Sem um Parlamento capaz de legislar com coerência, técnica e compromisso social, a democracia representativa se esvazia
A democracia representativa, tal como concebida por Norberto Bobbio e John Stuart Mill, funda-se na premissa de que o povo, por meio de eleições periódicas e livres, delega a representantes a tarefa de formular leis que expressem seus interesses, preservem direitos e respondam às demandas concretas da sociedade. Essa forma de governo pressupõe que o Parlamento seja um espaço de deliberação qualificada, onde se produz legislação capaz de enfrentar problemas reais e promover o bem comum.
Os regimes políticos que hoje se caracterizam como democráticos originaram-se, direta ou indiretamente, a partir das revoluções do final do século 18, notadamente na França e nos Estados Unidos, sendo que a partir do século 19, a ideia do povo como única fonte de legitimação do poder político começa a se impor progressivamente (BÔAS FILHO, 2013, p. 652).
A democracia, como forma de governo, é antiga e, não obstante o transcorrer dos séculos e todas as discussões que se travaram, o significado descritivo do termo não se alterou. A mudança ocorrida não foi sobre o titular do poder político, que sempre reside no povo, mas na forma como ele é exercido: da democracia direta dos antigos à democracia representativa dos modernos (BOBBIO, 2023, p. 56).
Diversamente da democracia direta exercida na Grécia antiga, em que os cidadãos da polis se reuniam na Ágora para deliberar sobre as questões de interesse da coletividade, na moderna democracia representativa, o povo elege representantes que defendem seus interesses.
Nesse contexto, o Legislativo deve legislar levando em consideração o ordenamento jurídico em vigor, avaliando a legislação que possua afinidade com a proposição apresentada. Ronald Dworkin, ao desenvolver a metáfora do “romance em cadeia”, originalmente concebida para o Judiciário, a fim de combater o ativismo judicial, oferece uma imagem igualmente aplicável à atividade legislativa.
Tal qual um grupo de romancistas que escreve coletivamente uma obra, cada novo capítulo precisa dar continuidade coerente à história já construída, adaptando-se aos fatos anteriores e mantendo-se fiel ao enredo e à intenção da narrativa.
No plano Legislativo, isso significa que as proposições devem ser compatíveis com o conjunto normativo vigente e com os desígnios constitucionais, funcionando como a continuidade de um projeto nacional que integra história, cultura e necessidades sociais. Legislações extravagantes ou repetidas, que colidem com o direito positivo ou reproduzem normas já existentes, rompem a lógica dessa continuidade e comprometem a coerência do “romance” institucional.
O cenário brasileiro recente revela um preocupante distanciamento dessa missão. Segundo levantamento do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde, publicado pelo Estadão (14/8, A20), foram analisadas 2.568 proposições apresentadas no Congresso em 2024, das quais 1.314 tratavam de saúde.
Dentre estas, 37% contrariavam leis vigentes e 26% apenas repetiam normas já em vigor, sem qualquer inovação. Exemplos incluem propostas que afrontam a reforma psiquiátrica (2001) ou o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990). Além disso, 23% das proposições na área de saúde mental contrariavam princípios da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), como a prioridade ao atendimento comunitário em detrimento da internação, e 14% possuíam baixa relevância, como a criação de datas comemorativas.
Trata-se de um sintoma claro de esvaziamento do papel representativo do Legislativo, que deveria ser um dos pilares da democracia. A lógica representativa exige que o Parlamento seja não apenas um produtor de leis, mas um canal de diálogo entre o povo e o Estado, além de um mediador das demandas sociais.
Quando os representantes se afastam dessa função, abrem-se espaços para populismos, extremismos e para o uso arbitrário de conceitos como “patriotismo” ou “defesa da democracia” para legitimar práticas contrárias à própria essência democrática.
O enfraquecimento do Legislativo enquanto instância de mediação gera consequências graves: compromete o equilíbrio entre os Poderes, corrói a confiança pública nas instituições e aprofunda a polarização política.
Mais do que improdutividade, o problema está na baixa qualidade e na irrelevância social de parte significativa da produção legislativa, voltada a interesses corporativos ou eleitorais, em detrimento do interesse público.
Infelizmente, o que se observa atualmente é que grande parte do Legislativo brasileiro não mais cumpre esse papel, ocupando-se com proposições que não visam o bem dos seus representados, mas o interesse de poucos.
Propostas que pleiteiam anistia para determinados grupos, o fim do foro privilegiado apenas em contextos politicamente oportunistas ou mesmo o apoio a governos estrangeiros em detrimento dos interesses do próprio País e do seu povo revelam um distanciamento preocupante da missão constitucional que deveria guiar a atividade parlamentar.
Sem um Parlamento capaz de legislar com coerência, técnica e compromisso social, a democracia representativa se esvazia e o projeto constitucional brasileiro corre o risco de se tornar apenas um registro histórico, um “romance” interrompido antes de seu melhor capítulo.
O resgate dessa instituição passa por recolocar o interesse público no centro da produção legislativa, assegurar a coerência normativa e reafirmar o compromisso com os princípios constitucionais. Sem isso, o Parlamento não apenas perderá sua relevância, mas colocará em risco a legitimidade e a estabilidade de todo o edifício democrático brasileiro.
Andeirson da Matta Barbosa, o autor deste artigo, é Mestre em Direito. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 20.08.25