sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Correios, um cadáver caro

Lula prefere empurrar o problema dos Correios com a barriga a encará-lo, mas, a continuar nessa toada, empréstimos, aportes e mudanças na meta das estatais vão se tornar rotineiros

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva provavelmente terá de mudar a meta fiscal das estatais federais no ano que vem por causa dos Correios. O Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2026 permitia um déficit de até R$ 6,75 bilhões para o conjunto de empresas públicas da União, mas o número foi proposto em abril, antes do irrefreável processo de deterioração pelo qual os Correios passariam ao longo dos meses seguintes.

Esse ajuste, evidentemente, não visa a alterar a trágica trajetória dos Correios em direção à ruína. A questão é que, se a previsão de déficit das empresas públicas não for adequada, o Executivo será obrigado a cortar outras despesas para cumprir a meta fiscal do ano que vem, que prevê um superávit de 0,25% do Produto Interno Bruto (PIB), de cerca de R$ 34 bilhões. E tudo que Lula não quer é cortar gastos, ainda mais em um ano eleitoral.

Foi exatamente o que ocorreu neste ano. Em pleno mês de novembro, a projeção de déficit das estatais, que era de R$ 5,5 bilhões, teve de ser ampliada para R$ 9,2 bilhões por causa dos Correios. A situação obrigou o governo a cortar R$ 3 bilhões em gastos dos ministérios a poucas semanas do fim do ano, quando o Executivo imaginava que contingenciamentos não seriam mais necessários.

Esse é apenas mais um capítulo da longa e dolorosa decadência dos Correios. O governo Lula até tenta fingir surpresa, mas a verdade é que menosprezou o problema até que ele virasse um problemão. Enquanto os resultados financeiros dos Correios pioravam a olhos vistos, o Executivo recorria a discussões semânticas para diferenciar déficit de prejuízo e gastos de investimentos.

Em julho, o governo já estava ciente de que a empresa precisaria de ajuda. À época, o socorro, estimado em R$ 5 bilhões, derrubou o então presidente dos Correios, Fabiano Silva dos Santos. Três meses depois, seu sucessor, Emmanoel Schmidt Rondon, anunciou que a estatal precisaria de nada menos que R$ 20 bilhões para pagar as contas em dia e executar um tardio plano de reestruturação.

O aporte virou empréstimo e, em conjunto, alguns bancos aceitaram participar da operação de salvamento. Exigiram, no entanto, que a União assumisse a bronca em caso de calote e, como não rasgam dinheiro, pediram juros equivalentes a 136% do CDI, superior ao teto com que o Tesouro Nacional trabalha. O governo chiou, a oferta foi rejeitada e a possibilidade de um aporte da União na empresa, que custou o cargo do presidente anterior, voltou à mesa.

Entre idas e vindas, todo esse esforço seria defensável se ao menos servisse para solucionar de vez os problemas dos Correios, mas é difícil ser otimista diante da visão do governo sobre o papel “estratégico” das estatais na economia.

Afinal, enquanto o prejuízo escalava, os Correios realizaram um concurso para contratar mais de 3,5 mil empregados no fim do ano passado. Pior: em vez de enterrar de vez os planos depois dos rombos, mesmo porque conta com mais de 80 mil funcionários, a empresa ainda pensa em convocar os aprovados.

Para recompor as receitas que os Correios perderam nos últimos anos com o avanço de empresas privadas na área de logística e encomendas, a ideia da estatal é cobrar uma espécie de “indenização” do Tesouro Nacional pelos custos que tem com a universalização dos serviços postais, por ela estimados em alguns bilhões.

Esses dois singelos exemplos mostram que qualquer ajuste, se é que haverá, será insuficiente frente ao desafio da empresa. É importante destacar que as dificuldades dos Correios não são exclusividade nacional. No mundo todo, empresas tradicionais do setor de logística e entregas tentam se adaptar às mudanças tecnológicas e aos novos hábitos da população, seja via parcerias com a iniciativa privada, seja pela assunção de outros serviços e funções públicas.

No Brasil, no entanto, por questões ideológicas que beiram a teimosia, o governo prefere empurrar o problema com a barriga a encará-lo. A continuar nessa toada, novos empréstimos, aportes e mudanças na meta das estatais serão necessários muito em breve. A sociedade que se vire para pagar a conta.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S.Paulo, em 05.11.25

Congresso aprova sem alarde doação de dinheiro e benesses no meio da campanha eleitoral em 2026

Manobra contraria legislação eleitoral e dá poder para o governo Lula pagar emendas e realizar doações durante eleição

Presidente do Congresso Nacional, Davi Alcolumbre (União-AP), durante votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2026. Foto: Kayo Magalhães/Câmara dos Deputados

O Congresso Nacional aprovou nesta quinta-feira, 4, sem alarde, a possibilidade de doação de dinheiro e bens no meio da campanha eleitoral de 2026, contrariando a legislação eleitoral. A manobra foi aprovada no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) junto com um calendário de repasse de emendas antes das eleições.

Na prática, a medida dá poder ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para efetuar doação de bens, valores e benefícios como cestas básicas, tratores, ambulâncias e outras benesses no meio da campanha. A mesma prática foi adotada no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em 2022, como revelou o Estadão na época.

O dispositivo diz que as doações de bens e valores não configurarão descumprimento do chamado “defeso eleitoral” — que proíbe a transferência de recursos e doação de bens três meses antes da eleição. No entendimento de técnicos do Congresso, a medida alcança até mesmo o pagamento de projetos bancados com emendas parlamentares.

A única exigência é que haja uma contrapartida do município ou da entidade que vai receber o recurso, que muitas vezes é a disponibilização de um terreno ou uma contrapartida financeira mínima. Teoricamente, a lei eleitoral deve prevalecer em todas as eleições, mas a medida tenta driblar a legislação por meio da LDO, que define as regras para a execução do Orçamento da União em um ano específico.

“É proibido inaugurar obra em período eleitoral? Não. É proibido o candidato participar. Então você vai proibir algo que acontece na administração pública? Quer dizer que a Codevasf não pode entregar um caminhão-pipa para a população que está com o sede mas pode inaugurar a garagem que guarda o caminhão-pipa? Por quê? Não faz sentido (proibir).”, disse o deputado Gervásio Maia (PSB-PB), relator da LDO, ao Estadão, defendendo a medida.

O texto da LDO foi aprovado em acordo com o governo e acompanhamento de perto por caciques do Congresso. O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), ficou nos bastidores e negociou os principais pontos com a ministra da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República, Gleisi Hoffmann. O ex-presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL) foi ao plenário da Comissão Mista de Orçamento, na quarta-feira, 3, para acompanhar a votação no colegiado, antes do plenário — normalmente, Lira não participa dessas votações.

“É compra de voto disfarçada. Esse artigo é uma vergonha. Esse artigo depõe contra a administração pública”, afirmou a deputada Adriana Ventura (Novo-SP), criticando a medida. “Querem comprar voto na cara dura, e com dinheiro público.

Acordo entre governo e Congresso envolve pagamento de até R$ 19 bi em emendas antes das eleições

Além da doação de dinheiro e bens no meio da campanha, o Congresso e o governo combinaram um calendário de pagamento de emendas antes do período eleitoral.

O acordo envolve o pagamento de até R$ 19 bilhões em emendas parlamentares no primeiro semestre de 2026, antes das eleições, com calendário pré-definido, para abastecer redutos eleitorais dos congressistas.

A cifra corresponde a um pagamento de emendas com menor controle após o Supremo Tribunal Federal (STF) ter exigido maior transparência, rastreabilidade e respeito às regras fiscais e ter em andamento uma série de investigações envolvendo deputados, senadores e emendas.

O calendário foi aprovado no projeto da LDO de 2026 de forma inédita. Pela proposta, o governo será obrigado a pagar 65% das emendas Pix e das emendas individuais e de bancada que transfiram recursos para fundos de saúde e assistência social, um total estimado em R$ 12,7 bilhões.

A cúpula do Congresso Nacional negociou também com o governo — sem colocar na lei — o pagamento de metade das emendas de comissão para saúde e assistência no mesmo período, o que deve garantir até R$ 6,1 bilhões antes da campanha eleitoral — o número final dependerá da parcela de recursos aprovada no Orçamento.

Com o acordo, os parlamentares receberam uma garantia do Executivo para o pagamento de emendas prioritárias antes das eleições. O valor final pode ser até maior, pois o governo também pode pagar outras emendas que já estejam prontas e aprovadas para serem transferidas e ainda recursos que ficaram pendentes de anos anteriores. Nas eleições de 2024, o valor pago antes das eleições chegou a R$ 30 bilhões.

Em troca do calendário, o Congresso permitiu que o Poder Executivo persiga o piso da meta fiscal em 2026, e não o centro, liberando na prática mais gastos e evitando um congelamento de despesas que poderia chegar a R$ 34 bilhões. Até combinar o cronograma, o Legislativa mantinha no relatório da LDO a obrigação de um ajuste maior, pelo centro da meta, pressionando o governo a concordar com o pagamento de emendas antes das eleições.

“O Congresso Nacional não queria impor o pagamento das emendas parlamentares, o Congresso Nacional queria apenas dialogar com o Executivo para ter um pequeno valor, que esse valor pudesse dar previsibilidade, planejamento aos gestores”, disse o relator do PLDO, deputado Gervásio Maia (PSB-PB), no plenário.

Além do calendário, os parlamentares aprovaram na PLDO outras regras que agilizam o pagamento de emendas e diminuem o controle sobre os recursos, como a possibilidade de liberação de verbas sem a aprovação de projetos de engenharia e o uso de emendas de bancada e comissão para pagamento de pessoal na área de saúde — contrariando a Constituição e um entendimento do Tribunal de Contas da União (TCU).

Daniel Weterman,  jornalista, originalmente, de Brasília - DF para O Estado de S. Paulo (edição impressa), em 0512.25

Só no ambiente degradado de hoje é possível levar Michelle Bolsonaro a sério para a Presidência

Hipótese voltou à tona depois que ela peitou os enteados e a direção do PL e venceu

A ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro chega para visitar o ex-presidente Jair Bolsonaro na Superintendência da PF em Brasília Foto: Wilton Júnior/Estadão

Assim como só uma sensação tão forte de perplexidade, desesperança e falta de alternativa poderia alavancar e garantir a vitória de Jair Bolsonaro em 2018, só num ambiente institucional tão degradado como o de hoje seria possível levar a sério o nome da sra. Michelle Bolsonaro para a Presidência.

Michelle é uma mulher bonita, que produziu a melhor imagem da posse do seu marido, discursando em libras, mas que experiência e qualificação pessoal, política, administrativa e intelectual ela tem para presidir o Brasil? Articular uma candidatura assim é uma irresponsabilidade com o País.

A hipótese voltou à tona depois que ela peitou os enteados e a direção do PL e venceu. Vetou pública e voluntariosamente a aliança do partido com Ciro Gomes no Ceará, foi confrontada, virou pivô de uma reunião de emergência do PL e... a aliança com Ciro foi para o brejo. Dizem, aliás, que só Bolsonaro segura Michelle, mas a percepção é o oposto: por mais que fique incomodado com sua evidência, ele é que só ouve a mulher.

Além da posse de 2019, Michelle roubou a cena ao discursar com desenvoltura no lançamento de Bolsonaro à reeleição, em 2022. E ela atende à demanda por mulheres em espaços de poder, tem base eleitoral evangélica e está em campanha, enquanto Tarcísio de Freitas, do Centrão, fica em cima do muro.

“Quem não tem cão caça com gato”. Michelle tende a disputar o Senado pelo DF, mas se torna plano B com Bolsonaro inelegível, Eduardo botando os pés pelas mãos, Flávio tirando a fantasia. Quem leva o sobrenome às urnas? E, enquanto a extrema direita bate cabeça no entra e sai dos Bolsonaro, o direitão, vulgo Centrão, não adere nem aos filhos nem à mulher do ex-presidente e busca não alternativas, no plural, mas “a” alternativa, no singular: Tarcísio.

Na prática, geraria uma inversão: em vez de coadjuvante do bolsonarismo, o Centrão assumiria o protagonismo, o que Bolsonaro não admite e inviabiliza uma chapa mista, por exemplo, com Tarcísio e Michelle. Essa chapa, ainda por cima, seria automaticamente carimbada de “chapa puro sangue bolsonarista”. Adeus, eleitorado de centro-direita.

E um confronto entre bolsonarismo e Centrão em 2026? Há duas avaliações. A de que o racha efetivo na direita (diferente do acordão entre governadores) seria o melhor cenário para Lula e a de que a rejeição ao bolsonarismo empurrará o eleitorado da direita moderada para o candidato do Centrão.

Em qualquer hipótese, Michelle − como Jair, em 2018 – é fora de padrão, sem precedentes, foge às análises tradicionais e pode tornar a eleição de 2026 em altamente imprevisível.

Eliane Cantanhêde, a autora deste artigo, é comentarista da Rádio Eldorado e Rádio Jornal (PE). Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.12.25

Apoiar a mídia local é proteger a democracia.

A falta de informação local enfraquece a democracia, especialmente porque os espaços para a responsabilização desaparecem, e a corrupção aproveita-se disso.

Mardonio Mejía, diretor da rádio Sonora Estéreo, em imagem de arquivo.

Há alguns dias, escrevi um artigo sobre a lenta investigação do assassinato, em 2022, de um jornalista em uma pequena cidade colombiana. A vítima, Mardonio Mejía, dirigia uma rádio comunitária e apresentava um programa diário com as principais notícias de San Pedro, sua cidade natal, e arredores. Muitos dos 5.000 moradores da região ouviam o programa regularmente. Ao trabalhar com fontes para o artigo, o depoimento de um entrevistado em particular me chamou a atenção: apenas uma semana após o assassinato, quando fez uma visita a San Pedro, ficou impressionado com o silêncio que envolvia a cidade, conhecida por sua tradição musical. Ao pedir explicações, foi informado de que, com a morte de Mardonio, a única rádio local havia saído do ar.

Uma dose de realidade: O que acontece em uma comunidade quando o único meio de comunicação que a conectava com a informação e a esfera pública é interrompido?

A história de San Pedro não é única; repete-se em muitas partes do mundo, pois o assassinato não é exceção entre os ataques contra jornalistas e meios de comunicação. Mas o significado muda drasticamente quando ocorre numa cidade pequena, porque ali os meios de comunicação e os jornalistas estão muito mais próximos da população e tornam-se um elemento fundamental para aproximar os cidadãos dos assuntos públicos. É por isso que a ruptura dessa relação afeta seriamente a democracia.

O jornalismo local permite que os moradores de áreas rurais se mantenham informados sobre questões que afetam suas comunidades. Em algumas cidades, por exemplo, as mensagens transmitidas por rádios comunitárias se tornam a única maneira de se informar sobre as condições das estradas, obras públicas ou iniciativas de saúde. São o meio pelo qual os moradores de cidades ribeirinhas podem ficar sabendo sobre alertas de enchentes ou deslizamentos de terra causados ​​por fenômenos naturais, bem como sobre o que está acontecendo em outras partes do país.

Infelizmente, por diversos motivos, o jornalismo local atravessa atualmente uma crise estrutural. Um estudo realizado pela Fundação Gabo sobre os ecossistemas de notícias locais em cinco países da América Latina (Argentina, Chile, Colômbia, México e Peru) revelou que mais de 65% dos territórios carecem de notícias locais, o que significa que a maioria das comunidades vive em contextos onde o jornalismo é restrito , não conquistou uma presença estável ou enfrenta condições precárias para o seu exercício.

Muito se fala sobre a difícil situação econômica da mídia, mas muito pouco sobre o que significa sobreviver fazendo jornalismo local. A publicidade está cada vez mais escassa e, em muitas ocasiões, é usada como ferramenta de controle. Essa pressão econômica, por sua vez, leva à autocensura e também causa o desaparecimento de veículos de comunicação. “A ausência de notícias é uma má notícia.” Essa é a conclusão da revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), com base em estudos que demonstram que a ausência de notícias locais alimenta a polarização, diminui a participação eleitoral e reduz a responsabilidade governamental.

Em algumas comunidades, a mídia local é utilizada para mobilizar os moradores a decidirem sobre planos de desenvolvimento ou a participarem de audiências públicas onde são debatidas questões complexas e fundamentais que afetam suas vidas, como consultas prévias ou licenças para novos negócios. Essa participação na construção do seu futuro é uma oportunidade frequentemente facilitada por emissoras de rádio, onde os moradores podem ouvir diferentes perspectivas ou até mesmo conversar com autoridades públicas, aprender sobre suas ações e exigir transparência. De fato, o papel da comunicação local também pode ser visto como uma forma de combater a corrupção.

Quando se trata de assuntos eleitorais, a questão se torna mais séria. Esses meios de comunicação ajudam as comunidades a entender o que está em jogo nas eleições locais e podem até capacitá-las para participar da votação. No entanto, eles também são um espaço que acaba sendo dominado por atividades ilegais. Na Colômbia, com o ressurgimento da violência, grupos armados ilegais buscam exercer um controle muito maior em nível local, e o gerenciamento da informação é fundamental nesse sentido . Para alcançar esse objetivo, eles usam intimidação e ameaças.

Então, sem a mídia local, de onde os eleitores em áreas rurais obtêm suas notícias? É aí que os acadêmicos concordam cada vez mais que as mídias sociais preenchem esses desertos de informação, polarizando o clima político das comunidades.

A falta de informação local enfraquece a democracia, especialmente porque os espaços para a responsabilização desaparecem, e a corrupção prospera nesse ambiente. Portanto, estamos falando de um vazio que as redes sociais não conseguem preencher. A opção de obter informações pelas redes sociais e abandonar os meios de comunicação locais introduz uma avalanche de informações, onde é muito difícil distinguir o que é real do que é falso ou insidioso . Além disso, coloca as agendas da comunidade em conflito com as decisões das grandes plataformas, agravado pela violência e pela vulnerabilidade econômica que os políticos exploram para manipular a informação.

É indesejável, em qualquer circunstância, que a "hipótese da democracia degradada" de Bernardo Díaz Nosty se torne realidade em nível local. Segundo essa hipótese, a imprensa priorizaria o comercialismo para sobreviver e gerar lucros, degradando assim a democracia. Talvez o principal antídoto para isso , bem como para a desinformação e a polarização, resida precisamente na mídia local.

A questão que permanece é: como podemos criar as condições ideais para a prática do jornalismo local sem restrições e de forma estável? Acredito que a solução reside em um esforço coletivo para protegê-lo e fortalecê-lo. Portanto, outra pergunta é: quem está disposto a fazer esse esforço?

Dora Montero Carvajal, originalmente, para o ELPAIS,em 25.11.25.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Indicação ao STF descamba para a baixa política

Cancelamento da sabatina de Messias resulta de disputa mesquinha entre chefe do Senado e governo Lula. Haveria boas razões para o Senado rejeitar indicados ao Supremo agora e sob Bolsonaro, mas não foram nem são elas as levadas em conta

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Davi Alcolumbre (União Brasil -AP), presidente do Senado - Adriano Machado - 14.ago.25/Reuters

Quando se trata uma indicação para o Supremo Tribunal Federal como o preenchimento de mais um cargo de confiança do governante, uma consequência esperável é que também sua tramitação reproduza práticas rasteiras do varejo político. É o que ocorre agora.

Assim como Luiz Inácio Lula da Silva (PT) explicita a preferência por aliados e auxiliares diretos —sendo Jorge Messias o nome da vez— nas escolhas para a mais alta corte do país, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil), tampouco se constrange em reivindicar o posto para um colega e seu antecessor, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

A disputa chegou a níveis vexatórios. Na terça-feira (2), Alcolumbre cancelou a sabatina de Messias que marcara para o próximo dia 10 na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, em decisão resultante de uma sucessão de fofocas e picuinhas digna de eleição de condomínio.

Diz-se em Brasília que a data fora escolhida de modo a não dar tempo suficiente para que o indicado vencesse resistências entre os parlamentares; em aparente reação, o Palácio do Planalto não enviou à Casa legislativa a papelada da indicação. Alcolumbre pretendia levar adiante o processo mesmo assim, mas capitulou.

O atual chefe do Senado é reincidente na pretensão de instalar alguém de seu agrado no Supremo. Quando ocupava o mesmo posto no governo Jair Bolsonaro (PL), retardou por mais de quatro meses a sabatina de André Mendonça, ao fim aprovado, por preferir Augusto Aras, de triste passagem pelo comando da Procuradoria-Geral da República (PGR).

Ora, é papel da Casa, definido pela Constituição, escrutinar os indicados pelo presidente da República ao STF e deliberar se preenchem os requisitos de reputação ilibada e notável saber jurídico. Haveria boas razões para rejeitar tanto Mendonça como Messias —escolhidos por fidelidade ao chefe, não pelo currículo jurídico. Mas não foram nem são elas as levadas em conta.

O que se vê é tão somente um embate de poderes —com letra minúscula. Busca-se uma cadeira no Supremo como se faz com cargos em ministérios e estatais, à base de barganhas e represálias, e naturalmente esperando a colaboração futura do agraciado.

A essa peleja mesquinha não se furtam nem mesmo ministros da corte que, conforme se noticia amiúde, defendem este ou aquele candidato em jantares brasilienses, inclusive com o próprio Lula. É mais uma conduta imprópria da parte de magistrados que deveriam dar exemplo de equilíbrio, discrição e autocontenção.

Com protagonismo crescente nos últimos anos, o STF cometeu e comete não poucos erros e excessos, mas mostrou independência e altivez em julgamentos como os do mensalão e da condenação de Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado. Enfraquecê-lo em nome de interesses políticos de ocasião é um retrocesso duradouro na institucionalidade democrática do país.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 04.12.25 (editoriais@grupofolha.com.br)

Putin, uma ameaça real

A tentativa do presidente russo de intimidar a Europa representa uma escalada na hostilidade já vivenciada por alguns países da UE.

Putin, durante seu encontro na terça-feira em Moscou com a delegação dos EUA, em uma fotografia divulgada pelo Kremlin. (KRISTINA KORMILITSINA  - PISCINA)

Se há algo que já deveria estar claro, tanto nas instituições europeias quanto nas sedes de cada governo do continente, é que é imprudente ignorar as palavras de Vladimir Putin. A ameaça feita na terça-feira pelo presidente russo de que seu país está preparado para entrar em guerra com a Europa "agora mesmo" deve ser levada muito a sério. Não com alarmismo ou sensacionalismo, mas pelo que ela é: a concretização de um desafio à segurança europeia que deixou de ser teórico ou vago.

Não é surpresa que a rodada de negociações realizada esta semana em Moscou entre Putin e o enviado especial da Casa Branca, Steve Witkoff, tenha terminado sem resultados após cinco horas infrutíferas de reuniões e com uma humilhação prévia para o representante de Donald Trump, cuja atitude subserviente em relação ao líder russo não o ajudou a evitar uma espera de quase três horas.

Em questões importantes, Putin demonstrou repetidamente ser um jogador do tipo "tudo ou nada" e que, ao contrário do presidente dos EUA, raramente blefa. Os 28 pontos apresentados por Washington — negociados às escondidas da Ucrânia e do resto da Europa — já não lhe bastam. Na prática, esses pontos equivalem à rendição de Kiev, com a consequente mutilação territorial e sem qualquer garantia real de que a agressão russa não se repetirá no futuro. O ocupante do Kremlin quer mais e deixou isso claro: quer consolidar a anexação ilegal da Crimeia em 2014, quer mais território ucraniano e quer condições que lhe permitam assegurar a sua esfera de influência nas fronteiras da Europa democrática.

Assim como as palavras de Putin, os repetidos alertas — tanto de instituições europeias quanto de governos do continente — sobre a gravidade da escalada não devem ser ignorados. Quando Kaja Kallas, Alta Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, adverte que a guerra híbrida que a Rússia trava contra a Europa pode também atingir a Espanha e Portugal, ela está soando dois alarmes que devem ser levados a sério.

O primeiro ponto é lembrar que Moscou há muito tempo realiza — e promove — atos hostis dentro da União, como repetidamente denunciado pelos países mais próximos, como Polônia, Estônia, Letônia e Lituânia. O segundo é que essa hostilidade também ameaça os demais 27 Estados-membros. Essa é a posição compartilhada por autoridades de defesa como o chefe da Força Aérea e Espacial da Espanha, Francisco Braco, e o Secretário-Geral da Aliança Atlântica, Mark Rutte, quando afirmam: “Não estamos em guerra, mas também não estamos em paz”.

Editorial do EL PAÍS, 04.12.25

Exclusividade da PGR gera críticas, mas há consenso sobre mudança na Lei de Impeachment

Constitucionalistas criticaram exclusividade da PGR, mas concordam que Lei de Impeachment precisa mudar


Constitucionalistas entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico avaliam que a Lei de Impeachment (Lei 1.079/1950) precisa de revisão para dar segurança institucional ao Supremo Tribunal Federal. (Crédito da foto: Luiz Silveira / STF)

Os juristas divergem, contudo, sobre o trecho da decisão do ministro Gilmar Mendes que dá competência exclusiva à Procuradoria-Geral da República para denunciar integrantes do STF por crimes de responsabilidade.

A medida cautelar, publicada nesta quarta-feira (3/12), ainda será analisada pelo Plenário do Supremo, em julgamento virtual de 12 a 19 deste mês.

A decisão de Gilmar, que é contestada pelo Senado e pela Advocacia-Geral da União, modifica a interpretação de vários trechos da Lei de Impeachment. O ministro defende a suspensão da expressão “a todo cidadão” do artigo 41 da Lei 1.079/1950, que permite a qualquer pessoa pedir o afastamento de membros da corte.

Parte dos especialistas consultados pela ConJur se opõe a essa restrição. Eles argumentam que a exclusividade da PGR enfraquece a legitimidade democrática do Supremo em relação ao povo, que é a fonte de onde emana o poder, segundo a Constituição.

“A possibilidade de qualquer cidadão apresentar um pedido de impeachment é requisito de accountability [responsabilização] da instituição com o povo. Não é razoável que isso seja retirado do cidadão”, avalia Ingrid Dantas, doutora em Direito pela Universidade de Brasília e professora de Direito Constitucional.

“Eu não vejo, em princípio, nenhum motivo constitucional para reduzir essa competência ao PGR. O impeachment é um procedimento democrático em que há uma ampla possibilidade de se solicitar. Mas é certo que a Lei de Impeachment precisa ser examinada para se adequar à Constituição”, sintetiza o constitucionalista Pedro Serrano, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

“Ao prever que qualquer cidadão pode denunciar, esse artigo da Lei de Impeachment vai ao encontro do Estado Democrático de Direito. Então me parece que é plenamente constitucional”, avalia a advogada Vera Chemim, especialista em Direito Constitucional e mestre em Administração Pública pela FGV de São Paulo.

Para outros estudiosos, porém, a possibilidade de que ministros do STF sejam alvos de pedidos de impedimento sem lastro técnico abre margem para perseguições políticas.

“A Lei do Impeachment deve ter seu sentido continuamente atualizado, de modo a ser lida à luz da realidade brasileira contemporânea, marcada pela emergência de impulsos de populismo autoritário que transformaram o Supremo Tribunal Federal em bode expiatório dos problemas nacionais, convertendo-o em um inimigo público ficcional”, aponta o constitucionalista Georges Abboud, também professor da PUC-SP.

Trâmite no Senado

Apesar da controvérsia sobre a competência da PGR, outros pontos da decisão de Gilmar têm apoio amplo entre os constitucionalistas. O principal deles é o que passa a exigir maioria qualificada de dois terços do Senado para que a denúncia contra um ministro do STF seja recebida e, posteriormente, julgada procedente pelo plenário da Casa.

Hoje, as duas etapas exigem apenas maioria simples — mais da metade dos presentes à sessão — como preveem os artigos 47 e 54 da lei.

Os especialistas apontam, também, que Gilmar acerta em afastar interpretações que permitem punir os magistrados pelo mérito de suas decisões. Segundo o artigo 39 da lei, um ministro do STF pode sofrer impeachment por “ser patentemente desidioso no cumprimento dos deveres do cargo”, ou por “proceder de modo incompatível com a honra, dignidade e decoro de suas funções”.

“Esses dispositivos são subjetivos e estão sujeitos a ampla discricionariedade. Ao permitir um impeachment de ministro do STF sob essas premissas, a lei abre margem para que esse instrumento seja politizado para atacar o conteúdo material de uma decisão do Supremo”, avalia Ingrid Dantas.

Contexto político

A discussão sobre a atualização da Lei do Impeachment não é inédita. O STF já havia revisado pontos da norma na ADPF 378, julgada em dezembro de 2015, que tratou do rito aplicável ao Presidente da República. O STF definiu, na ocasião, que o Senado teria competência para instaurar ou não o processo de impedimento, depois da autorização da Câmara, e que a admissibilidade exigia apenas maioria simples — dispositivo que agora foi derrubado por Gilmar.

Ao tomar a decisão atual, no âmbito das ADPFs 1.259 e 1.260, Gilmar avaliou que o aval de apresentação de denúncia “a todo cidadão” viabiliza a criação de um ambiente propício à “proliferação de denúncias motivadas por interesses político-partidários, desprovidas do rigor técnico necessário para uma acusação legítima”.

“Esse cenário expõe os membros dos Tribunais Superiores a constantes riscos de serem alvos de processos de impeachment baseados em discordâncias políticas ou em divergências interpretativas legítimas, convertendo o legítimo instrumento do impeachment em um meio de propagação do arbítrio pela intimidação e retaliação política”, justificou o ministro na decisão.

O panorama exposto por Gilmar tem lastro nos movimentos atuais do Congresso. Aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) assumem abertamente o objetivo de ampliar a base da oposição no Senado, nas eleições de 2026, para formar quórum suficiente e pautar o impeachment de ministros do STF, em especial de Alexandre de Moraes.

Para Gilmar, a mera ameaça de impeachment pode funcionar como um “mecanismo eficaz para constranger membros do Poder Judiciário”. Portanto, a restrição da competência ao PGR é um “filtro rigoroso” para garantir a seriedade e o rigor técnico do processo.

O atual PGR, Paulo Gonet, defendeu a competência exclusiva do órgão ao se manifestar nos autos das ADPFs. Ele apontou que a Lei de Impeachment prevê um “rito procedimental incompatível com a Constituição Federal de 1988” e que os ministros do STF desempenham uma função contramajoritária com base nos “valores e princípios permanentes da Constituição” e não no “sentimento político dos eleitores”.

Rafael Neves, jornalista, é editor e repórter especial da revista Consultor Jurídico. Publicado originalmente em 04.12.25


Regra de indicação para STF deixa aberto 'caminho da politização do Supremo', diz professor da USP

"Risco do atual sistema é de 'ter uma mudança brusca ou um presidente que indique a maioria da corte'

'Muitas vezes a legitimidade da Corte é questionada também porque nós estamos ainda vivendo esse modelo antiquado de formação', diz Tavares (Crédito: Divulgação)

O (ex) presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência e professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP), André Ramos Tavares, diz que o modelo de indicação de ministros ao Supremo Tribunal Federal (STF) no Brasil deixa aberto o "caminho da politização verdadeira do Supremo" e "transformação do tribunal em um espaço político".

A falta de atualização nessas regras é um dos motivos, na avaliação do constitucionalista, que leva a questionamentos sobre a legitimidade do Supremo.

"Muitas vezes a legitimidade da Corte é questionada também porque nós estamos ainda vivendo esse modelo antiquado de formação", disse Tavares.

A melhoria desse sistema, na avaliação de Tavares, deve passar pela criação de mandatos para ministros do Supremo e deve prever regras que ampliem as fontes de indicação de nomes, sem tanta concentração da decisão no presidente da República. Ele também sugere exigências mais específicas em relação à experiência profissional/acadêmica dos indicados.

Hoje a Constituição prevê que um indicado para ministro do Supremo deve ter "notável saber jurídico e reputação ilibada", além de mais de 35 anos e menos de 65. O nome é indicado pelo presidente da República e passa pelo aval do Senado. E não há mandatos - os ministros devem deixar o cargo quando completam 75 anos.

Tavares classifica o modelo atual como "muito perverso" e diz que ele acentua a "arbitrariedade do presidente em indicar o nome que quiser". Afirma, ainda, que o Senado "exerce papel nenhum" - apenas uma função protocolar de aceitar o nome indicado, ele diz

O fato de não haver mandatos faz com que alguns presidentes indiquem muito mais ministros que outros. Após a redemocratização, por exemplo, os dois ex-presidentes que foram reeleitos e exerceram os dois mandatos completos indicaram números bem diferentes de ministros: Fernando Henrique Cardoso indicou três magistrados e Lula, oito.

A próxima vaga para ministro do Supremo ficará disponível em breve. O decano da Corte, ministro Marco Aurélio Mello, informou que vai se aposentar em 5 de julho - uma semana antes de completar os 75 anos, idade limite para permanecer no posto.

Bolsonaro, que indicou em 2020 o ministro Kassio Nunes Marques e está prestes a designar mais um nome, voltou a dizer a apoiadores neste ano que escolherá um ministro "terrivelmente evangélico".

A seguir, leia os principais pontos da entrevista de Ramos Tavares por videoconferência à BBC News Brasil:

BBC News Brasil - Como o sr. avalia o atual modelo de indicação de ministros do Supremo no Brasil, inspirado nos Estados Unidos?

André Ramos Tavares - É um modelo muito arcaico, não só porque foi pensado e construído no final do século 18, nos Estados Unidos. Não é possível imaginar que a sociedade continue a mesma, né?

Não acredito que esse modelo atenda plenamente nossa cultura atual, nossa diversidade. Ele não foi modernizado e isso é ruim, porque gera dificuldades até em termos de legitimidade. Muitas vezes a legitimidade da Corte é questionada também, porque nós estamos ainda vivendo esse modelo antiquado de formação da Corte.

Um ponto essencial é saber que essas cortes passaram a fazer controle das leis e, quando isto se tornou algo importante, principalmente a Europa criou um modelo diferente, de tribunal constitucional. Então, esse controle que o Supremo faz no Brasil - abstrato, que vale pra todo mundo, que alguns dizem que são decisões políticas ou algumas interferem em políticas públicas - passou a ser feito por tribunal constitucional, em que a composição é múltipla, (a indicação de seus integrantes) não está nas mãos de um presidente.

BBC News Brasil - Como isso poderia inspirar o Brasil?

Tavares - A primeira grande diferença seria termos mandato e permitir a renovação da corte. Esse modelo vitalício - nos EUA até a morte, e aqui, até a aposentadoria - petrifica a corte e exacerba os poderes individuais. Os ministros da Praça dos Três Poderes são o único poder que permanece por longos períodos. Então, eles assistem a essa troca de cadeiras (nos outros poderes) várias vezes. Os ministros do Supremo, por força desse prazo estendido que eles têm de permanência, são vistos de uma maneira diferente pelos políticos. Muitos políticos têm um certo receio, um medo reverencial, porque é poder exercido por um longuíssimo período pela pessoa. Então isto tem um impacto político, pesa na Praça dos Três Poderes. Seria importante a gente ter um mandato que permitisse um rodízio maior desses desses juízes com tanto poder.

Isso funcionaria desde que também tivéssemos um modelo diferente de nomeação. Não adianta muito continuar sendo pela pela escolha arbitrária do presidente - e esse é o modelo, não estou fazendo crítica a ninguém. Tem dois requisitos que são genéricos - reputação ilibada e notável saber jurídico -, que talvez fizessem sentido no século 18.

Hoje você vai ser CEO de uma multinacional, aí precisa saber qual é sua experiência, quais foram as suas realizações. Para ser ministro do Supremo, basta algo que é considerado genérico. Essas coisas acabam impactando também na legitimidade da corte. Então, muitas vezes, as críticas da que se dirigem à corte, elas têm um fundo, que não está muito claro, que é esse de termos um problema de um modelo muito perverso de indicação porque acentua a arbitrariedade do presidente em indicar o nome que ele quiser. E o Senado não exerce papel nenhum, apenas papel protocolar de aceitar.

Historicamente, o Senado tem ratificado todas as escolhas de nomes, diferente do Senado dos Estados Unidos, em que nomes são rejeitados.

BBC News Brasil - O senhor mencionou a legitimidade da Corte. Avalia que, hoje, a legitimidade do nosso Supremo já está comprometida?

Tavares - Essa é uma análise que pesa mais no sociológico. Tenho a impressão que hoje o Supremo entrou na arena política porque o cenário fez com que o Supremo avançasse para também estar presente nas questões de governo - e isso não é de hoje, tem sido progressivo nos últimos anos. E, ao entrar na arena política, é inevitável que a instituição sofra um desgaste maior, próprio da disputa política.

O Supremo não tem os instrumentos para lidar com esse tipo de ataque, de crítica permanente, constante. Com isso, ele vai perdendo legitimidade - não porque esteja errado, não porque as decisões sejam ruins, mas porque ele está dentro de uma arena que no fundo não é dele.

BBC News Brasil - Diante desses pontos, qual seria, então, o melhor modelo para garantir maior equilíbrio no Supremo?

Tavares - A melhor palavra talvez seja diversidade, pluralismo… É o que a gente tem que buscar na composição da corte. Mas não representatividade. Não posso ter alguém lá na corte que seja representante do segmento X - dos Estados do Nordeste ou do Sul. Isso não faria sentido, os ministro têm que ser representantes da Constituição e em caráter sempre nacional.

Por que esse mecanismo que está aí não é bom? Porque ele não nos dá nenhum tipo de salvaguarda. Que salvaguarda a gente gostaria? Manter uma diversidade interna do tribunal - isso a gente só vai conseguir alternando as fontes de indicação. Não pode ser sempre a mesma pessoa ou não pode ser sempre a partir dos mesmos grupos (a indicação).

No fundo, a indicação do Presidente, a gente nunca sabe o que pode estar atendendo - pode ser que esteja atendendo uma demanda política de um grupo de parlamentares, uma pressão de um grande poder econômico, questões pessoais de um presidente - e nada disso é bom se é feito sem transparência. E como a gente alcança a transparência? Com regras que diversifiquem essas escolhas. Precisam partir de um modelo mais transparente.

O modelo atual é um modelo no qual a sociedade não sabe o motivo pelo qual determinado nome é escolhido. Não sabe como apareceu na mesa do presidente, quem levou, como levou, quando levou, se houve algum outro tipo de troca, de favor, de interesses.

Estamos vivendo uma sociedade que tem evoluído para transparência e não temos nada disso na escolha dos ministros da mais importante corte do país, que decidem a vida, quase que diariamente, da sociedade brasileira como um todo.

BBC News Brasil - Quais seriam as regras ideais, na sua avaliação? Alguma que esteja prevista em propostas de emenda à Constituição? Lista tríplice, participação de outras instituições?

Tavares - Não tem uma que eu acho que seja a correta. Várias podem ser usadas. O importante é que não seja só uma pessoa a escolher o nome. A gente pode pensar na participação dos outros poderes, até em sistema de rodízio - a primeira vaga, o Congresso Nacional vai realizar a indicação do nome. Na seguinte, o Judiciário indica um nome. Na terceira, aí o presidente indica, a partir de uma lista, por exemplo, fornecida por universidades, OAB, ou outras entidades da sociedade organizada. São composições que vão retirar esse poder da mão de um único presidente e vão dar diversidade para a corte.

E isso tudo tem que funcionar como um mandato. Hoje, pode ser que muitos ministros terminem no mandato de um mesmo presidente. Já aconteceu com o ex-presidente Lula, vai acontecer com o presidente Bolsonaro.

Mas o maior problema é você mudar repentinamente a maioria da corte. De repente você muda quatro, cinco, seis ministros em questão de quatro, cinco anos. Isso tudo gera uma mudança brusca da própria jurisprudência, do que é o direito. Essas coisas têm que ocorrer progressivamente. Os mandatos servem para poder ter essa previsibilidade.

Tavares - Dez anos seria razoável. Não pode ser muito curto, porque perderia toda a experiência que vai construindo, mas não pode ser também muito longo, porque vai engessando a corte. É uma coisa que gira entre oito, doze anos - é o que tem nos tribunais constitucionais pela Europa.

BBC News Brasil - O presidente Jair Bolsonaro já falou em ampliar o número de ministros do Supremo de 11 para 21. É uma boa ideia? Qual pode ser o impacto?

Tavares - Sei que parece uma pergunta simples, mas é super complicada, porque no fundo é quase um falso dilema. Nosso problema é saber o que o Supremo tem que julgar. Se a gente continuar com esse Supremo tendo esse volume gigantesco de processos para julgar, 21 seria pouco.

Então, mais importante do que mexer no número de ministros - porque isso talvez só atenda a uma demanda de nomes que querem ir para o Supremo ou de políticos que queiram indicar nomes - é mudar a quantidade de processos que chegam ao Supremo.

Se você olhar ao redor do mundo, as cortes não têm números elevados.

BBC News Brasil - Tivemos no Brasil a mudança na idade de aposentadoria compulsória num passado recente, mas não muito mais que isso, embora tenha propostas sobre modelo de indicação ao Supremo aparentemente paradas. Há interesse em mudar?

Tavares - A gente não muda porque é nossa cultura. No Brasil, a gente resolve os problemas quando eles aparecem. É difícil reconstruir normas para evitar os problemas. Veja o caso do impeachment: foi toda aquela briga, por causa de normas antigas, se aplicava, não aplicava. Aí hoje continuamos com o mesmo sistema. Passou, a gente deixa para lá, esquece. Toda vez que tem uma vaga no Supremo vem essa discussão. Aí passa, o ministro é escolhido, e ninguém mais discute.

É uma tarefa do Congresso, que também tem lá o seu tempo político. Aliás, é uma coisa, também, que acontece rotineiramente: o Congresso critica o Supremo, mas no fim do dia aprova leis que ampliam o poder do próprio Supremo - fez isso na criação da súmula vinculante (instrumentos que uniformizam decisões jurídicas diferentes), por exemplo.

BBC News Brasil - Quais são os riscos que o sr. considera que o Brasil corre ao manter o atual modelo?

Tavares - O risco, que pode nunca acontecer, é de ter uma mudança brusca ou um presidente que indique a maioria da corte e faça essas indicações de maneira política ou segundo convicções pessoais, não institucionais e não republicanas. É o risco de você acabar gerando não um tribunal Supremo, mas uma terceira câmara política, alinhada com o presidente.

Eu vejo tanta crítica, e muitas vezes fundadas, ao que aconteceu em outros países na América do Sul, em que as indicações foram politizadas - o Supremo, as cortes não tinham independência verdadeira, eram todos afinados com o presidente, que estava no no poder ou que ainda está. E nós deixamos aberto esse caminho, que é o caminho da politização verdadeira do Supremo e a transformação do tribunal em um espaço político. E aí como vamos fazer? Tem que respeitar, continuarão sendo decisões, proferidas formalmente por um tribunal.

Esse risco é um risco muito grave. Fica aí uma tentação sempre, vamos dizer assim. Para que o sistema oferecer esse tipo de estímulo a algum presidente? Temos que evitar isso.

BBC News Brasil - Por outro lado, o FHC indicou três ministros e o Lula, oito, no mesmo tempo de mandato. Apesar desse número alto de indicações do ex-presidente do PT, não se diz que ele controlou de alguma forma o Supremo, até pelo que aconteceu depois.

Tavares - Essas escolhas foram feitas de maneira independente - não sou filiado a nenhum partido, nunca fui, mas acho que, no caso do ex-presidente Lula está muito claro que elas não foram escolhas nem sequer alinhadas ao Partido dos Trabalhadores.

A história provou que, de fato, esses ministros não se alinharam, porque ele se tornou réu, e houve toda essa disputa em torno de interesses que a gente conhece. Então, o tribunal se mostrou independente, porque as pessoas indicadas tinham esse perfil. E eu acho que isso é o mais importante. Deixaremos isso ao acaso, como acontece, e eventualmente vai dar certo, como deu? Ou tentaremos criar salvaguardas para evitar que um mal maior aconteça?

BBC News Brasil - Considerando suas críticas ao modelo atual, quais seriam exigências mais apropriadas para o perfil de ministro ou ministra do STF?

Tavares - Em termos de incluir condições, aquelas que a modernidade trouxe: o que o Congresso entende que é alguém com um notável saber - alguém que publicou obras, ou que teve uma grande ação, na qual atuou e fez toda a diferença pra sociedade brasileira? Eu indicaria aí especificações que podem ser alternativas - alguém que tenha doutorado e/ou 20, 30 anos de experiência na advocacia do Supremo, ou que tenha patrocinado uma grande causa de impacto para maior parte da sociedade brasileira.

É possível imaginar critérios objetivos que detalham, no momento histórico atual, o que é alguém com notável saber jurídico. Certamente, não é alguém que tenha apenas um diploma e que tenha exercido a advocacia, no meu modo de ver.

Pode ser alguém que tenha tido experiência como advogado-geral da União, por dois, três anos, ministro da Justiça…. Mas aí entra que condição eu gostaria que fosse impositiva, que é de que ministros ou advogado-geral da União - inclusive tem uma PEC sobre isso - sofresse uma quarentena. Em termos de preservação, vamos dizer assim, de questões de evitar esse favoritismo de momento.

Risco do atual sistema é de 'ter uma mudança brusca ou um presidente que indique a maioria da corte'

BBC News Brasil - O presidente Jair Bolsonaro voltou a falar em um nome "terrivelmente evangélico" para o STF. O que acha desse critério?

Tavares - Não tenho nada contra essas questões de escolha em que o presidente diz "vou escolher alguém terrivelmente evangélico". O grande problema é, talvez, a imagem que passa, de que alguém ascenderá ao Supremo apenas porque é terrivelmente evangélico, porque seria um notável erro escolher alguém só por esse critério. Mas eu acredito que quando o presidente diz isso, não está endereçando uma questão técnica, está conversando com alguma base política dele. No meu modo de ver, a gente só vai saber disso no momento da escolha. Tanto que a escolha que ele fez (em 2020) não foi essa, apesar de ter anunciado. Escolheu um juiz de carreira (Kassio Nunes).

BBC News Brasil - Quando você fala em diversidade, também se refere a aumentar participação de mulheres e de ministros negros, por exemplo?

Tavares - Acho que não deveria ter cota para o supremo. O mecanismo poderia ser por meio dessa diversidade de fontes de escolha. Se você tiver um modelo em que a sociedade participe, muito provavelmente conseguiríamos ter diversidade de gênero ou outras. Então, isso tudo teria que vir dessa diversidade de entidades que vão colaborar na escolha.

O importante é a diversidade das pessoas por terem formação diversa, por terem circunstâncias pessoais diversas, para não serem todos do mesmo grupo. Pode acontecer: é uma determinada elite, em que dentro daquele grupo sempre se escolhe os ministros. Ou são sempre pessoas formadas mais numa faculdade, ou num determinado estado do país. Então, precisa ter diversidade, experiências de vida distintas.

Laís Alegretti, originalmente, de Londres (UK) para a  BBC News Brasil , em 13.06.21

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Pirraça não é disputa política

Derrubada de vetos presidenciais pelo Congresso semana passada resultou não de conflito programático, e sim da contrariedade pela indicação de Messias ao STF. Isso é oposição irresponsável


Messias e Acolumbre

Os últimos dias mostraram que o Congresso tem feito mau uso da prerrogativa de divergir do Executivo quando acha que deve. Com os ânimos acirrados por motivos bastante questionáveis, como a indicação do ministro da Advocacia-Geral da União (AGU), Jorge Messias, a uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF), deputados e senadores confundiram disputa política com pirraça e, mirando no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, acabaram por atingir a sociedade brasileira como um todo.

A derrubada indiscriminada de vetos presidenciais na semana passada é o exemplo mais bem acabado de uma oposição que, de tão irascível, perde seu sentido. Se a intenção era mostrar ao presidente Lula que ele não pode prescindir do Congresso para governar, deputados e senadores não poderiam ter escolhido temas piores que a Lei Geral do Licenciamento Ambiental e o programa de renegociação das dívidas dos Estados.

Em nenhum dos casos havia uma divergência de agendas que opõem esquerda e direita, conservadores e progressistas ou governo, oposição e Centrão. Manter a floresta de pé é uma condição necessária para que o mundo não feche suas portas ao agronegócio brasileiro, enquanto impedir o desastre fiscal é proteger a população dos efeitos danosos de uma recessão econômica.

Há que perguntar, portanto, quem se beneficia de atrozes retrocessos como a flexibilização da proteção de um bioma tão devastado como a Mata Atlântica, que, depois de décadas, começou a se regenerar. Há que perguntar por que não dificultar o acesso ao crédito de devastadores contumazes e deixar clara a enorme distância que separa produtores rurais que cumprem a lei daqueles que a descumprem. Há que questionar como alguém pode ser favorável ao autolicenciamento para empreendimentos de médio impacto ambiental, entre os quais barragens de rejeitos de mineração, depois dos desastres de Mariana e Brumadinho.

Da mesma forma, o programa de renegociação das dívidas estaduais não primava pela austeridade. Não apenas não se exigia nenhuma medida de ajuste de gastos, como também se incentivava o aumento de despesas em áreas tão amplas como educação, segurança e investimentos, a depender do interesse mais imediato do governador. Mas ainda havia governadores insatisfeitos, e o Congresso achou que era hora de dar uma lição ao governo federal e ajudar os Estados – não os mais pobres e menos desenvolvidos, que pagam suas contas em dia, mas os mais ricos e endividados do País, como Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e São Paulo.

Com a derrubada dos vetos, eles poderão utilizar recursos que os Estados ainda nem receberam – e que deveriam compensá-los pelas perdas que terão quando a reforma tributária entrar em vigor, a partir de 2029 – para estender o prazo de pagamento e zerar os juros de seus financiamentos.

Trata-se de manobra descarada de antecipação de receitas. Por óbvio, isso vai esvaziar o caixa de seus sucessores, que eventualmente podem vir a ser os mesmos deputados e senadores que apoiaram a medida de maneira entusiasmada. Talvez alguns deles tenham de peregrinar até Brasília em busca da enésima renegociação num futuro próximo.

Até 2015, contrariar o governo significava ficar sem emendas parlamentares, o que fazia com que muitos deputados e senadores apoiassem projetos do Executivo mesmo sem convicção. Isso começou a mudar com o pagamento obrigatório das emendas individuais. A ascensão dessas indicações a patamares bilionários nos últimos anos reequilibrou as relações entre os Poderes e deu ao Legislativo a liberdade para divergir do Executivo sem medo de punições.

Hoje, portanto, há plenas condições de exercer essa independência de maneira coerente, e não inconsequente como foi feito na semana passada. Até mesmo condições imorais – e inconstitucionais – de aposentadoria para agentes comunitários de saúde foram aprovadas. Não se poderá culpar o Executivo se decidir recorrer ao Judiciário em quaisquer desses casos, ainda mais quando o motivo do levante é tão mesquinho quanto uma rotineira indicação ao STF.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S.Paulo,em 03.12.25

Direita brasileira procura novo líder após clã Bolsonaro 'se autodestruir', diz Financial Times

 "Aos 70 anos e com a saúde debilitada, Jair Bolsonaro pode passar o resto da vida na prisão. Uma campanha de seus apoiadores por um indulto fracassou. 

Analistas dizem que a melhor chance do ex-presidente evitar morrer na cadeia é a família abandonar o sonho antigo de eleger outro Bolsonaro e apoiar um novo candidato conservador."

Eduardo, Jair e Flavio Bolsonaro em ato em Copacabana em abril de 2024Crédito,Getty Images

Uma reportagem do jornal britânico Financial Times publicada na segunda-feira (1/12) afirma que a direita brasileira está em busca de um novo líder depois que o "clã Bolsonaro se autodestruiu" — em referência à prisão do ex-presidente brasileiro e a disputas internas envolvendo seus filhos, esposa e outros políticos aliados.

"Jair Bolsonaro era o presidente de direita incendiário do Brasil, que idolatrava Donald Trump e buscava construir uma dinastia política na maior democracia da América Latina", afirma a reportagem do jornal.

"Mas, com o presidente de 70 anos agora preso por conspiração para dar um golpe e seus filhos sofrendo com erros cometidos por eles mesmos, seu movimento bolsonarista está em crise."

A reportagem afirma que a estratégia do clã Bolsonaro de buscar ajuda em Washington "saiu pela culatra de forma espetacular", e que o lobby do deputado Eduardo Bolsonaro por tarifas contra o Brasil "irritou a classe empresarial brasileira e expôs Eduardo a acusações em seu país".

Segundo o jornal, "grande parte do apelo do clã Bolsonaro reside em sua capacidade de leitura do sentimento da população", mas "as tentativas da família de livrar Bolsonaro da prisão, apelando para seu aliado de longa data, Trump, provaram ser desastrosas".

O Financial Times afirma que o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, é um dos principais nomes da direita na disputa pela vaga de candidato à Presidência em 2026. Mas o governador só estaria disposto a concorrer, segundo o jornal, se Bolsonaro o apoiasse e desistisse de lançar um de seus filhos.

"Aos 70 anos e com a saúde debilitada, Jair Bolsonaro pode passar o resto da vida na prisão. Uma campanha de seus apoiadores por um indulto fracassou. Analistas dizem que a melhor chance do ex-presidente evitar morrer na cadeia é a família abandonar o sonho antigo de eleger outro Bolsonaro e apoiar um novo candidato conservador."

O jornal afirma que mesmo que o governador conquiste o apoio dos bolsonaristas mais radicais, "que representam cerca de 20% do eleitorado, ele enfrentará uma dura batalha pela presidência" em uma eleição contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

"Lula é um político experiente e de grande capacidade política que já declarou sua intenção de concorrer a um quarto mandato. A economia brasileira apresenta bom desempenho, com forte crescimento de empregos e salários, visto que sua baixa dependência do mercado americano a protegeu dos piores efeitos das tarifas de Trump."

A melhor esperança da direita, segundo o Financial Times, é que assuntos como criminalidade e segurança pública, "amplamente vistos como um ponto fraco de Lula", acabem dominando a eleição.

Publicado originalmente pela BBC News Brasil, em 02.12.25

O Brasil que Dom Pedro 2º imaginou — e o que fizemos dele

 Exilado na Europa depois do golpe militar que proclamaria a República no Brasil em 1889, Dom Pedro 2º, segundo e último imperador brasileiro, redigiu um documento em Cannes, no sul da França, que é visto como seu testamento político.

Retrato de Dom Pedro no exílio em Cannes, época em que ele escreveu Fé de Ofício (Crédito: Domínio Público).

Intitulado Fé de Ofício, o texto foi o último ato público do monarca deposto. Dom Pedro 2º morreria em 5 de dezembro de 1891.

Escrito de próprio punho, o documento está datado de 23 de abril daquele ano — e foi publicado no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, na edição de 28 de maio.

Neste 2 de dezembro, quando se recorda o segundo centenário do nascimento do único imperador brasileiro nascido no Brasil — e alguém que foi chefe de Estado do país independente em praticamente um quarto de sua história, 49 dos 203 anos, reler esta carta é compreender um pouco qual era a nação que Pedro 2º imaginava ter ajudado a construir.

Se consideramos também o período de regência, quando ele já tinha sido aclamado imperador mas não governava, foram 58 anos sob a coroa de Pedro 2º.

É praticamente consenso entre estudiosos de sua biografia que o monarca imaginava um Brasil que alcançaria o progresso por meio da ciência e da tecnologia.

Ele também almejava uma nação com instituições políticas e sociais sólidas e demonstrava crer em um futuro republicano, em que o governo seria representativo e o exercício da cidadania por parte dos brasileiros seria mais próximo do universal.

Fé de Ofício deixa pistas interessantes para este pensamento.

Para o ex-imperador, era preciso proteger a economia do país frente à concorrência estrangeira, "até o período do seu próspero desenvolvimento".

E embora se autoclassificasse como alguém que tinha "sentimento religioso", entendia que cabia ao Estado apenas a inspeção "quanto à moral e à higiene, devendo pertencer a parte religiosa às famílias e aos ministros das diversas religiões".

Destacou também a importância do investimento em educação, sobretudo criando e desenvolvendo instituições de ensino superior.

"Igreja livre no Estado livre", pontuou. "Mas isso quando a instrução do povo pudesse aproveitar de tais instituições".

Pedro 2º acreditava na imigração como ferramenta para o melhor "aproveitamento das terras" e defendia a criação de "um observatório astronômico" no país.

Lembrou que era importante investir no exército e na marinha, "a fim de que estivéssemos preparados para qualquer eventualidade, embora contrário às guerras". "Buscava, assim, evitá-las", sentenciou.

Posicionou-se contrário à pena de morte, enfatizando que acreditava na regeneração do ser humano.

Defendeu eleições livres para os cargos públicos e concursos para postos no judiciário e na administração estatal. Mas acreditava que somente os alfabetizados deveriam poder votar.

Demonstrou sensibilidade às pautas da habitação e da fome, ressaltando a importância de projetos que zelassem pela "sorte física do povo, sobretudo em relação a habitações salubres e a preço cômodo e à sua alimentação".

No documento, Pedro também defendeu a importância das artes, da organização de dioceses para a Igreja Católica e de expedições científicas que se dedicassem a estudar o Brasil.

Especialistas concordam que, mesmo sendo ele próprio um monarca, Dom Pedro 2º via no regime republicano o futuro do Brasil. Mais exatamente, em um modelo inspirado no que vigorava nos Estados Unidos, independente e República desde 1776.

"Ele considerava que a República era um desenvolvimento natural do sistema político", explica à BBC News Brasil o pesquisador e escritor Paulo Rezzutti, autor da biografia D. Pedro II - A História Não Contada.

"Mas ele achava que o Brasil não estava pronto para ela, precisava de uma melhora na estrutura administrativa antes de dar esse passo."

"Ele é visto por muitos de seus biógrafos como um imperador republicano", comenta à BBC News Brasil a historiadora Bruna Gomes dos Reis, pesquisadora na Universidade Estadual Paulista e professora no Serviço Social da Indústria (Sesi).

"Pessoas que conviveram com ele notavam que ele tinha um espírito bastante republicano. E ele imaginava um certo governo republicano para o Brasil", afirma à BBC News Brasil o historiador Silas Luiz de Souza, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Há diversos registros de comentários de Pedro 2º no sentido de reconhecer que o regime republicano seria o melhor e mais bem desenvolvimento sistema político.

"Porém, o republicanismo dele comportava-se mais como um espírito", compara Reis.

"Ele se fazia presente em ações como como a liberdade de imprensa, o amor à pátria, na sua busca pela 'civilização' por meio do dos estudos, das artes e da ciência e em lampejos de nacionalismo".

Era um pós-iluminista, defensor da razão. Nesse ponto, o republicanismo parecia se enquadrar melhor em sua própria ideologia.

"Ele era adepto das ideias liberais vindas do Iluminismo, com defesa das liberdades individuais", situa Souza.

"Apesar disso, seu espírito republicano não tocava sua carne", ressalta Reis. "Ou melhor: não tocava nas estruturas políticas e econômicas do Brasil."

A historiadora comenta, por exemplo, que o último imperador brasileiro "desfrutou do poder moderador" até o fim do império. Era aquele instrumento criado no Estado brasileiro por seu pai, Pedro 1º, que desequilibrava o princípio da tripartição dos poderes entre executivo, legislativo e judiciário, porque situava o imperador como um quarto poder sobreposto aos outros.

O historiador Victor Missiato, pesquisador no Instituto Mackenzie, cobra um pouco de cuidado ao situar Pedro 2º como "republicano".

"Soa um pouco anacrônica", pondera ele, à BBC News Brasil.

"Embora ele tenha escrito algumas cartas e interpretado a realidade como a inevitabilidade de um regime republicano na história do Brasil, […] associá-lo à pecha de um monarca republicano não cabe em um mundo em que muitas monarquias ainda estavam de pé."

Além disso ele lembra que Pedro teve um reinado longevo e com o exercício do poder moderador. Ambas essas características destoam de uma postura dita republicana.

Mas Missiato reconhece que havia pitadas de republicanismo em seu governo, com "a ideia de maior liberdade religiosa", "críticas à escravidão" e a instituição de órgãos públicos "para a formação do bem comum".

Pedro 2º também foi beneficiado, como lembra a historiadora Reis, pelas "riquezas produzidas pela escravidão, sem mover-se em direção à transformação desses aspectos que poderiam acelerar a construção da república".

"Ele acreditava que a fase monárquica era necessária para o amadurecimento nacional, e que o regime republicano apareceria em algum momento, como resultado do processo natural de desenvolvimento nacional", esclarece Reis.

Em anotação feita por Pedro 2º em 31 de dezembro de 1861, ele ressalta que "a ocupar posição política, preferiria a de presidente da República ou ministro à de imperador".

A imprensa da época — que o imperador fazia questão de deixar sob livre funcionamento, sem censurá-la oficialmente — extravasava o estranhamento que seu perfil causava dentro de um regime monárquico.

"Nas cortes da Europa vai passando, republicano, ateu, darwinista e não sei que mais", publicou a Gazeta de Notícias em 19 de agosto de 1883.

"Ele olhava para as Américas e via as repúblicas sendo formadas. Os Estados Unidos tinham já uma força muito grande naquele período", comenta Missiato.

O historiador lembra que Pedro 2º estava atento a discussões, principalmente europeias, sobre a formação de esfera pública nas sociedades, com maior participação cidadã. E demonstrava simpatia a isso.

Educação como pilar essencial

Fotografia do Imperador D. Pedro 2º, entre 1865 e 1870; ele apoiou a criação de instituições como o Colégio Pedro 2º e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) (Crédito: Arquivo Nacional)

Como pontua a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz no livro As Barbas do Imperador: D. Pedro II, Um Monarca nos Trópicos, o titular do trono brasileiro "era dado a novidades […] e a palavra progresso, para ele, vinculava-se à ciência e ao intelecto".

Certamente por isso, a seu modo, o monarca investiu em educação e conhecimento. Era assim que ele enxergava as bases para um país que, no futuro, seria republicano.

"Dom Pedro via a si mesmo como um homem da ciência", diz Rezzutti. "Desde a infância ele considerava os estudos mais prazerosos que as brincadeiras, e esse amor continuou pela vida inteira."

"Ele mandava adquirir equipamentos científicos na Europa, estudou astronomia e matemática avançada e foi um incentivador da fotografia no Brasil, sendo um dos primeiros fotógrafos amadores do país", enumera o biógrafo.

"Também se tornou patrono de diversas instituições científicas e culturais, entre elas o Instituto Pasteur, que graças à sua proteção acabou sendo inaugurado aqui antes do que na França, e a Escola de Minas, criada em Ouro Preto há exatamente 150 anos, em 1875, por iniciativa do imperador."

Também se insere no período de sua coroa a fundação do Colégio Pedro 2º, em 1837 — na época, sob regência.

O mesmo se aplica ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), mais antiga e tradicional entidade de fomento de pesquisa do país, criado em 1838. Pedro 2º era um entusiasta do organismo.

Se quando foi criado o instituto, o imperador ainda era menor de idade, durante seu reinado ele investiu no desenvolvimento do mesmo.

"Foi um dos maiores financiadores [da instituição]", diz Souza.

"Tinha uma relação íntima, participando de eventos, fazendo palestras."

Esta imagem do monarca curioso e apaixonado pelo saber não foi uma construção tardia, póstuma, erguida a partir do mito do rei morto. Era algo já presente em seus tempos contemporâneos.

"Muitos cientistas e intelectuais deixaram suas observações sobre a admiração que sentiam a respeito do interesse dele pelas ciências", frisa Rezzutti.

Pai da teoria da evolução, o naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882) declarou que "o imperador faz tanto pela ciência que todo sábio é obrigado a demonstrar a ele o mais completo respeito".

Já o escritor francês Victor Hugo (1802-1885) comparou o monarca brasileiro ao romano Marco Aurélio — ícone do "rei filósofo".

Claro que também havia críticos notáveis — o abolicionista Luiz Gama (1830-1882), por exemplo.

"Ele dizia que Dom Pedro praticava um liberalismo bastante curto, tacanho", pontua o historiador Souza.

Isto porque o imperador não descuidava dos interesses da elite de sua época — uma elite basicamente constituída por latifundiários e escravocratas, a quem qualquer mudança intempestiva de rumos significava um desfavorecimento.

A historiadora Reis interpreta essa postura de Pedro 2º como parte do "processo de amadurecimento nacional para receber o regime republicano".

Para isso, ele entendia ser preciso preparar e "educar" os cidadãos.

"Para além dos esforços empregados no desenvolvimento tecnológico, como a implantação do telégrafo, das linhas de ferro, e na invenção de uma nação civilizada, a partir da criação do IHGB, ainda que para um pequeno grupo de brasileiros, Pedro 2º portava-se como um líder capaz de guiar o Brasil a esse destino, com seu verniz iluminista e moderno", contextualiza a professora.

Contudo, ela ressalva que o próprio imperador não deu um passo decisivo para a República.

"Na prática, o imperador optou por aguardar para ver aquilo que o Brasil poderia se tornar", afirma. "Se a nação não estava pronta o suficiente para se tornar República, não seria por meio de suas ações que isso seria alterado."

Nação do futuro

Mas Rezzutti volta ao documento Fé de Ofício para pensar sobre o Brasil que Pedro vislumbrava como uma nação do futuro.

"Por meio desse texto, é possível compreender qual era o país que Dom Pedro imaginava e que lutou para implantar", diz.

"Entre as diretrizes pelas quais ele afirma ter se interessado enquanto governou, estão o desenvolvimento da indústria nacional; a instrução livre, tendo considerado no estabelecimento de universidades fora dos grandes centros do sudeste; a exploração das riquezas naturais; o melhoramento das Forças Armadas para fins exclusivamente defensivos; a higiene pública, para livrar o Brasil das epidemias; a abolição da pena de morte; a liberdade política; e o melhoramento das comunicações e transportes", enumera o pesquisador.

Há diretrizes interessantes, se observadas de forma anacrônica. Por exemplo: a vocação pacífica das armas brasileiras. Sobretudo ao longo do século 20, o país foi gradualmente ganhando destaque global com um papel contrário ao da guerra.

O Brasil virou a nação da diplomacia, do soft power. E isto transcende ao mundo em episódios que vão desde a participação brasileira na fundação da Organização das Nações Unidas (ONU) até esforços recentes com envio de tropas para missões de paz.

Outro ponto do testamento político de Pedro 2º que ecoa hoje é quando ele menciona a higiene pública.

Com todos os problemas inerentes principalmente ao fato de ser um instituto público que depende dos cofres de um país em desenvolvimento, o Sistema Único de Saúde (SUS), criado a partir da Constituição de 1988, é visto como modelo mundial de acesso universal e gratuito aos serviços de saúde.

"Além disso, uma herança da visão que Dom Pedro tinha de como o Brasil deveria ser está na democracia, com eleições regulares e liberdade de pensamento e de imprensa. Por mais que tenha sido atacada ao longo dos anos, essa ideia sobrevive e ainda está na base do sistema político brasileiro", acredita Rezzutti.

"Da época de Dom Pedro 2º, sobreviveram muitas instituições que ainda são importantes para a vida econômica e cultural brasileira", complementa o pesquisador. "Entre elas, estão a própria Escola de Minas, o Colégio Pedro 2º, criado originalmente para a formação de uma elite política e intelectual, e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro."

Quando ele defendia uma abertura maior aos imigrantes europeus, contudo, aos olhos de hoje é inevitável que a ideia soe com contornos racistas.

Seu ideal civilizatório era alinhado ao pensamento elitista e eurocêntrico de então. Pedro 2º não só se inspirava nos pensamentos que vinham do velho continente, mas também patrocinou políticas imigratórias que, sob a motivação de substituir a mão de obra do escravizado de origem negra, também tinha o viés de "embranquecer" o brasileiro.

"Ele entendia que trazer pessoas da Europa podia ajudar no progresso do país", explica Souza. "Isso acabou configurando a sociedade brasileira atual, com tantos grupos étnicos distintos."

O Brasil não se esfacelou em diversas pequenas repúblicas como a América Espanhola (Crédito: Getty Images)

Outros legados do período imperial sobreviveram ao tempo e implicaram na consolidação do Brasil contemporâneo.

É o caso da própria unidade territorial.

O Brasil poderia, assim como a América Espanhola, ter se esfacelado em diversas pequenas repúblicas. Isso não ocorreu principalmente porque havia um projeto de nação, conduzido por ambos os imperadores, que privilegiava um território robusto, grande, imenso.

Nesse sentido, o historiador Missiato lembra que houve um papel importante do governo imperial ao sufocar revoltas separatistas que pipocavam no território.

Disso também ficou a centralização do poder.

"Com certeza ele foi o líder mais importante da história do Brasil", acredita Missiato.

"Alguns aspectos da sociedade brasileira se formaram ou se fortaleceram no Segundo Reinado e não desapareceram até hoje", diz a historiadora Reis.

"Como a unidade territorial, as bases do Estado nacional, a busca pela liderança na América Latina e o afastamento cultural dos outros países latino-americanos."

Edison Veiga, jornalista, originalmente, de De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil,  em 02.12.25

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Produtividade dos tribunais federais caiu com trabalho remoto, diz estudo

Pesquisadores usaram como indicador taxa que mede casos pendentes em relação ao total. Associação de magistrados diz que número de processos baixados aumentou


Sede do Conselho Nacional de Justiça CNJ em Brasília

A produtividade dos Tribunais Regionais Federais caiu com o trabalho remoto durante os anos da pandemia de Covid-19, de acordo com uma pesquisa publicada no fim de outubro deste ano na RAP (Revista de Administração Pública) de autoria de Saulo Augusto Félix de Araújo Serpa, Mariana Guerra e Andrea de Oliveira Gonçalves, todos da UnB (Universidade de Brasília). O estudo foi revisado por outros acadêmicos antes de ser divulgado.

A AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) discorda dos resultados da pesquisa e afirma que usa outras formas de medir a produtividade (veja mais abaixo).

Os pesquisadores se debruçaram sobre os dados dos tribunais regionais federais 1, 2, 3, 4 e 5, entre 2018 e 2023. Para medir a produtividade, usaram um indicador chamado taxa de congestionamento líquida.

A taxa de congestionamento é a razão entre a quantidade de entrada e saída de casos. É comum usar essa medida para analisar o desempenho das cortes de justiça.

Esse estudo, no entanto, usou a taxa líquida, ou seja, excluiu os processos suspensos ou que estão em arquivo provisório.

Se a taxa de congestionamento líquida subir, conclui-se que a produtividade caiu.

Foi o que aconteceu com o início do trabalho não presencial obrigatório a todos os servidores e magistrados dos TRFs.

Ao analisar as entradas de novos casos com a taxa, os autores constataram que, no ano do início da pandemia e do trabalho remoto emergencial (2020), ela aumentou, apesar da queda no número de novos casos. Ou seja, houve uma queda na produtividade dos Tribunais Regionais Federais em comparação com o ano de 2019, antes da pandemia, diz o texto.

Do ano de 2018 para 2020, houve uma alta de 13,44% na taxa (ela saiu de 0,55 para 0,63).

Após 2020 a produtividade melhorou, mas os autores fizeram um teste estatístico e afirmam no texto que houve tendência de aumento da taxa ao longo do tempo, indicando piora na média da produtividade dos tribunais.

Eles apontam que outros estudos encontraram um resultado contrário —o de melhora do desempenho com o trabalho remoto—, mas afirmam que essas outras pesquisas foram feitas com outros indicadores, como aumento do número de julgamentos ou a queda da taxa de congestionamento sem descontar os casos suspensos em arquivo provisório, bem como análises feitas com dados fora do período de pandemia da Covid-19.

Os autores afirmam que a resistência institucional que existia contra o trabalho remoto caiu por terra a partir da pandemia.

O objetivo do trabalho deles não foi analisar benefícios ou problemas do trabalho não presencial e tampouco apontar as causas da queda de produtividade.

Eles dizem também que a piora de desempenho pode ter ocorrido por outros motivos. "A produtividade pode ter caído porque os juízes e servidores ficaram doentes e não puderam trabalhar. Por óbvio, isso afeta a produtividade, mas não foram variáveis tratadas no trabalho", afirmam Serpa e Guerra.

A questão, diz Guerra, é que nos preâmbulos das resoluções sobre o trabalho não presencial, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) cita que uma das intenções da medida é escalar a produtividade.

"Houve um desacoplamento entre discurso e prática", ela afirma.

Os autores dizem que não se pode extrapolar os resultados que encontraram para o trabalho não presencial para tirar conclusões sobre teletrabalho em outras carreiras do serviço público ou na iniciativa privada. Para isso, seria preciso selecionar por amostragem representativa outros profissionais. Essa publicação, afirmam, tem um recorte muito específico e particular.

ASSOCIAÇÃO DE MAGISTRADOS USA OUTRO INDICADOR

Em nota, a AMB afirmou que, para ela, o melhor indicador para medir o desempenho dos juízes brasileiros é o IPM (Índice de Produtividade dos Magistrados), "que demonstra uma curva ascendente desde a pandemia de Covid-19: saltou de 1.597 processos baixados por magistrado em 2020 para 2.569 em 2024 –um avanço de 60%".

Segundo a entidade, em média, cada juiz solucionou 11 casos por dia útil no ano passado.

A associação afirma que a magistratura brasileira é uma das mais produtivas do mundo, apesar dos problemas estruturais e do fato de metade de seus membros já ter sofrido ameaça à vida ou à integridade física, de acordo com a pesquisa "Perfil da Magistratura Latinoamericana", da própria AMB em parceria com outras instituições.

Na nota, afirma-se que o cenário de insegurança tem reflexo direto na qualidade de vida dos magistrados e que 51% dos juízes brasileiros necessitaram de tratamento médico psiquiátrico ou psicológico desde o ingresso na carreira.

O texto afirma que os juízes atuam sob pressão, com resultados crescentes de produtividade, e que desconsiderar esse contexto e adotar indicadores distorcidos para a compreensão da realidade não contribui para o aprimoramento dos serviços prestados pelo Poder Judiciário.

A Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) divulgou nota na qual compara a produtividade do ano de 2020 com os anos seguintes e afirma que houve um aumento.

A associação disse que é favorável ao teletrabalho desde que observadas regras específicas que priorizam o trabalho presencial e exigem autorização expressa para a atuação remota.

O modelo atual, diz a Ajufe, permite a continuidade da prestação jurisdicional em situações excepcionais.

A Ajufe afirma que discorda da relação entre queda na produtividade dos juízes federais e trabalho remoto porque o estudo ignora o contexto da época da pandemia, com pressão psicológica, afastamentos, sobrecarga de profissionais e os efeitos do lockdown, e chama a conclusão de análise incompleta e irresponsável da realidade.

Felipe Gutierrez, jornalista, de São Paulo - SP, originalmente, para a Folha de S. Paulo, em 30.11.25 (edição impressa).

A facção 'evangélica' que emerge como terceira força do crime organizado do Brasil

Os discursos, símbolos e ritos religiosos foram incorporados na conduta criminal da facção, observa Kristina Hinz, pesquisadora associada ao programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Uerj.

"Notavelmente, as facções narcopentecostais se utilizam do discurso religioso para legitimar a expansão dos seus territórios e nos confrontos com outras facções", destaca.

Complexo de Israel surgiu em 2020, com domínio de cinco comunidades na zona norte do Rio (Crédito: Reprodução/Redes Sociais)

Três agentes da Polícia Militar (PM) do Rio de Janeiro arremessam uma estrela de Davi enorme do alto de uma caixa d'água em Parada de Lucas, na Zona Norte da cidade.

Até ser destruído em uma operação da PM no último dia 11 de março, o símbolo de neon brilhava forte à noite, avisando a quem o avistasse que aquele era o Complexo de Israel: o conjunto de cinco comunidades na zona norte do Rio dominadas pelo Terceiro Comando Puro (TCP), facção que nos últimos anos ficou conhecida pela presença de traficantes que se dizem evangélicos.

Na mesma operação policial, os agentes demoliram um imóvel de luxo do chefe do tráfico no local, Álvaro Malaquias Santa Rosa, conhecido como "Peixão", um "resort" erguido em uma área de proteção ambiental dentro do complexo.

Peixão, contudo, não foi preso. Na verdade, ele nunca passou pelo sistema carcerário. Com 39 anos, sua figura é cercada de mistérios e perguntas em aberto. Não se sabe, por exemplo, qual sua história de conversão. Alguns relatos dizem que ele é pastor, outros que virou evangélico por causa da mãe.

Fato é que a queda da estrela de Davi no topo da caixa d'água em Parada de Lucas foi mais simbólica do que prática.

A facção, na verdade, está em franca expansão, como relatou o coordenador-geral de análise de conjuntura nacional da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Pedro Souza Mesquita, em uma reunião da Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência no Congresso no início de novembro.

No último ano, o TCP foi além dos limites do Rio de Janeiro e chegou a Espírito Santo, Minas Gerais, Goiás, Bahia, Ceará, Amapá, Acre, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul, conforme o levantamento feito pela Abin.

Um crescimento que, nas palavras de Mesquita, o coloca como "terceiro grupo emergente no contexto nacional", depois do Comando Vermelho (CV), do qual é rival declarado, e do Primeiro Comando da Capital (PCC).

Uma das últimas fronteiras cruzadas pela facção foi a do Ceará. Há cerca de três meses, a estrela de Davi que virou marca do grupo começou a aparecer em locais como Maracanaú, na região metropolitana de Fortaleza, ao lado de pichações com dizeres como "Jesus é dono do lugar".

Em outubro, correu a notícia de que pelo menos quatro terreiros de umbanda na cidade haviam sido fechados a mando da facção, que há anos exercita um amplo repertório de práticas de intolerância religiosa na zona norte do Rio.

O delegado-geral da Polícia Civil do Ceará, Márcio Gutiérrez, disse à BBC News Brasil que os casos ainda estão sendo investigados.

Ele afirmou que a presença do TCP no Estado foi identificada pelas autoridades locais em setembro, mês em que 37 membros do grupo foram presos só na região metropolitana.

Avanço do 'narcopentecostalismo' é reflexo do crescimento de religiões neopentecostais no país, apontam pesquisadores (Crédito: Reprodução/Redes Sociais)

Aliança com facções locais e 'guerra' contra o CV

Ainda segundo Gutiérrez, a entrada do TCP no Ceará se deu por meio da aliança com uma facção local, um expediente também bastante utilizado por CV e PCC em seus respectivos processos de nacionalização.

"Esse é o movimento padrão de expansão das facções criminosas, que é de incorporação dos grupos locais", diz Carolina Grillo, coordenadora do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF).

"Pequenas facções locais acabam se beneficiando de se aliar a essas grandes facções porque elas entram em redes de solidariedade, de contato para compra de drogas, de armas, de suporte em situações de rivalidade."

No caso cearense, o grupo é o Guardiões do Estado (GDE), facção que ficou conhecida pelos assassinatos violentos de rivais e que, em disputa por territórios com o CV em 2017, transformou a região metropolitana de Fortaleza na área com maior taxa de homicídios do país, de 86,7 para cada 100 mil habitantes.

Em janeiro de 2018, membros do GDE invadiram uma festa e mataram 14 pessoas, a maior chacina do Estado. Depois disso, em meio a intensa repressão de autoridades locais, com a prisão de vários líderes, o grupo entrou em derrocada.

Foi nesse contexto de enfraquecimento que membros da facção passaram a aderir ao TCP. Essa aproximação, segundo as investigações, se deu a partir da migração de lideranças do GDE do Ceará para o Rio de Janeiro, onde tiveram contato com líderes do TCP e passaram a costurar a aliança.

"A gente tem informações de inteligência que precisa manter sob sigilo, mas essas lideranças têm papel fundamental. São as pessoas que orientam e que determinam como aquele grupo criminoso vai atuar, as cooperações e as novas formas de financiamento", afirma Márcio Gutiérrez.

Desde setembro, a Polícia Civil vem monitorando "as consequências e desdobramentos dessa aliança". "Temos feito diversas capturas e compreendido o método [de atuação da facção]", completa o delegado-geral.

Grafite em Parada de Lucas do personagem Peixonauta: segundo trabalho da pesquisadora Christina Vital, uma referência humorada a Peixão

Próxima da milícia e aliada do PCC

Nesse sentido, Kristina Hinz, pesquisadora associada ao programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), identifica três características fundamentais do TCP, para além do caráter religioso.

A relação menos conflituosa com a polícia, o que tem evitado confrontos nas regiões dominadas pela facção no Rio de Janeiro;

A formação de uma aliança com o PCC, que "proporcionou um acesso a uma rede maior de crime organizado, e, principalmente, acesso aos seus mercados internacionais";

E a aproximação de grupos milicianos.

O TCP pratica, aliás, um tipo de crime recorrente entre as milícias, o de extorsão, modalidade que tenta reproduzir em outros Estados.

No início de novembro, três suspeitos foram presos em flagrante em Maracanaú após tomarem de vendedores ambulantes máquinas para registros de apostas na loteria estadual e exigirem uma porcentagem do valor arrecadado.

O rival CV também é adepto da modalidade e procura replicá-la em outras regiões. Em março deste ano, a facção realizou uma série de ataques a provedores de internet em cidades cearenses em busca de cobrança de valores das empresas, uma espécie de "pedágio". Segundo Gutiérrez, essa atividade já foi contida pela polícia.

Guerra contra o CV

O TCP surgiu em 2002 como uma dissidência do CV e vive em guerra contra a facção no Rio de Janeiro em busca de domínio territorial. O conflito é alimentado por um arsenal de armas de grosso calibre, como fuzis, artefatos explosivos, como granadas, e até drones.

O antagonismo ao CV e o objetivo de tomada e controle de territórios é algo que preocupa pesquisadores e especialistas em segurança pública dentro do contexto de expansão geográfica das duas facções.

No Ceará, a taxa de homicídios recuou nos últimos anos, mas as cidades do Estado seguem no topo do ranking das mais violentas do país. Três municípios cearenses aparecem entre os dez com maior taxa de homicídios no último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, incluindo o primeiro lugar, Maranguape (79,9 por 100 mil). Maracanaú ocupa o 9º lugar (68,5 por 100 mil).

O temor é que a chegada do TCP seja acompanhada de uma intensificação na disputa por comunidades e que isso se reflita em mais mortes.

"Eu acho que sempre há risco", diz Luiz Fábio Silva Paiva, coordenador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC).

"Vai depender muito da movimentação entre os grupos e do próprio Estado. Na medida em que esses grupos se acomodam e veem a possibilidade de uma trégua, você vai ter menos conflitos. Já aconteceram momentos assim antes, de dizer que 'tá tudo apaziguado'", avalia o pesquisador.

Grafite em Parada de Lucas com a bandeira de Israel e os dizeres "Bandeira de Israel". (Crédito: Reprodução/Christina Vital da Cunha)

Na Parada de Lucas, no Rio, é comum encontrar a grafites com a bandeira de Israel

Fechamentos de escolas e 'vilarejo-fantasma'

Não é, contudo, o que se observa no momento no Ceará.

Em agosto, a escalada de violência na disputa entre facções na capital, com episódios de intensas trocas de tiros, chegou a provocar o fechamento temporário de algumas escolas.

No mês seguinte, um vilarejo no município de Morada Nova virou uma "cidade-fantasma" depois que moradores foram forçados a deixar suas casas em meio a um conflito entre grupos rivais.

A violência do crime organizado colocou o Estado no debate nacional sobre segurança pública, tema apontado como principal preocupação pelos eleitores e um dos grandes assuntos que devem mobilizar as eleições de 2026.

Paiva estuda há mais de dez anos a formação e presença de facções no Ceará e elenca uma série de fatores para explicar porque o Estado segue no topo do ranking de municípios com as maiores taxas de homicídio do país.

O Ceará, ele diz, tem uma localização estratégica, um atrativo para grupos criminais. "É fácil sair daqui para praticamente todas as cidades do Nordeste. Você tem uma conexão tanto com o Norte quanto com o Sul."

Ele aponta também uma combinação explosiva entre demanda e oferta, com a expansão do consumo de drogas no Estado, tanto na capital quanto no interior, e a presença de "agentes criminais motivados", com "disposição para fazer trânsito de drogas", que hoje circulam por portos e aeroportos, inclusive clandestinos.

"Não é à toa que os números de homicídios, de conflito armado o tempo todo, são muito significativos", completa Paiva.

Essa presença massiva de mão de obra para o crime, em sua avaliação, é uma decorrência "do próprio desenvolvimento do Estado", que foi muito desigual. O Ceará passou por um processo de expressivo crescimento econômico na última década, mas com manutenção de altos índices de pobreza e desigualdade.

'Todos preferem o silêncio porque têm medo de perder a vida'

Moradores de áreas controladas pelo CV em Fortaleza que conversaram sob condição de anonimato com a reportagem também temem que a chegada de uma facção rival intensifique a escalada de violência.

Na prática, contudo, é uma mudança com muito sabor de "mais do mesmo". Há anos, residentes de áreas conflagradas vivem sob uma série de limitações por conta das disputas entre grupos criminosos. Muitos estão acostumados a ouvir "chuvas de balas" à noite, evitam sair de casa e frequentar bairros dominados por facções rivais.

A dinâmica de conflito permanente chega a separar famílias dentro da mesma cidade. Uma das pessoas ouvidas pela BBC News Brasil comentou, em tom de lamento, que, apesar de viver a poucos quilômetros da irmã, não a encontra mais e, por isso, ainda não teve chance de conhecer a sobrinha que nasceu há poucos anos.

"Hoje os adolescentes se trancam em casa. Têm medo de falar qualquer coisa sobre o assunto", diz Reginaldo Silva, gerente de advocacy (promoção) e participação juvenil da ONG cristã Visão Mundial, que atua em defesa dos direitos da criança e do adolescente.

Foi essa organização que tentou alertar as autoridades cearenses que estudantes que acabaram sendo assassinados em Sobral em setembro vinham sendo ameaçados por frequentarem uma escola em área controlada por uma facção diferente daquela que dominava a região em que viviam.

"Eu já recebi ligação de adolescente dizendo: 'Olha, eu estou aqui embaixo da minha cama porque está acontecendo tiroteio e eu estou com medo'. Hoje não tem mais esse relato que chega abertamente", afirma Silva. "Todos preferem o silêncio porque têm medo de perder a vida."

A organização, que atua na capital e em outras cidades no Ceará, identificou um aumento da violência em algumas das regiões onde houve entrada do TCP, assim como episódios de intolerância religiosa em Maracanaú e na vizinha Pacatuba.

Traficantes evangélicos?

A presença de traficantes que se dizem evangélicos não é exclusividade do TCP, ainda que o grupo tenha particularidades que vêm chamando a atenção de pesquisadores dentro do contexto do que alguns têm denominado de "narcopentecostalismo".

Especialistas apontam que a influência de religiões sobre as dinâmicas de poder do tráfico sempre existiu e não é algo particular ao protestantismo. Esse fenômeno, agora ligado à fé evangélica, é um reflexo do próprio avanço dessa religião entre os brasileiros. A adesão de membros de grupos criminosos a elas está dentro desse processo de expansão.

Em um artigo sobre a criação do Complexo de Israel, a coordenadora do Laboratório de Estudos em Política, Arte e Religião (LePar) da UFF, Christina Vital da Cunha, aponta que, nas décadas de 1980 e 1990, não era raro encontrar traficantes no Rio de Janeiro que se identificavam com religiões de matriz africana, dinâmica que foi se transformando no ritmo do crescimento do neopentecostalismo.

Em seu trabalho de campo, a pesquisadora acompanhou essa mudança nos murais e grafites que coloriam as comunidades cariocas. Com o passar dos anos, símbolos que faziam referência à umbanda e ao candomblé foram sendo substituídos por mensagens e imagens cristãs ligadas às crenças neopentecostais.

Esse fenômeno ganhou complexidade mais recentemente, quando a religião foi além das escolhas individuais de traficantes e passou a influenciar a identidade de grupos criminosos, como é o caso do TCP.

Os discursos, símbolos e ritos religiosos foram incorporados na conduta criminal da facção, observa Kristina Hinz, pesquisadora associada ao programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Uerj.

"Notavelmente, as facções narcopentecostais se utilizam do discurso religioso para legitimar a expansão dos seus territórios e nos confrontos com outras facções", destaca.

"O combate de inimigos passa a ser compreendido como guerra espiritual. Isto tem ocorrido principalmente em confrontos com o Comando Vermelho, tradicionalmente relacionado a religiões de matriz africana", completa.

Como conciliar, entretanto, a contradição entre a prática criminal, com assassinatos, torturas e extorsões, e a postura que se espera de fiéis cristãos? Hinz diz que a violência praticada por grupos ligados ao narcopentecostalismo "é legitimada com discursos do combate bélico e violento em nome da purificação religiosa e do combate das forças diabólicas, do mal".

Na comunidade evangélica mais tradicional, a rejeição da ideia de que traficantes possam ser de fato cristãos é muito forte. A lógica é que "ser evangélico" não significa só aderir às crenças da religião, mas ter atos e um estilo de vida de acordo com certos preceitos. Por isso, a ideia de um criminoso evangélico seria, portanto, inaceitável.

Paiva aponta que o TCP não pratica uma "teologia profunda", mas destaca a força que essa retórica tem na criação de uma "unidade ideológica".

"É um grupo que conseguiu, dentro da esfera criminal, de fato tornar a religião como elemento motivador das coisas", avalia o sociólogo.

Uma combinação que, diante do avanço do protestantismo, pode continuar atraindo adeptos. O último censo realizado entre a população carcerária no Ceará mostrou que 43,2% dos quase 20 mil presos eram evangélicos. Outros 33% eram católicos e os demais seguiam outras crenças.

Camilla Veras Mota, jornalista, de Fortaleza -CE para a BBC News Brasil, em 01.12.25