-funcionário do YouTube, que descobriu que o algoritmo de recomendações empurrava sistematicamente os usuários para conteúdos sensacionalistas, teorias da conspiração e conteúdo polarizador.

Que esperança nos resta?

Sabemos com certeza que, por mais que se tente, um programa de software não é capaz de oferecer a menor dose de criatividade para inventar novas opções, isto é, opções que não se baseiem na estatística de dados passados.

Tampouco será capaz de fornecer soluções baseadas na empatia, para se colocar no lugar do outro, nem na solidariedade, para buscar a própria felicidade na felicidade dos outros.

Essas três qualidades são exclusivamente humanas por definição.

Cristina J. Orgaz, originalmente, do Hay Festival de Arequipa, Perú, para a BBC News Mundo, em 09.11.25