Esse governo Trump 2 não passa de uma farsa cruel e os EUA estão se transformando em uma nação delinquente
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, participa de um evento na Casa Branca Foto: Manuel Balce Ceneta/AP
Tanta loucura acontece no governo Trump todos os dias que algumas coisas absolutamente estranhas mas incrivelmente reveladoras se perdem no ruído. Um exemplo recente foi a cena de 8 de abril na Casa Branca, na qual, em meio à sua acirrada guerra comercial, nosso presidente decidiu que era o momento perfeito para assinar um decreto destinado a impulsionar mineração de carvão.
“Estamos trazendo de volta uma indústria que foi abandonada”, disse o presidente Donald Trump cercado por mineiros de carvão com capacetes, membros de uma força laboral que caiu de 70 mil trabalhadores para cerca de 40 mil na década recente, segundo noticiou a Reuters. “Vamos colocar os mineiros de volta ao trabalho.” Para completar, Trump acrescentou sobre esses mineiros: “Se lhes déssemos uma cobertura na Quinta Avenida e um outro tipo de emprego eles ficariam infelizes. Eles querem minerar carvão, é isso o que eles amam fazer”.
É louvável que o presidente homenageie homens e mulheres que trabalham com as mãos. Mas escolher elogiar mineiros de carvão ao mesmo tempo que tenta zerar a geração de empregos em tecnologias limpas — em 2023, a indústria de energia eólica dos EUA empregava aproximadamente 130 mil trabalhadores, e a indústria de energia solar, 280 mil — sugere que Trump está preso a uma ideologia de direita que não reconhece os empregos nas indústrias verdes como trabalhos “reais”. De que forma isso nos fortaleceria?
Esse governo Trump 2 não passa de uma farsa cruel. Trump concorreu a outro mandato não por saber minimamente como transformar os Estados Unidos para o século 21. Ele concorreu para ficar fora da cadeia e se vingar daqueles que, com evidências reais, tentaram responsabilizá-lo perante a lei. Duvido que ele já tenha passado cinco minutos estudando a força de trabalho do futuro.
Portanto Trump retornou à Casa Branca com a cabeça ainda repleta de ideias dos anos 70. De volta ao poder, ele lançou uma guerra comercial sem aliados nem nenhuma preparação séria — razão pela qual ele altera suas tarifas quase que diariamente — e sem compreender a medida em que a economia global é atualmente um ecossistema complexo no qual produtos são montados a partir de componentes fabricados em vários países. E então ele nomeia para travar essa guerra um secretário de Comércio que acredita que milhões de americanos estão mortos de vontade de substituir os trabalhadores chineses “que aparafusam pequenos parafusos para fabricar iPhones”.
Mas essa farsa está prestes a afetar todos os americanos. Ao atacar nossos aliados mais próximos — o Canadá, o México, o Japão, a Coreia do Sul e a União Europeia — e nossa maior rival, a China, ao mesmo tempo deixando claro que favorece a Rússia em vez da Ucrânia e prefere indústrias de energia que destroem o meio ambiente a indústrias voltadas para o futuro, e o planeta que se dane, Trump está provocando uma grave perda de confiança global nos EUA.
O mundo percebe agora os EUA de Trump exatamente na forma que o país está se tornando: uma nação delinquente, liderada por um ditador impulsivo e desconectado em relação ao estado de direito e a outros princípios e valores constitucionais americanos.
E vocês sabem o que nossos aliados democráticos fazem com Estados delinquentes? Liguemos alguns pontos.
Primeiro, eles deixam de comprar títulos do Tesouro como antes. Portanto, os EUA precisarão oferecer-lhes taxas de juros mais altas para que isso aconteça — o que afetará toda a nossa economia, do financiamento de carros até o financiamento imobiliário, passando pelo custo dos serviços da dívida nacional, em detrimento de tudo mais.
“Será que as decisões espasmódicas e os impostos aduaneiros do presidente Trump estão fazendo com que os investidores do mundo se afastem do dólar e dos títulos do Tesouro dos EUA?”, questionou um editorial do Wall Street Journal, no domingo, sob o título “Existe um novo prêmio de risco para os EUA?”. É cedo demais para dizer, mas não para questionar, já que os rendimentos dos títulos continuam subindo e o dólar continua se enfraquecendo — sinais clássicos de uma perda de confiança que não precisa ser muito grande para surtir um impacto significativo sobre toda a nossa economia.
Carros fabricados na China, incluindo Volvo e outras marcas, são vistos no porto de Nanquim, na província de Jiangsu, no leste da China, em 16 de abril de 2025, enquanto aguardam para serem carregados em navios para exportação. Foto: AFP/AFP
Instituições
Outra coisa: nossos aliados vêm deixando de acreditar em nossas instituições. O Financial Times noticiou na segunda-feira que a comissão que governa a União Europeia “está distribuindo telefones descartáveis e laptops básicos para alguns funcionários que viajam aos EUA para evitar o risco de espionagem, uma medida tradicionalmente reservada para viagens à China”. A UE deixou de acreditar no estado de direito nos EUA.
A terceira coisa que pessoas de outros países têm feito é dizer a si mesmas e aos seus filhos — e eu ouvi isso repetidamente na China poucas semanas atrás — que talvez não seja mais uma boa ideia estudar nos EUA. O motivo: acham que seus filhos e parentes poderão ser presos arbitrariamente e deportados para prisões salvadorenhas.
Isso é irreversível? Minha única certeza hoje é que, em algum lugar por aí, enquanto vocês leem este texto, existem indivíduos como o pai biológico de Steve Jobs, um sírio que veio para o nosso país na década de 50 cursar um doutorado na Universidade de Wisconsin, alguém que planejava estudar nos EUA, mas que agora pensa em ir para o Canadá ou para a Europa.
Congressista ergue um cartaz que pede a volta de Kilmar Abrego Garcia aos Estados Unidos após o governo Trump deportá-lo por engano para El Salvador
Congressista ergue um cartaz que pede a volta de Kilmar Abrego Garcia aos Estados Unidos após o governo Trump deportá-lo por engano para El Salvador Foto: Alex Wong/AFP
Se encolhemos tudo isso — nossa capacidade de atrair os imigrantes mais enérgicos e empreendedores do mundo, o que nos permitiu ser o centro mundial de inovação; nosso poder de atrair uma parcela desproporcional da poupança mundial, o que nos permitiu viver além de nossas possibilidades por décadas; e nossa reputação de defensores do estado de direito — com o tempo veremos EUA menos prósperos, menos respeitados e cada vez mais isolados.
Mas espera aí, vocês podem dizer, a China também não continua extraindo carvão? Sim, continua, mas com um plano de longo prazo para eliminá-lo gradualmente e usar robôs para fazer o trabalho perigoso e prejudicial à saúde dos mineradores.
Longo prazo
E eis a questão. Enquanto Trump faz seu “planejamento” — divagando sobre qualquer assunto que lhe pareça uma boa política num determinado momento — a China planeja a longo prazo.
Em 2015, um ano antes de Trump virar presidente, o então primeiro-ministro chinês, Li Keqiang, revelou um plano de crescimento voltado para o futuro chamado “Made in China 2025″. O plano começou perguntando: qual será o motor de crescimento no século 21? Pequim fez então enormes investimentos nos componentes desse motor para que as empresas chinesas fossem capazes de dominá-lo no país e no exterior. Estamos falando de energia limpa, baterias, veículos elétricos e autônomos, robôs, novos materiais, máquinas-ferramentas, drones, computação quântica e inteligência artificial.
O Nature Index mais recente mostra que a China se tornou “líder global em produção de pesquisa em bancos de dados em química, ciências da terra e ambientais e ciências físicas — e é o segundo em ciências biológicas e ciências da saúde”.
Isso significa que a China nos deixará para trás? Não. Pequim está cometendo um erro enorme se pensa que o restante do mundo vai deixar a China suprimir indefinidamente sua demanda interna por bens e serviços para que seu governo possa continuar subsidiando indústrias exportadoras e tentar fabricar tudo para o mundo inteiro, deixando os outros países esvaziados e dependentes. Pequim precisa reequilibrar sua economia, e Trump está certo em pressioná-la a fazê-lo.
Mas a arrogância constante de Trump e sua imposição intermitente de tarifas não são uma estratégia — não quando se enfrenta a China no 10.º aniversário de sua política Made in China 2025. Se o secretário do Tesouro, Scott Bessent, realmente acredita no que declarou estupidamente, que Pequim está “jogando com um par de dois” apenas, então alguém por favor me avise quando for noite de pôquer na Casa Branca, porque eu gostaria de jogar. A China construiu um motor econômico que lhe dá opções.
A questão para Pequim — e para o restante do mundo — é: como a China usará todos os superávits que gerou? Investindo na construção de um Exército mais ameaçador? Em mais ferrovias de alta velocidade e rodovias de seis pistas para cidades que não precisam delas? Ou em mais consumo e serviços domésticos ao mesmo tempo que se oferece para construir a próxima geração de fábricas e cadeias de fornecimento chinesas nos EUA e na Europa, com estruturas de propriedade 50-50? Nós precisamos encorajar a China a fazer as escolhas certas. Mas pelo menos a China tem opções.
Comparem isso com as escolhas que Trump está fazendo. Trump está minando nosso sagrado estado de direito, afastando nossos aliados, enfraquecendo o valor do dólar e destruindo qualquer esperança de unidade nacional. Trump fez até os canadenses boicotarem Las Vegas porque eles não gostam de ouvir que logo nós seremos donos de seu país.
Então, me digam, quem está jogando com um par de dois?
Se não parar com seu comportamento delinquente, Trump destruirá tudo o que tornou os EUA fortes, respeitados e prósperos.
Nunca em minha vida eu temi tanto pelo futuro dos EUA.
Thomas Friedman, o autor deste artigo, é colunista de assuntos internacionais do The New York Times e ganhador de três prêmios Pulitzer. É autor de sete livros, entre eles 'De Beirute a Jerusalém', que venceu o Prêmio Nacional do Livro. Este artigo foi reproduzido na edição de hoje, 17.04.25, d'O Estado de S. Paulo com tradução de Guilherme Russo.