segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

A República? Ora, a república

O problema está justamente no vale-tudo, tudo mesmo, em que prevalece a mistura de interesses pessoais e partidários

Vista aérea do Congresso Nacional. Ao fundo a Praça dos Três Poderes — Foto: Cristiano Mariz/Agência O Globo/27-12-2023

Claro que é prerrogativa do presidente da República indicar nomes para o Supremo Tribunal Federal. Está na letra da lei. Mas o espírito da lei pede mais. O indicado, além do notório saber jurídico e da reputação ilibada, deve ser capaz de exercer a neutralidade e a independência para julgar até o próprio presidente que o indicou. Ingenuidade, dirão — e com razão, quando se observa a prática política de hoje. O problema está justamente aí, nesse vale-tudo — tudo mesmo — em que prevalece a mistura de interesses pessoais e partidários.

O presidente Lula exerce sua prerrogativa quando indica Jorge Messias, advogado-geral da União, a uma vaga no Supremo. Mas qual a principal credencial do indicado? Ser próximo do presidente, um quadro de sua confiança — como admitem abertamente seus colaboradores. Messias não é um estranho no mundo jurídico. Mas é, antes de tudo, um quadro do PT — tendo participado de várias gestões petistas e assessorado parlamentares do partido.

O presidente do Senado não tem a prerrogativa de indicar nomes ao Supremo. Pode sugerir, como fez, mas não pode reclamar ou ficar irritado quando “seu” nome não é contemplado. Sua função constitucional é, ao contrário, garantir que o indicado do presidente passe por uma sabatina justa e criteriosa, de modo que os senadores possam formar um juízo independente sobre o indicado. 

Ingenuidade de novo, dirão. Mas esse é o espírito que forjou as instituições republicanas. E que passa muito longe de práticas como acelerar ou atrasar a sabatina, em meio a barganhas — perdão, negociações. Além disso, se o indicado é um quadro do PT, por que o presidente do Senado não poderia brigar por um quadro do Senado, um nome mais próximo a ele?

E assim estamos hoje: a quilômetros de distância dos critérios de independência e competência acima de qualquer dúvida. Não é esse o único momento em que a República e o interesse público são maltratados.

Congresso aprova LDO em troca de 65% das emendas antes da eleição e dá aval para governo mirar piso da meta em 2026 e socorrer Correios

Ainda na semana passada, depois de meses de enrolação, o Congresso aprovou a Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2026. Garante o pagamento de 65% das emendas parlamentares no primeiro semestre. É descarado: os atuais deputados e senadores terão milhões à disposição justamente a tempo de irrigar suas campanhas eleitorais. Lula disse que, com as emendas, os parlamentares sequestraram o Orçamento. Tem razão. Mas o governo também não respeita o Orçamento.

Para aprovar a LDO, os governistas trocaram as emendas por “espaço fiscal” — dinheiro para gastar fora da meta. A meta para 2026 é um superávit de R$ 34 bilhões. Mas, se der zero, o governo a terá legalmente cumprido, pois o Orçamento oferece uma margem de tolerância. Na verdade, a mágica vai além: se fizer um déficit de uns R$ 10 bilhões, cumprirá a meta de superávit. É que alguns gastos não entram na contabilidade oficial, como os R$ 10 bilhões que podem ser alocados para tentar salvar os Correios.

O governo gasta o dinheiro efetivamente, gasta mais que arrecada, toma emprestado e, ainda assim, cumpre meta de superávit. Se o Orçamento é assim desmoralizado, por que os parlamentares se preocupariam com isso de equilíbrio fiscal?

No Rio, toda a política foi mais uma vez desmoralizada, com a prisão do presidente da Assembleia Legislativa, Rodrigo Bacellar. O que ele fazia com R$ 90 mil em dinheiro vivo, que guardava numa mochila?

Para coroar a semana, na sexta passada, na surdina, o Senado aprovou um reajuste salarial para servidores do Tribunal de Contas da União. A remuneração pode chegar a R$ 64 mil mensais, bem acima do teto constitucional de R$ 46.366,19. Esse extrateto, como no caso de milhares de juízes e outros funcionários, é isento de IR. Em 2026, o governo cobrará mais IR dos contribuintes que ganham mais de R$ 600 mil por ano (R$ 50 mil ao mês), para compensar a isenção dos que ganham até R$ 5 mil. Justiça tributária, explicam. Mas não para todos.

Carlos Alberto Sardenberg, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 08.12.25. Edição online.

Arsenal dos bandidos ficou mais forte e mais novo após decretos pró-armas de Bolsonaro, diz estudo

Levantamento do Instituto Sou da Paz analisou 255,9 mil apreensões na região Sudeste entre 2018 e 2023; fuzis e 9 mm aumentam. 

Há indícios de que armas recém-compradas migram ao mercado clandestino rapidamente, afirma entidade

A flexibilização promovida pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no acesso a armas no Brasil alterou o perfil do armamento apreendido pelas polícias no Sudeste e impulsionou a modernização do arsenal dos criminosos, aponta estudo realizado pelo Instituto Sou da Paz.

Intitulado "Arsenal do Crime: Análise do perfil das armas de fogo apreendidas no Sudeste", o levantamento investigou 255,9 mil apreensões realizadas pelas polícias estaduais e pela Polícia Federal de 2018 a 2023. Os dados foram obtidos por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação).

A quantidade de armas apreendidas sofre queda contínua desde a aprovação do Estatuto do Desarmamento, diz o estudo. Houve reversão em 2023, quando a região registrou 37.994 ocorrências do gênero ante 36.370 do ano anterior.

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) durante solenidade de assinatura de decreto presidencial que flexibilizou regras para atiradores esportivos, caçadores e colecionadores de armas - Pedro Ladeira - 7.mai.2019/Folhapress

O ex-presidente está hoje preso na Superintendência da PF em Brasília, condenado no processo da trama golpista.

A flexibilização do acesso a armas no Brasil foi promessa de campanha de Bolsonaro, que historicamente fez críticas ao Estatuto do Desarmamento e alegava que a medida permitia que as famílias se defendessem.

A mudança mais expressiva envolve pistolas 9 mm, cuja compra foi facilitada em norma editada por Bolsonaro em maio de 2019.

Entre todas as apreensões de pistolas na região Sudeste, modelos 9 mm respondiam por 28,5% das ocorrências em 2018, um ano antes da flexibilização, percentual que saltou a 50,5% em 2023. Seu uso até então era restrito às polícias e às Forças Armadas. O presidente Lula (PT) revogou as normas do antecessor ao assumir o Planalto. Na ocasião, o petista chamou as medidas de "criminosos decretos de ampliação do acesso a armas e munições, que tanta insegurança e tanto mal causaram às famílias brasileiras".

O crescimento redesenha as características do arsenal clandestino, diz a pesquisa. Apreensões de revólveres caíram de 42,2%, em 2018, para 37,6%, em 2023, à medida que as de pistolas foram de 25,1% para 35,9% no mesmo período.

Em São Paulo o padrão se repete. Ocorrências do gênero envolvendo pistolas saíram de 25,6% para 33,4% no primeiro e no último ano, respectivamente, enquanto a apreensão de revólveres caiu de 47,4% para 43,5%.

A participação das armas 9 mm no total de pistolas apreendidas no estado, enquanto isso, escalou de 8,4% para 37,2% no período analisado. Foram 273 apreensões no primeiro ano da série e 1.305 no último.

O levantamento aponta também que as armas apreendidas estão mais novas. Em 2018 houve 170 apreensões de modelos fabricados até dois anos antes da respectiva ocorrência, número que em 2023 chegou a 843 somente em território paulista.

Para o instituto, o aumento "traz um indicativo forte de que armas recém-adquiridas no mercado legal estão migrando rapidamente para o universo criminal".

Fuzis também entram nessa conta: foram 4.444 apreensões no Sudeste, 910 das quais em São Paulo. O estado vem registrando aumento: os fuzis abrangiam 0,9% das apreensões em 2018 e em 2023 corresponderam a 1,5%.

O número de armas artesanais no geral caiu durante período analisado.

O estudo diz que elas representam parte expressiva dos aparatos com maior poder de fogo, a exemplo do que ocorria em Santa Bárbara d'Oeste —onde uma fábrica clandestina foi fechada pela PF em operação que levou 11 pessoas a serem denunciadas neste ano. Investigações apontam que facções se utilizam desse tipo de fábrica para se armar.

Um dos decretos de Bolsonaro permitiu que CACs (Caçadores, Atiradores Desportivos e Colecionadores) comprassem por ano até 5.000 munições para armas de uso liberado e mil para as de uso restrito, como fuzis ou carabinas, por exemplo. O texto também foi revogado.

O que foi o decreto de armas de Bolsonaro revogado por Lula

"Eram quantidades absurdas, fora de qualquer razoabilidade, o que possibilitou esquemas de 'laranjas'", afirma o consultor sênior do Sou da Paz, Bruno Langeani, coordenador da pesquisa sobre o Sudeste.

No ano passado, relatório do TCU (Tribunal de Contas da União) mostrou que 2.579 pessoas mortas estavam registradas como CACs. Na ocasião, de acordo com o relatório do órgão, 9.387 pessoas com mandados de prisão estavam com o registro ativo para possuir armas. Outros 19.479 tinham processos de execução penal em aberto.

Para Langeani, o levantamento "é um raio-x do mercado criminal" e revela também que as armas ilegais estão mais presentes nas casas dos brasileiros e são usadas tanto por organizações como por cidadãos comuns, em crimes patrimoniais.

Em São Paulo, 31,8% das armas foram apreendidas em ambiente residencial, embora ocorrências em vias públicas sejam as mais frequentes.

O levantamento diz também que "a malha rodoviária é um ponto relevante de apreensões, sugerindo que uma parcela significativa estava em trânsito, inclusive para o Rio de Janeiro ou estados do Nordeste".

A capital paulista lidera as dez cidades paulistas com mais apreensões em números absolutos, com 14.842 armas capturadas de 2018 a 2023, mas não entra no ranking se considerados índices proporcionais, à frente do qual está Guaratinguetá.

Com 121 mil habitantes e 380 armas apreendidas no período, o município registrou 312,2 armas capturadas a cada cem mil habitantes, maior índice do estado, segundo a pesquisa.

A PM concentra 72% das 68.204 apreensões em São Paulo, percentual bastante superior aos 14,9% que registra a Polícia Civil, diferença que mostra fragilidades na política de segurança, diz Langeani.

"O estado não tem nenhuma delegacia especializada para combater tráfico de armas nem um trabalho de fiscalização específico contra grupos vulneráveis."

Ex-presidente alegou defender liberdade

Quando assinou os primeiros decretos flexibilizando as regras para armas, logo ao assumir o governo, Bolsonaro afirmou que a medida devolvia à população a vontade de decidir. "Por muito tempo, coube ao Estado determinar quem tinha ou não direito de defender a si mesmo, à sua família e à sua propriedade", declarou na ocasião.

Mais tarde, afirmou que armar a população poderia evitar golpes de Estado. "Nossa vida tem valor, mas tem algo com muito mais valoroso do que a nossa vida, que é a nossa liberdade. Além das Forças Armadas, defendo o armamento individual para o nosso povo, para que tentações não passem na cabeça de governantes para assumir o poder de forma absoluta", disse.

Na campanha de 2022, por sua vez, reafirmou as declarações e disse que armas garantem segurança às famílias e à soberania nacional. O instrumento, declarou, é "a garantia de que a nossa democracia será preservada".

André Fleury Moraes, jornalista, originalmente, para a Folha de S. Paulo, em 07.12.25, edição  online.

Combate ao crime: demanda urgente

A esperança só renascerá quando a autoridade do Estado se fizer presente em cada rua, em cada morro, em cada esquina onde hoje reina o medo

A megaoperação no Rio de Janeiro, com ao menos 120 mortos e mais de uma centena de prisões, é um retrato brutal de um país que há décadas convive com a corrosão de sua autoridade. O Estado brasileiro, leniente e omisso, permitiu que o crime organizado se transformasse em poder paralelo. O drama carioca não é uma tragédia isolada. É a consequência direta de anos de complacência, permissividade e cumplicidade institucional diante do avanço do narcotráfico.

A ação conjunta de 2,5 mil policiais civis e militares contra o Comando Vermelho nos complexos do Alemão e da Penha revelou o grau de militarização das facções criminosas. A reação foi a esperada: fogo pesado, barricadas, drones lançando bombas, pânico generalizado. O Estado, que por tanto tempo se ausentou dessas comunidades, agora precisa entrar nelas com blindados. E quando o faz, ideólogos, militantes e intelectuais de gabinete apressam-se em repetir os velhos slogans: “massacre”, “chacina”, “genocídio”. Mas o que esses termos escondem é a incapacidade de encarar a realidade. O verdadeiro genocídio é o das famílias pobres condenadas a viver sob o jugo do tráfico, sem liberdade, sem segurança, sem paz.

É uma tragédia. Nenhuma operação deve banalizar a vida. Mas é igualmente irresponsável transformar criminosos armados com fuzis em vítimas da sociedade. O combate ao crime não é uma escolha moral entre o bem e o mal absolutos, mas uma exigência de sobrevivência social. O Estado que abdica de reprimir o crime perde o direito de se chamar Estado. A omissão, como já adverti em outro contexto, é uma forma de cumplicidade.

A leniência com o crime organizado é o maior escândalo silencioso do Brasil contemporâneo. O poder público, por covardia, ideologia ou conveniência, tem fechado os olhos ao domínio territorial das facções. No Rio, comunidades inteiras vivem sob leis próprias, impostas por bandos armados que executam, punem e cobram impostos. Essa degradação institucional é fruto direto de duas ausências: a ausência do Estado como provedor de serviços e a ausência da autoridade como garantidora da ordem. Quando o Estado se retira, o tráfico ocupa. E quando tenta voltar, é recebido a tiros.

A complacência jurídica e política alimentou esse monstro. Decisões judiciais que restringem operações policiais em áreas dominadas pelo crime, como as do ministro Edson Fachin, criaram uma espécie de salvo-conduto para a bandidagem. A polícia, desmoralizada e engessada por regras impraticáveis, tornou-se alvo fácil de críticas e emboscadas. A cada operação, exige-se da força pública um padrão de perfeição impossível em um ambiente de guerra urbana. Exige-se que o policial arrisque a vida, mas não se admite que ele reaja. A inversão de valores chegou ao limite.

Não há democracia possível onde o crime é soberano. O Rio de Janeiro, laboratório trágico dessa anomia, vive um colapso moral e institucional. As facções não apenas controlam territórios, mas impõem códigos de conduta, toques de recolher e punições sumárias. Impedem moradores de visitar familiares em áreas rivais, controlam o comércio e a circulação. É um Estado paralelo em funcionamento – e, pior, tolerado por uma parcela da elite política e intelectual que prefere denunciar o “excesso policial” a enfrentar a causa real da violência.

A cooperação entre governos e forças de segurança, tão alardeada, continua frágil. Na megaoperação de terça-feira, as forças fluminenses agiram praticamente sozinhas. A ausência de uma coordenação nacional contra o crime organizado é mais uma expressão da nossa paralisia federativa. Enquanto o tráfico é uma empresa multinacional, o Estado brasileiro ainda se comporta como um conjunto de feudos desarticulados. É preciso integrar inteligência, cortar fluxos financeiros, endurecer penas e acabar com as portas giratórias das delegacias, onde o criminoso sai antes do policial que o prendeu.

O combate ao crime é uma demanda legítima e urgente da sociedade. Três em cada quatro brasileiros vivem em áreas onde o crime organizado está presente. Um em cada quatro afirma que facções impõem regras de comportamento em seu bairro. Esses números são intoleráveis. O cidadão comum – o trabalhador que pega ônibus às 5 horas da manhã, a mãe que teme o filho aliciado pelo tráfico – está farto do discurso das cátedras e das ONGs. Ele quer segurança, lei e ordem. Quer o direito elementar de viver sem medo.

É evidente que a polícia deve agir dentro da lei. Nenhum excesso deve ser tolerado. Mas também é evidente que a lei precisa proteger quem a defende. A sociedade brasileira não pode continuar refém de um sistema penal frouxo, de um Judiciário que legisla a favor da impunidade e de um discurso ideológico que desarma moralmente a ação do Estado. A paz não se conquista com conivência, mas com autoridade e justiça.

A sociedade brasileira clama por segurança, não por slogans. A esperança só renascerá quando a autoridade do Estado se fizer presente em cada rua, em cada morro, em cada esquina onde hoje reina o medo. Recuperar o território, física e moralmente, é mais do que uma tarefa policial. É uma missão civilizatória.

Carlos Alberto Di Franco, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo (edição on line), em 08.12.25

Supremo faz ‘ataque preventivo’ diante da iminência de perda de poder

Antes que suas atribuições sejam reduzidas, o Judiciário aumenta suas defesas — aqui e no resto do mundo


Decisões como a do ministro Gilmar Mendes fazem parte de um fenômeno bem documentado na literatura de ciência política e do direito comparado: cortes reagindo preventivamente quando percebem ameaça política real Foto: Wilton Junior

A decisão do ministro Gilmar Mendes — restringindo a possibilidade de pedidos de impeachment contra ministros do STF exclusivamente à Procuradoria Geral da República — foi recebida com surpresa e acusada, por alguns, de autoproteção corporativa. Mas, ao contrário do que parece, o movimento deve ser interpretado como parte de um fenômeno bem documentado na literatura de ciência política e do direito comparado: cortes reagindo preventivamente quando percebem ameaça política real.

Em democracias, tribunais constitucionais dependem de legitimidade e de estabilidade institucional para exercer suas funções. Quando ambos os pilares começam a estremecer por ataques diretos de outros poderes, é comum que as cortes adotem decisões que funcionam como escudos preventivos contra tentativas de redução de suas competências ou captura-las politicamente.

Decisões como a do ministro Gilmar Mendes fazem parte de um fenômeno bem documentado na literatura de ciência política e do direito comparado: cortes reagindo preventivamente quando percebem ameaça política real

Decisões como a do ministro Gilmar Mendes fazem parte de um fenômeno bem documentado na literatura de ciência política e do direito comparado: cortes reagindo preventivamente quando percebem ameaça política real Foto: wilton junior

Esse comportamento é previsível. Instituições não são atores neutros em ambientes de conflito. Tom Ginsburg e Aziz Huq mostram que, quando os custos de inação superam os custos de ação, supremas cortes tendem a “endurecer” e produzir jurisprudência defensiva, destinada a aumentar sua resiliência diante de ameaças externas. Da mesma forma, estudos recentes mostram que o desgaste da confiança pública no Judiciário, hoje observável em várias democracias, incentiva movimentos estratégicos de autopreservação por parte das cortes.

O caso brasileiro se encaixa perfeitamente nesse padrão. O Congresso discute, há meses, propostas para reduzir poderes do STF. Nesse ambiente, a probabilidade de uma reação preventiva aumenta. A decisão de Gilmar Mendes, nesse sentido, não deve ser vista isoladamente, mas como parte de um tabuleiro institucional mais amplo.

Não se trata de um fenômeno brasileiro. Em Israel, por exemplo, a High Court of Justice realizou um movimento semelhante em 2023–2024, quando o governo de Binyamin Netanyahu tentou aprovar reformas para enfraquecer a corte. A resposta do Judiciário israelense foi clara: decisões robustas, assertivas e coordenadas para bloquear, antes que fosse tarde, a erosão de suas competências. O que ocorreu ali se tornou um caso paradigmático de preemptive strike judicial — uma reação institucional à iminência de perda de poder.

O mesmo mecanismo ajuda a explicar o comportamento do STF agora. Quando o Legislativo sinaliza que pretende mudar as regras do jogo, a tendência é que o tribunal identifique a conjuntura como perigosa. Se o sistema político ameaça alterar os pesos e contrapesos, a resposta do Judiciário tende a ser justamente reforçá-los.

Carlos Pereira, o autor deste artigo, é cientista político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV EBAPE) e sênior fellow do CEBRI. Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 08.12.25

burocracia como negócio

Os oligopólios notariais são a mais próspera anomalia do Brasil: feudos travestidos de função pública, que prometem segurança jurídica, mas entregam privilégios, custos abusivos e atraso

Em 25 dos 27 Estados brasileiros, o ofício mais bem pago não é o de empresário, médico ou jogador de futebol. É o de tabelião – nos outros dois, é o de juiz ou procurador. Como radiografou uma reportagem do Estadão, uma casta de delegatários investidos de “fé pública” subverte há séculos uma função estatal em “mina de ouro vitalícia”. Ganha-se mais autenticando assinaturas do que dirigindo empresas ou salvando vidas. É o retrato do patrimonialismo: a burocracia como negócio.

O cartel cartorial é uma anomalia que sobreviveu à República, à industrialização e à revolução digital. Enquanto países modernos digitalizaram seus registros e integraram cadastros, o Brasil cultiva uma distopia de balcões, carimbos e taxas. Criados para dar segurança jurídica, os cartórios consolidaram um ecossistema de privilégios blindado pelas corporações de juízes e procuradores, que levam parte do butim. Um microcosmo do clientelismo, onde a função é pública, e os lucros, privados.

Em média, os tabeliães faturam R$ 156 mil mensais, e alguns mais de meio milhão. A receita anual dos cartórios – mais de R$ 30 bilhões – supera o orçamento somado de programas como o Farmácia Popular, o Mais Médicos e a merenda de todas as crianças da rede pública. Um enclave rentista sem concorrência cimentado por lei – verdadeiros feudos de arrecadação.

O mantra da “segurança jurídica” dá verniz a um Leviatã notarial que sobrevive de rituais anacrônicos. Em pleno século 21, o cidadão ainda precisa reconhecer firma, autenticar cópias e peregrinar de guichê em guichê para provar que é quem diz ser – eternamente cativo de uma burocracia bizantina que transforma o tempo em tributo e condena o País a ser um dos mais lerdos e caros do planeta para abrir empresas, registrar propriedades e executar contratos.

A distorção é, a um tempo, moral e econômica. Segundo a Câmara Brasileira da Indústria da Construção, a burocracia cartorial encarece a casa própria em até 12% – uma taxa informal sobre o direito de morar. As taxas formais variam grotescamente – o protesto de uma dívida pode custar R$ 69 no Ceará e R$ 4 mil no Piauí. Essa máquina de produzir desigualdades e asfixiar a produtividade não é acidente: é produto do lobby do carimbo e do balcão que bloqueia toda tentativa de simplificação, padronização ou transparência.

O contraste internacional é humilhante. Na Suécia, registros civis e fiscais são totalmente digitais e gratuitos. Portugal privatizou o notariado, mas fixou tarifas e limitou ganhos. Na França, os notários são oficiais nomeados pelo Estado, com tabela nacional e controle público. Até a Estônia permite abrir empresas em minutos, com total rastreabilidade digital. Já o Brasil conserva capitanias hereditárias sustentadas por selos, carimbos e taxas do século 19.

Não se trata de destruir a fé pública, mas de modernizá-la. O País precisa de um novo pacto cartorial, guiado por eficiência, transparência e concorrência. Isso implica consumar a digitalização dos registros públicos; fixar um teto remuneratório vinculado ao serviço público; padronizar e publicar os emolumentos sob autoridade independente; e permitir concorrência territorial e fé pública compartilhada com instituições certificadas, como já ocorre em Portugal. E, sobretudo, quebrar a simbiose entre burocracia, Justiça e política que perpetua essa reserva de mercado oligárquica.

Nenhum país que aspire à modernidade pode tolerar um despotismo capilarizado que transforma o ato de registrar uma escritura em privilégio de casta. A digitalização e a competição não ameaçam a segurança jurídica – apenas retiram dos carimbos o monopólio da confiança. É hora de devolver ao cidadão o tempo e o dinheiro sequestrados por uma elite extrativista.

Desburocratizar os cartórios é mais do que uma reforma administrativa: é um gesto civilizacional. É libertar o Brasil do cativeiro do papel, dos labirintos de formulários e dos rituais de submissão ao balcão. Nenhuma democracia decente transforma o selo público em fortuna privada. A República começa quando a assinatura deixa de ser negócio – e volta a ser um ato de fé na lei, não no tabelião.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 10..11.25

domingo, 7 de dezembro de 2025

Câmara tem de cassar Eduardo, Ramagem e Zambelli

Deputados fugitivos têm condenações na Justiça; filho de Bolsonaro tramou contra o país e falta sessões

Plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília (DF) - Kayo Magalhaes/Divulgação Câmara dos Deputados

Com provável condenação de Eduardo, os três ficarão inelegíveis; cassação acrescentaria rejeição de práticas ofensivas ao mandato popular

A imagem mostra o plenário da Câmara dos Deputados do Brasil, com um formato circular. Há várias cadeiras vazias e algumas pessoas em pé e sentadas, discutindo. No fundo, há painéis eletrônicos exibindo informações. O ambiente é bem iluminado e possui uma decoração moderna.

A Câmara dos Deputados depara-se com a inusitada situação de ter de lidar com um trio de parlamentares que fugiu do país para escapar das garras da Justiça. Mandatos eletivos, conferidos no exercício da soberania popular, deveriam ser cassados só em situações excepcionais pelos pares —chegou-se a esse ponto nos três casos.

Carla Zambelli (PL-SP), presa na Itália enquanto aguarda a conclusão de processo de extradição, e Alexandre Ramagem (PL-RJ), que se evadiu para os Estados Unidos, têm contra si diplomas de condenação criminal transitada em julgado expedidos pelo Supremo Tribunal Federal.

A deputada foi condenada a dez anos de prisão por invasão do sistema computacional do Conselho Nacional de Justiça e emissão de um mandado falso de prisão contra o ministro Alexandre de Moraes. Em outro processo, pegou mais cinco anos pela famigerada perseguição, de arma em punho, a um provocador na véspera do segundo turno de 2022.

Ramagem, ex-chefe da Abin na administração Jair Bolsonaro (PL), foi sentenciado a 16 anos de prisão no mesmo julgamento que condenou o ex-presidente e outros seis réus por tentativa de golpe de Estado. Como não cabe mais recurso desta decisão, tampouco das contra Zambelli, a cassação dos mandatos decorre de um comando constitucional.

No artigo 15, a Carta de 1988 abre poucas exceções a permitir a anulação dos direitos políticos, sendo uma delas a "condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos". Resta em aberto, como tema de longa controvérsia, o modo como essa ordem deve ser cumprida.

O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), parece inclinado a submeter a decisão, no caso da dupla condenada, ao plenário da Casa. Não é despropositado consultar todo o corpo dos deputados, já que os pares deveriam resolver sobre perda de mandato, e espera-se que a ampla maioria vote pela cassação em obediência à Constituição.

A situação do fujão Eduardo Bolsonaro (PL-SP) é distinta, embora ele mereça a mesma punição. Saiu do país para tramar com o governo dos Estados Unidos contra a soberania e a economia brasileiras e falta às sessões desde março último. Nesse período, os contribuintes já desembolsaram R$ 1 milhão para sustentar a estrutura do representante que não representa mais ninguém.

Pelas regras da Câmara sobre ausências, o seu posto de deputado poderá ser declarado vago em março de 2026. Concomitantemente, responde à revelia a um processo no STF por coação que deverá colocá-lo na mesma situação de Zambelli e Ramagem.

Com a provável condenação de Eduardo Bolsonaro, os três ficarão inelegíveis pelos próximos ciclos eleitorais, o que para políticos já significa castigo severo. A cassação dos mandatos acrescentaria a seus deploráveis currículos a rejeição, pelos pares, de práticas incompatíveis com o exercício da função parlamentar.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 06.12.25 (edição impressa). / editoriais@grupofolha.com.br


Venezuela e a impunidade de Trump

A estigmatização de Maduro cria um vácuo legal onde Trump pode operar com impunidade, mas é um território extremamente perigoso.

            DA FOME    

Não estamos preparados para o poder sem máscaras. E muito menos quando se trata dos Estados Unidos. Quando a Rússia ou a China violam o direito internacional, chamamos isso pelo que é: pressão, ameaças, abusos. Se for Washington, a gramática muda. Falamos de "inconsistências", de "sinais confusos", de "dificuldade de decifração". O eufemismo é um refúgio cognitivo: evita reconhecer que a potência hegemônica ocidental voltou a jogar conforme as regras, algo que denunciou durante décadas em sussurros quando se tratava de outros países. Na Venezuela, essa deriva atinge sua expressão mais brutal . Trump declarou o espaço aéreo de um país soberano "fechado" sem qualquer base legal. Ordenou o maior destacamento naval no Caribe desde a crise dos mísseis e está realizando operações em alto-mar com dezenas de mortes sem provas ou julgamento, justificando-as como parte da luta contra o narcotráfico, enquanto anuncia sua intenção de perdoar Juan Orlando Hernández , o ex-presidente hondurenho condenado por conluio com narcotraficantes. O objetivo é claro: acelerar a queda de Maduro e colher os benefícios na forma de petróleo. O que não está claro é o limite.
Tudo acontece à luz do dia, e quase ninguém diz uma palavra, nem mesmo a Espanha, onde a política latino-americana costuma provocar reações imediatas e exageradas. Por que esse silêncio? Uma razão pode ser estrutural: as ferramentas diplomáticas são inúteis contra uma potência que não reconhece regras nem árbitros, nem mesmo a obrigação de fingir. A outra razão é mais perturbadora: Maduro é um ator desacreditado, e isso serve como um atalho moral. Como ele cometeu violações dos direitos humanos e perdeu legitimidade, parece menos grave para uma grande potência desrespeitar as regras. Essa estigmatização cria um vácuo normativo onde Trump pode operar com impunidade, mas é um terreno extremamente perigoso. Se hoje toleramos a arbitrariedade contra Caracas porque “ela merece”, amanhã ela será aplicada a qualquer cenário. A erosão do direito internacional sempre começa onde é politicamente vantajoso desviar o olhar.

Aqueles que hoje fecham os olhos, movidos pelo desprezo por Maduro, devem lembrar que a normalização do abuso é sempre performativa. Não é que Trump tenha poder e por isso ele seja normalizado; é que validar sua impunidade é o que amplifica seu poder. O que toleramos por conveniência acaba se tornando um precedente e se estabelecendo como prática legítima. Cada silêncio ou gesto de indulgência, cada crítica adiada, contribui para ampliar a margem de manobra daqueles que desrespeitam as regras. E aí reside o verdadeiro perigo: não em aplicar arbitrariedade contra um regime impopular, mas no fato de que, uma vez aceita, essa arbitrariedade fica disponível para qualquer situação. A comunidade internacional não apenas testemunha a expansão do poder de Trump, como a favorece abertamente ao não se incomodar, porque quem é afetado é Maduro. Porque uma coisa é exercer pressão diplomática, aplicar sanções ou buscar uma transição democrática, e outra bem diferente é ignorar execuções extrajudiciais em alto-mar ou a declaração ilegal de uma zona de exclusão aérea. E tudo isso acontece sob o governo de um presidente que persegue juízes e procuradores do Tribunal Penal Internacional e exige anistias gerais para apagar os crimes de guerra de Putin e Netanyahu. Se essa é a “libertação” que Trump oferece, a Venezuela pode descobrir que sempre há mais um degrau na escada da desordem. E o resto do mundo pode aprender que um poder sem máscaras só precisa, para se expandir, que o resto de nós continue fingindo que o que todos nós, sem exceção, sabemos que está acontecendo, não está.

Mariam Martinez-Bascuñán, a autora deste artigo, é Professora de Teoria Política na Universidade Autônoma de Madri. Autora do livro "Gênero, Emancipação e Diferenças" (Plaza & Valdés, 2012) e coautora de "Populismos" (Alianza Editorial, 2017). Entre junho de 2018 e 2020, foi editora de Opinião do jornal EL PAÍS. Atualmente, é colunista e colaboradora do mesmo jornal, além de membro de seu conselho editorial. Publicado originalmente por EL PAÍS, em 07.12.25

'O verdadeiro perigo da inteligência artificial é a estupidez humana'

 "Trabalhamos de graça para o Instagram ao fazer o upload de nossas fotos, para que a rede social exista e fature milhões. É preciso estar consciente e aproveitar os benefícios das plataformas sem deixar que os riscos nos prejudiquem", afirma.

Laura G. De Rivera acredita que os algoritmos estão determinando nossas vidas sem que percebamos (Crédito: Laura G. De River)

É noite e você decide sair para jantar. É possível que seu parceiro não saiba o que você quer comer, mas a inteligência artificial sabe: à tarde, ela te viu assistindo a vídeos de tacos e tem certeza de que agora você não consegue parar de pensar neles.

"Se não tomarmos decisões, outros as tomarão por nós", escreve a jornalista e escritora espanhola Laura G. de Rivera em seu livro Esclavos del algoritmo: Manual de resistencia en la era de la inteligencia artificial (Escravos do Algoritmo: Um Manual de Resistência na Era da Inteligência Artificial, em tradução livre), resultado de anos de pesquisa.

"Vivemos imersos em pensamentos, desejos e sentimentos impostos de fora porque, ao que parece, nós, humanos, somos bastante previsíveis. Basta aplicar a estatística às nossas ações passadas, e é como se alguém lesse nossa mente", continua.

A precisão em prever nossas necessidades ou desejos é tão grande que Michal Kosinski, psicólogo e professor da Universidade Stanford (EUA), demonstrou em seus experimentos que um algoritmo bem treinado, com dados digitais suficientes, pode prever o que você quer ou do que você gosta mais do que a sua mãe.

Soa bem, em princípio, a ideia de que a inteligência artificial possa prever os interesses de uma pessoa com extrema precisão. Mas isso tem um preço, diz Rivera, e é um preço alto: "Perdemos a liberdade, perdemos a capacidade de sermos nós mesmos, perdemos a imaginação."

"Trabalhamos de graça para o Instagram ao fazer o upload de nossas fotos, para que a rede social exista e fature milhões. É preciso estar consciente e aproveitar os benefícios das plataformas sem deixar que os riscos nos prejudiquem", afirma.

A BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) conversou com Rivera durante o Hay Festival, que acontece entre 6 a 9 de novembro na cidade peruana de Arequipa, evento que reúne 130 participantes de 15 países.

Capa do livro "Esclavos del algoritmo", com o título em letras vermelhas. (Crédito: Penguin Random House)

"A informação é poder. E a corrida para se apropriar dela está desenfreada", escreve a autora

Qual é a solução para não nos tornarmos escravos do algoritmo?

A solução, na minha opinião, é muito simples, está ao alcance de qualquer pessoa, é gratuita e não tem impacto ambiental. É simplesmente pensar. Em outras palavras, usar o cérebro. É uma capacidade humana que está em desuso, que se perdeu.

A cada momentoem que não estamos trabalhando ou com outras pessoas, pegamos o celular e nos distraímos com a tela. Já não pensamos na sala de espera do médico nem quando nos entediamos em casa.

Esses espaços que antes serviam para pensar estão hoje completamente ocupados por uma distração constante. Pelo smartphone, recebemos um bombardeio de estímulos que nos impede de refletir.

Há outras coisas que se podem fazer, mas para mim esta é a mais básica e a mais fácil. Só o pensamento crítico pode defender a liberdade individual diante do controle algorítmico e da vontade de terceiros.

É quase impossível não fornecer dados ao se inscrever em uma plataforma. E ainda mais difícil ler todas as letras miúdas de um serviço ou rejeitar os "cookies" toda vez que entramos em um site. Nos tornamos preguiçosos?

Somos um pouco preguiçosos e um pouco marionetes, mas também nos falta informação.

Muita gente não percebe que, ao passar horas no TikTok, está trabalhando de graça para a plataforma. Elas fornecem à plataforma todos os seus dados de comportamento online, e esses dados têm valor econômico.

Por isso, a educação é fundamental: ela explica como funciona o modelo de negócios dessas grandes plataformas.

Como é possível que o Google seja uma das empresas mais ricas do mundo se não nos cobra pelos seus serviços? 

Refletir sobre isso é muito importante para que as pessoas entendam o quão valiosas são todas as informações que fornecemos sobre nós mesmos.

"Decidir nos assusta muito, e preferimos ser como robôs, que nos digam o que fazer", diz a jornalista (Crédito: Getty Images)

Quais são os perigos da inteligência artificial?

Na realidade, o verdadeiro perigo é a estupidez humana, porque a inteligência artificial em si não precisa fazer nada com você; ela é apenas composta de zeros e uns.

O problema é que somos tão preguiçosos que, se as coisas forem feitas por nós, melhor ainda. Isso nos coloca numa posição em que somos mais facilmente manipulados.

Vivemos um adormecimento generalizado da vontade. Resignamo-nos diante da digitalização do sistema de saúde, da vigilância em massa e da educação online dos filhos. Aceitamos injustiças, abusos e ignorância como fatos inevitáveis contra os quais não nos rebelamos, por pura preguiça.

Quais podem ser as consequências de confiar inteiramente nas previsões automáticas de um sistema algorítmico?

Quando delegamos decisões importantes, que podem até envolver vida ou morte, o risco é muito alto, sobretudo porque estudos mostram que os humanos tendem a acreditar que, se um computador diz algo, deve ser verdade, mesmo que pensemos diferente.

Então, a quem você vai deixar que decida? À sua mãe, ao seu professor, ao seu chefe ou à inteligência artificial?

Esse é um problema muito antigo da humanidade. Gosto muito do livro do psicanalista, sociólogo e membro da Escola de Frankfurt, Erich Fromm, O Medo à Liberdade, que é dedicado precisamente a isso.

Fromm argumenta que os seres humanos preferem receber ordens porque têm pavor da ideia de a decisão ser tomada por eles mesmos. Tomar decisões nos assusta, e preferimos ser como robôs, recebendo ordens. E Fromm já dizia isso no começo do século 20.

São necessários centros de dados e outras infraestruturas cada vez maiores para a inteligência artificial (Crédito: Getty Images)

Existe alguma maneira de evitar divulgar nossos dados online?

Claro que sim. Há maneiras de não entregar nossos dados, ou de entregar apenas o mínimo necessário. Mas o mais importante é entender como as plataformas funcionam. Só assim é possível tomar medidas, ainda que seja apenas para dificultar um pouco a vida dos que lucram com seus dados e com sua vida. É possível adotar pequenos hábitos, como rejeitar os "cookies" ao entrar em um site.

O que mais podemos fazer?

Podemos também falar sobre a necessidade de regulamentações que nos protejam e sobre o desenvolvimento da ética por parte das empresas que utilizam inteligência artificial.

A sra. está se referindo ao caso Edward Snowden, que expôs os sistemas de vigilância em massa usados ​​pelas agências de inteligência dos EUA?

Sim. Para mim, Snowden é um dos heróis deste século para mim, mas existem outros. O caso dele é o mais conhecido.

Há também Sophie Zhang, cientista de dados do Facebook, que foi demitida após alertar internamente sobre o uso sistemático de contas falsas e bots por governos e partidos políticos para manipular a opinião pública e semear o ódio.

Zhang percebeu que, em muitas partes do mundo, na América Latina, na Ásia e até mesmo em alguns lugares da Europa, havia políticos usando contas falsas, com seguidores inexistentes, com curtidas e compartilhamentos incessantes, para enganar os cidadãos e fazê-los acreditar que tinham apoio e aceitação popular que não eram verdadeiros.

Toda a complexa teia de informações sobre nossa vida privada é armazenada em grandes centros de dados ((Crédito:Getty Images)

Quando relatou o problema a seus superiores, Sophie Zhang percebeu, surpresa!, que ninguém queria fazer nada para resolvê-lo.

Demorou um ano, por exemplo, para que o Facebook apagasse a rede de seguidores falsos do então presidente de Honduras, Juan Orlando Hernández, declarado culpado pelo Tribunal Federal de Distrito em Nova York por conspirar para importar cocaína aos Estados Unidos e por posse de metralhadoras.

Em seu livro, a sra. também menciona o caso da engenheira de computação Timnit Gebru, codiretora da equipe de Ética em IA do Google, que também foi demitida.

Sim, por denunciar que os algoritmos favorecem a discriminação racial e de gênero. Ela alertou que os grandes modelos de linguagem podiam representar um risco: as pessoas poderiam acreditar que eram humanos e ser manipuladas por eles. Apesar da carta de protesto assinada por mais de 1.400 funcionários da empresa, Gebru acabou demitida.

Outro "denunciante" é Guillaume Chaslot, ex-funcionário do YouTube, que descobriu que o algoritmo de recomendações empurrava sistematicamente os usuários para conteúdos sensacionalistas, teorias da conspiração e conteúdo polarizador.

Que esperança nos resta?

Sabemos com certeza que, por mais que se tente, um programa de software não é capaz de oferecer a menor dose de criatividade para inventar novas opções, isto é, opções que não se baseiem na estatística de dados passados.

Tampouco será capaz de fornecer soluções baseadas na empatia, para se colocar no lugar do outro, nem na solidariedade, para buscar a própria felicidade na felicidade dos outros.

Essas três qualidades são exclusivamente humanas por definição.

Cristina J. Orgaz, originalmente, do Hay Festival de Arequipa, Perú, para a BBC News Mundo, em 09.11.25 

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Correios, um cadáver caro

Lula prefere empurrar o problema dos Correios com a barriga a encará-lo, mas, a continuar nessa toada, empréstimos, aportes e mudanças na meta das estatais vão se tornar rotineiros

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva provavelmente terá de mudar a meta fiscal das estatais federais no ano que vem por causa dos Correios. O Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2026 permitia um déficit de até R$ 6,75 bilhões para o conjunto de empresas públicas da União, mas o número foi proposto em abril, antes do irrefreável processo de deterioração pelo qual os Correios passariam ao longo dos meses seguintes.

Esse ajuste, evidentemente, não visa a alterar a trágica trajetória dos Correios em direção à ruína. A questão é que, se a previsão de déficit das empresas públicas não for adequada, o Executivo será obrigado a cortar outras despesas para cumprir a meta fiscal do ano que vem, que prevê um superávit de 0,25% do Produto Interno Bruto (PIB), de cerca de R$ 34 bilhões. E tudo que Lula não quer é cortar gastos, ainda mais em um ano eleitoral.

Foi exatamente o que ocorreu neste ano. Em pleno mês de novembro, a projeção de déficit das estatais, que era de R$ 5,5 bilhões, teve de ser ampliada para R$ 9,2 bilhões por causa dos Correios. A situação obrigou o governo a cortar R$ 3 bilhões em gastos dos ministérios a poucas semanas do fim do ano, quando o Executivo imaginava que contingenciamentos não seriam mais necessários.

Esse é apenas mais um capítulo da longa e dolorosa decadência dos Correios. O governo Lula até tenta fingir surpresa, mas a verdade é que menosprezou o problema até que ele virasse um problemão. Enquanto os resultados financeiros dos Correios pioravam a olhos vistos, o Executivo recorria a discussões semânticas para diferenciar déficit de prejuízo e gastos de investimentos.

Em julho, o governo já estava ciente de que a empresa precisaria de ajuda. À época, o socorro, estimado em R$ 5 bilhões, derrubou o então presidente dos Correios, Fabiano Silva dos Santos. Três meses depois, seu sucessor, Emmanoel Schmidt Rondon, anunciou que a estatal precisaria de nada menos que R$ 20 bilhões para pagar as contas em dia e executar um tardio plano de reestruturação.

O aporte virou empréstimo e, em conjunto, alguns bancos aceitaram participar da operação de salvamento. Exigiram, no entanto, que a União assumisse a bronca em caso de calote e, como não rasgam dinheiro, pediram juros equivalentes a 136% do CDI, superior ao teto com que o Tesouro Nacional trabalha. O governo chiou, a oferta foi rejeitada e a possibilidade de um aporte da União na empresa, que custou o cargo do presidente anterior, voltou à mesa.

Entre idas e vindas, todo esse esforço seria defensável se ao menos servisse para solucionar de vez os problemas dos Correios, mas é difícil ser otimista diante da visão do governo sobre o papel “estratégico” das estatais na economia.

Afinal, enquanto o prejuízo escalava, os Correios realizaram um concurso para contratar mais de 3,5 mil empregados no fim do ano passado. Pior: em vez de enterrar de vez os planos depois dos rombos, mesmo porque conta com mais de 80 mil funcionários, a empresa ainda pensa em convocar os aprovados.

Para recompor as receitas que os Correios perderam nos últimos anos com o avanço de empresas privadas na área de logística e encomendas, a ideia da estatal é cobrar uma espécie de “indenização” do Tesouro Nacional pelos custos que tem com a universalização dos serviços postais, por ela estimados em alguns bilhões.

Esses dois singelos exemplos mostram que qualquer ajuste, se é que haverá, será insuficiente frente ao desafio da empresa. É importante destacar que as dificuldades dos Correios não são exclusividade nacional. No mundo todo, empresas tradicionais do setor de logística e entregas tentam se adaptar às mudanças tecnológicas e aos novos hábitos da população, seja via parcerias com a iniciativa privada, seja pela assunção de outros serviços e funções públicas.

No Brasil, no entanto, por questões ideológicas que beiram a teimosia, o governo prefere empurrar o problema com a barriga a encará-lo. A continuar nessa toada, novos empréstimos, aportes e mudanças na meta das estatais serão necessários muito em breve. A sociedade que se vire para pagar a conta.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S.Paulo, em 05.11.25

Congresso aprova sem alarde doação de dinheiro e benesses no meio da campanha eleitoral em 2026

Manobra contraria legislação eleitoral e dá poder para o governo Lula pagar emendas e realizar doações durante eleição

Presidente do Congresso Nacional, Davi Alcolumbre (União-AP), durante votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2026. Foto: Kayo Magalhães/Câmara dos Deputados

O Congresso Nacional aprovou nesta quinta-feira, 4, sem alarde, a possibilidade de doação de dinheiro e bens no meio da campanha eleitoral de 2026, contrariando a legislação eleitoral. A manobra foi aprovada no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) junto com um calendário de repasse de emendas antes das eleições.

Na prática, a medida dá poder ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para efetuar doação de bens, valores e benefícios como cestas básicas, tratores, ambulâncias e outras benesses no meio da campanha. A mesma prática foi adotada no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em 2022, como revelou o Estadão na época.

O dispositivo diz que as doações de bens e valores não configurarão descumprimento do chamado “defeso eleitoral” — que proíbe a transferência de recursos e doação de bens três meses antes da eleição. No entendimento de técnicos do Congresso, a medida alcança até mesmo o pagamento de projetos bancados com emendas parlamentares.

A única exigência é que haja uma contrapartida do município ou da entidade que vai receber o recurso, que muitas vezes é a disponibilização de um terreno ou uma contrapartida financeira mínima. Teoricamente, a lei eleitoral deve prevalecer em todas as eleições, mas a medida tenta driblar a legislação por meio da LDO, que define as regras para a execução do Orçamento da União em um ano específico.

“É proibido inaugurar obra em período eleitoral? Não. É proibido o candidato participar. Então você vai proibir algo que acontece na administração pública? Quer dizer que a Codevasf não pode entregar um caminhão-pipa para a população que está com o sede mas pode inaugurar a garagem que guarda o caminhão-pipa? Por quê? Não faz sentido (proibir).”, disse o deputado Gervásio Maia (PSB-PB), relator da LDO, ao Estadão, defendendo a medida.

O texto da LDO foi aprovado em acordo com o governo e acompanhamento de perto por caciques do Congresso. O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), ficou nos bastidores e negociou os principais pontos com a ministra da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República, Gleisi Hoffmann. O ex-presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL) foi ao plenário da Comissão Mista de Orçamento, na quarta-feira, 3, para acompanhar a votação no colegiado, antes do plenário — normalmente, Lira não participa dessas votações.

“É compra de voto disfarçada. Esse artigo é uma vergonha. Esse artigo depõe contra a administração pública”, afirmou a deputada Adriana Ventura (Novo-SP), criticando a medida. “Querem comprar voto na cara dura, e com dinheiro público.

Acordo entre governo e Congresso envolve pagamento de até R$ 19 bi em emendas antes das eleições

Além da doação de dinheiro e bens no meio da campanha, o Congresso e o governo combinaram um calendário de pagamento de emendas antes do período eleitoral.

O acordo envolve o pagamento de até R$ 19 bilhões em emendas parlamentares no primeiro semestre de 2026, antes das eleições, com calendário pré-definido, para abastecer redutos eleitorais dos congressistas.

A cifra corresponde a um pagamento de emendas com menor controle após o Supremo Tribunal Federal (STF) ter exigido maior transparência, rastreabilidade e respeito às regras fiscais e ter em andamento uma série de investigações envolvendo deputados, senadores e emendas.

O calendário foi aprovado no projeto da LDO de 2026 de forma inédita. Pela proposta, o governo será obrigado a pagar 65% das emendas Pix e das emendas individuais e de bancada que transfiram recursos para fundos de saúde e assistência social, um total estimado em R$ 12,7 bilhões.

A cúpula do Congresso Nacional negociou também com o governo — sem colocar na lei — o pagamento de metade das emendas de comissão para saúde e assistência no mesmo período, o que deve garantir até R$ 6,1 bilhões antes da campanha eleitoral — o número final dependerá da parcela de recursos aprovada no Orçamento.

Com o acordo, os parlamentares receberam uma garantia do Executivo para o pagamento de emendas prioritárias antes das eleições. O valor final pode ser até maior, pois o governo também pode pagar outras emendas que já estejam prontas e aprovadas para serem transferidas e ainda recursos que ficaram pendentes de anos anteriores. Nas eleições de 2024, o valor pago antes das eleições chegou a R$ 30 bilhões.

Em troca do calendário, o Congresso permitiu que o Poder Executivo persiga o piso da meta fiscal em 2026, e não o centro, liberando na prática mais gastos e evitando um congelamento de despesas que poderia chegar a R$ 34 bilhões. Até combinar o cronograma, o Legislativa mantinha no relatório da LDO a obrigação de um ajuste maior, pelo centro da meta, pressionando o governo a concordar com o pagamento de emendas antes das eleições.

“O Congresso Nacional não queria impor o pagamento das emendas parlamentares, o Congresso Nacional queria apenas dialogar com o Executivo para ter um pequeno valor, que esse valor pudesse dar previsibilidade, planejamento aos gestores”, disse o relator do PLDO, deputado Gervásio Maia (PSB-PB), no plenário.

Além do calendário, os parlamentares aprovaram na PLDO outras regras que agilizam o pagamento de emendas e diminuem o controle sobre os recursos, como a possibilidade de liberação de verbas sem a aprovação de projetos de engenharia e o uso de emendas de bancada e comissão para pagamento de pessoal na área de saúde — contrariando a Constituição e um entendimento do Tribunal de Contas da União (TCU).

Daniel Weterman,  jornalista, originalmente, de Brasília - DF para O Estado de S. Paulo (edição impressa), em 0512.25

Só no ambiente degradado de hoje é possível levar Michelle Bolsonaro a sério para a Presidência

Hipótese voltou à tona depois que ela peitou os enteados e a direção do PL e venceu

A ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro chega para visitar o ex-presidente Jair Bolsonaro na Superintendência da PF em Brasília Foto: Wilton Júnior/Estadão

Assim como só uma sensação tão forte de perplexidade, desesperança e falta de alternativa poderia alavancar e garantir a vitória de Jair Bolsonaro em 2018, só num ambiente institucional tão degradado como o de hoje seria possível levar a sério o nome da sra. Michelle Bolsonaro para a Presidência.

Michelle é uma mulher bonita, que produziu a melhor imagem da posse do seu marido, discursando em libras, mas que experiência e qualificação pessoal, política, administrativa e intelectual ela tem para presidir o Brasil? Articular uma candidatura assim é uma irresponsabilidade com o País.

A hipótese voltou à tona depois que ela peitou os enteados e a direção do PL e venceu. Vetou pública e voluntariosamente a aliança do partido com Ciro Gomes no Ceará, foi confrontada, virou pivô de uma reunião de emergência do PL e... a aliança com Ciro foi para o brejo. Dizem, aliás, que só Bolsonaro segura Michelle, mas a percepção é o oposto: por mais que fique incomodado com sua evidência, ele é que só ouve a mulher.

Além da posse de 2019, Michelle roubou a cena ao discursar com desenvoltura no lançamento de Bolsonaro à reeleição, em 2022. E ela atende à demanda por mulheres em espaços de poder, tem base eleitoral evangélica e está em campanha, enquanto Tarcísio de Freitas, do Centrão, fica em cima do muro.

“Quem não tem cão caça com gato”. Michelle tende a disputar o Senado pelo DF, mas se torna plano B com Bolsonaro inelegível, Eduardo botando os pés pelas mãos, Flávio tirando a fantasia. Quem leva o sobrenome às urnas? E, enquanto a extrema direita bate cabeça no entra e sai dos Bolsonaro, o direitão, vulgo Centrão, não adere nem aos filhos nem à mulher do ex-presidente e busca não alternativas, no plural, mas “a” alternativa, no singular: Tarcísio.

Na prática, geraria uma inversão: em vez de coadjuvante do bolsonarismo, o Centrão assumiria o protagonismo, o que Bolsonaro não admite e inviabiliza uma chapa mista, por exemplo, com Tarcísio e Michelle. Essa chapa, ainda por cima, seria automaticamente carimbada de “chapa puro sangue bolsonarista”. Adeus, eleitorado de centro-direita.

E um confronto entre bolsonarismo e Centrão em 2026? Há duas avaliações. A de que o racha efetivo na direita (diferente do acordão entre governadores) seria o melhor cenário para Lula e a de que a rejeição ao bolsonarismo empurrará o eleitorado da direita moderada para o candidato do Centrão.

Em qualquer hipótese, Michelle − como Jair, em 2018 – é fora de padrão, sem precedentes, foge às análises tradicionais e pode tornar a eleição de 2026 em altamente imprevisível.

Eliane Cantanhêde, a autora deste artigo, é comentarista da Rádio Eldorado e Rádio Jornal (PE). Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.12.25

Apoiar a mídia local é proteger a democracia.

A falta de informação local enfraquece a democracia, especialmente porque os espaços para a responsabilização desaparecem, e a corrupção aproveita-se disso.

Mardonio Mejía, diretor da rádio Sonora Estéreo, em imagem de arquivo.

Há alguns dias, escrevi um artigo sobre a lenta investigação do assassinato, em 2022, de um jornalista em uma pequena cidade colombiana. A vítima, Mardonio Mejía, dirigia uma rádio comunitária e apresentava um programa diário com as principais notícias de San Pedro, sua cidade natal, e arredores. Muitos dos 5.000 moradores da região ouviam o programa regularmente. Ao trabalhar com fontes para o artigo, o depoimento de um entrevistado em particular me chamou a atenção: apenas uma semana após o assassinato, quando fez uma visita a San Pedro, ficou impressionado com o silêncio que envolvia a cidade, conhecida por sua tradição musical. Ao pedir explicações, foi informado de que, com a morte de Mardonio, a única rádio local havia saído do ar.

Uma dose de realidade: O que acontece em uma comunidade quando o único meio de comunicação que a conectava com a informação e a esfera pública é interrompido?

A história de San Pedro não é única; repete-se em muitas partes do mundo, pois o assassinato não é exceção entre os ataques contra jornalistas e meios de comunicação. Mas o significado muda drasticamente quando ocorre numa cidade pequena, porque ali os meios de comunicação e os jornalistas estão muito mais próximos da população e tornam-se um elemento fundamental para aproximar os cidadãos dos assuntos públicos. É por isso que a ruptura dessa relação afeta seriamente a democracia.

O jornalismo local permite que os moradores de áreas rurais se mantenham informados sobre questões que afetam suas comunidades. Em algumas cidades, por exemplo, as mensagens transmitidas por rádios comunitárias se tornam a única maneira de se informar sobre as condições das estradas, obras públicas ou iniciativas de saúde. São o meio pelo qual os moradores de cidades ribeirinhas podem ficar sabendo sobre alertas de enchentes ou deslizamentos de terra causados ​​por fenômenos naturais, bem como sobre o que está acontecendo em outras partes do país.

Infelizmente, por diversos motivos, o jornalismo local atravessa atualmente uma crise estrutural. Um estudo realizado pela Fundação Gabo sobre os ecossistemas de notícias locais em cinco países da América Latina (Argentina, Chile, Colômbia, México e Peru) revelou que mais de 65% dos territórios carecem de notícias locais, o que significa que a maioria das comunidades vive em contextos onde o jornalismo é restrito , não conquistou uma presença estável ou enfrenta condições precárias para o seu exercício.

Muito se fala sobre a difícil situação econômica da mídia, mas muito pouco sobre o que significa sobreviver fazendo jornalismo local. A publicidade está cada vez mais escassa e, em muitas ocasiões, é usada como ferramenta de controle. Essa pressão econômica, por sua vez, leva à autocensura e também causa o desaparecimento de veículos de comunicação. “A ausência de notícias é uma má notícia.” Essa é a conclusão da revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), com base em estudos que demonstram que a ausência de notícias locais alimenta a polarização, diminui a participação eleitoral e reduz a responsabilidade governamental.

Em algumas comunidades, a mídia local é utilizada para mobilizar os moradores a decidirem sobre planos de desenvolvimento ou a participarem de audiências públicas onde são debatidas questões complexas e fundamentais que afetam suas vidas, como consultas prévias ou licenças para novos negócios. Essa participação na construção do seu futuro é uma oportunidade frequentemente facilitada por emissoras de rádio, onde os moradores podem ouvir diferentes perspectivas ou até mesmo conversar com autoridades públicas, aprender sobre suas ações e exigir transparência. De fato, o papel da comunicação local também pode ser visto como uma forma de combater a corrupção.

Quando se trata de assuntos eleitorais, a questão se torna mais séria. Esses meios de comunicação ajudam as comunidades a entender o que está em jogo nas eleições locais e podem até capacitá-las para participar da votação. No entanto, eles também são um espaço que acaba sendo dominado por atividades ilegais. Na Colômbia, com o ressurgimento da violência, grupos armados ilegais buscam exercer um controle muito maior em nível local, e o gerenciamento da informação é fundamental nesse sentido . Para alcançar esse objetivo, eles usam intimidação e ameaças.

Então, sem a mídia local, de onde os eleitores em áreas rurais obtêm suas notícias? É aí que os acadêmicos concordam cada vez mais que as mídias sociais preenchem esses desertos de informação, polarizando o clima político das comunidades.

A falta de informação local enfraquece a democracia, especialmente porque os espaços para a responsabilização desaparecem, e a corrupção prospera nesse ambiente. Portanto, estamos falando de um vazio que as redes sociais não conseguem preencher. A opção de obter informações pelas redes sociais e abandonar os meios de comunicação locais introduz uma avalanche de informações, onde é muito difícil distinguir o que é real do que é falso ou insidioso . Além disso, coloca as agendas da comunidade em conflito com as decisões das grandes plataformas, agravado pela violência e pela vulnerabilidade econômica que os políticos exploram para manipular a informação.

É indesejável, em qualquer circunstância, que a "hipótese da democracia degradada" de Bernardo Díaz Nosty se torne realidade em nível local. Segundo essa hipótese, a imprensa priorizaria o comercialismo para sobreviver e gerar lucros, degradando assim a democracia. Talvez o principal antídoto para isso , bem como para a desinformação e a polarização, resida precisamente na mídia local.

A questão que permanece é: como podemos criar as condições ideais para a prática do jornalismo local sem restrições e de forma estável? Acredito que a solução reside em um esforço coletivo para protegê-lo e fortalecê-lo. Portanto, outra pergunta é: quem está disposto a fazer esse esforço?

Dora Montero Carvajal, originalmente, para o ELPAIS,em 25.11.25.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Indicação ao STF descamba para a baixa política

Cancelamento da sabatina de Messias resulta de disputa mesquinha entre chefe do Senado e governo Lula. Haveria boas razões para o Senado rejeitar indicados ao Supremo agora e sob Bolsonaro, mas não foram nem são elas as levadas em conta

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Davi Alcolumbre (União Brasil -AP), presidente do Senado - Adriano Machado - 14.ago.25/Reuters

Quando se trata uma indicação para o Supremo Tribunal Federal como o preenchimento de mais um cargo de confiança do governante, uma consequência esperável é que também sua tramitação reproduza práticas rasteiras do varejo político. É o que ocorre agora.

Assim como Luiz Inácio Lula da Silva (PT) explicita a preferência por aliados e auxiliares diretos —sendo Jorge Messias o nome da vez— nas escolhas para a mais alta corte do país, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil), tampouco se constrange em reivindicar o posto para um colega e seu antecessor, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

A disputa chegou a níveis vexatórios. Na terça-feira (2), Alcolumbre cancelou a sabatina de Messias que marcara para o próximo dia 10 na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, em decisão resultante de uma sucessão de fofocas e picuinhas digna de eleição de condomínio.

Diz-se em Brasília que a data fora escolhida de modo a não dar tempo suficiente para que o indicado vencesse resistências entre os parlamentares; em aparente reação, o Palácio do Planalto não enviou à Casa legislativa a papelada da indicação. Alcolumbre pretendia levar adiante o processo mesmo assim, mas capitulou.

O atual chefe do Senado é reincidente na pretensão de instalar alguém de seu agrado no Supremo. Quando ocupava o mesmo posto no governo Jair Bolsonaro (PL), retardou por mais de quatro meses a sabatina de André Mendonça, ao fim aprovado, por preferir Augusto Aras, de triste passagem pelo comando da Procuradoria-Geral da República (PGR).

Ora, é papel da Casa, definido pela Constituição, escrutinar os indicados pelo presidente da República ao STF e deliberar se preenchem os requisitos de reputação ilibada e notável saber jurídico. Haveria boas razões para rejeitar tanto Mendonça como Messias —escolhidos por fidelidade ao chefe, não pelo currículo jurídico. Mas não foram nem são elas as levadas em conta.

O que se vê é tão somente um embate de poderes —com letra minúscula. Busca-se uma cadeira no Supremo como se faz com cargos em ministérios e estatais, à base de barganhas e represálias, e naturalmente esperando a colaboração futura do agraciado.

A essa peleja mesquinha não se furtam nem mesmo ministros da corte que, conforme se noticia amiúde, defendem este ou aquele candidato em jantares brasilienses, inclusive com o próprio Lula. É mais uma conduta imprópria da parte de magistrados que deveriam dar exemplo de equilíbrio, discrição e autocontenção.

Com protagonismo crescente nos últimos anos, o STF cometeu e comete não poucos erros e excessos, mas mostrou independência e altivez em julgamentos como os do mensalão e da condenação de Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado. Enfraquecê-lo em nome de interesses políticos de ocasião é um retrocesso duradouro na institucionalidade democrática do país.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 04.12.25 (editoriais@grupofolha.com.br)

Putin, uma ameaça real

A tentativa do presidente russo de intimidar a Europa representa uma escalada na hostilidade já vivenciada por alguns países da UE.

Putin, durante seu encontro na terça-feira em Moscou com a delegação dos EUA, em uma fotografia divulgada pelo Kremlin. (KRISTINA KORMILITSINA  - PISCINA)

Se há algo que já deveria estar claro, tanto nas instituições europeias quanto nas sedes de cada governo do continente, é que é imprudente ignorar as palavras de Vladimir Putin. A ameaça feita na terça-feira pelo presidente russo de que seu país está preparado para entrar em guerra com a Europa "agora mesmo" deve ser levada muito a sério. Não com alarmismo ou sensacionalismo, mas pelo que ela é: a concretização de um desafio à segurança europeia que deixou de ser teórico ou vago.

Não é surpresa que a rodada de negociações realizada esta semana em Moscou entre Putin e o enviado especial da Casa Branca, Steve Witkoff, tenha terminado sem resultados após cinco horas infrutíferas de reuniões e com uma humilhação prévia para o representante de Donald Trump, cuja atitude subserviente em relação ao líder russo não o ajudou a evitar uma espera de quase três horas.

Em questões importantes, Putin demonstrou repetidamente ser um jogador do tipo "tudo ou nada" e que, ao contrário do presidente dos EUA, raramente blefa. Os 28 pontos apresentados por Washington — negociados às escondidas da Ucrânia e do resto da Europa — já não lhe bastam. Na prática, esses pontos equivalem à rendição de Kiev, com a consequente mutilação territorial e sem qualquer garantia real de que a agressão russa não se repetirá no futuro. O ocupante do Kremlin quer mais e deixou isso claro: quer consolidar a anexação ilegal da Crimeia em 2014, quer mais território ucraniano e quer condições que lhe permitam assegurar a sua esfera de influência nas fronteiras da Europa democrática.

Assim como as palavras de Putin, os repetidos alertas — tanto de instituições europeias quanto de governos do continente — sobre a gravidade da escalada não devem ser ignorados. Quando Kaja Kallas, Alta Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, adverte que a guerra híbrida que a Rússia trava contra a Europa pode também atingir a Espanha e Portugal, ela está soando dois alarmes que devem ser levados a sério.

O primeiro ponto é lembrar que Moscou há muito tempo realiza — e promove — atos hostis dentro da União, como repetidamente denunciado pelos países mais próximos, como Polônia, Estônia, Letônia e Lituânia. O segundo é que essa hostilidade também ameaça os demais 27 Estados-membros. Essa é a posição compartilhada por autoridades de defesa como o chefe da Força Aérea e Espacial da Espanha, Francisco Braco, e o Secretário-Geral da Aliança Atlântica, Mark Rutte, quando afirmam: “Não estamos em guerra, mas também não estamos em paz”.

Editorial do EL PAÍS, 04.12.25

Exclusividade da PGR gera críticas, mas há consenso sobre mudança na Lei de Impeachment

Constitucionalistas criticaram exclusividade da PGR, mas concordam que Lei de Impeachment precisa mudar


Constitucionalistas entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico avaliam que a Lei de Impeachment (Lei 1.079/1950) precisa de revisão para dar segurança institucional ao Supremo Tribunal Federal. (Crédito da foto: Luiz Silveira / STF)

Os juristas divergem, contudo, sobre o trecho da decisão do ministro Gilmar Mendes que dá competência exclusiva à Procuradoria-Geral da República para denunciar integrantes do STF por crimes de responsabilidade.

A medida cautelar, publicada nesta quarta-feira (3/12), ainda será analisada pelo Plenário do Supremo, em julgamento virtual de 12 a 19 deste mês.

A decisão de Gilmar, que é contestada pelo Senado e pela Advocacia-Geral da União, modifica a interpretação de vários trechos da Lei de Impeachment. O ministro defende a suspensão da expressão “a todo cidadão” do artigo 41 da Lei 1.079/1950, que permite a qualquer pessoa pedir o afastamento de membros da corte.

Parte dos especialistas consultados pela ConJur se opõe a essa restrição. Eles argumentam que a exclusividade da PGR enfraquece a legitimidade democrática do Supremo em relação ao povo, que é a fonte de onde emana o poder, segundo a Constituição.

“A possibilidade de qualquer cidadão apresentar um pedido de impeachment é requisito de accountability [responsabilização] da instituição com o povo. Não é razoável que isso seja retirado do cidadão”, avalia Ingrid Dantas, doutora em Direito pela Universidade de Brasília e professora de Direito Constitucional.

“Eu não vejo, em princípio, nenhum motivo constitucional para reduzir essa competência ao PGR. O impeachment é um procedimento democrático em que há uma ampla possibilidade de se solicitar. Mas é certo que a Lei de Impeachment precisa ser examinada para se adequar à Constituição”, sintetiza o constitucionalista Pedro Serrano, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

“Ao prever que qualquer cidadão pode denunciar, esse artigo da Lei de Impeachment vai ao encontro do Estado Democrático de Direito. Então me parece que é plenamente constitucional”, avalia a advogada Vera Chemim, especialista em Direito Constitucional e mestre em Administração Pública pela FGV de São Paulo.

Para outros estudiosos, porém, a possibilidade de que ministros do STF sejam alvos de pedidos de impedimento sem lastro técnico abre margem para perseguições políticas.

“A Lei do Impeachment deve ter seu sentido continuamente atualizado, de modo a ser lida à luz da realidade brasileira contemporânea, marcada pela emergência de impulsos de populismo autoritário que transformaram o Supremo Tribunal Federal em bode expiatório dos problemas nacionais, convertendo-o em um inimigo público ficcional”, aponta o constitucionalista Georges Abboud, também professor da PUC-SP.

Trâmite no Senado

Apesar da controvérsia sobre a competência da PGR, outros pontos da decisão de Gilmar têm apoio amplo entre os constitucionalistas. O principal deles é o que passa a exigir maioria qualificada de dois terços do Senado para que a denúncia contra um ministro do STF seja recebida e, posteriormente, julgada procedente pelo plenário da Casa.

Hoje, as duas etapas exigem apenas maioria simples — mais da metade dos presentes à sessão — como preveem os artigos 47 e 54 da lei.

Os especialistas apontam, também, que Gilmar acerta em afastar interpretações que permitem punir os magistrados pelo mérito de suas decisões. Segundo o artigo 39 da lei, um ministro do STF pode sofrer impeachment por “ser patentemente desidioso no cumprimento dos deveres do cargo”, ou por “proceder de modo incompatível com a honra, dignidade e decoro de suas funções”.

“Esses dispositivos são subjetivos e estão sujeitos a ampla discricionariedade. Ao permitir um impeachment de ministro do STF sob essas premissas, a lei abre margem para que esse instrumento seja politizado para atacar o conteúdo material de uma decisão do Supremo”, avalia Ingrid Dantas.

Contexto político

A discussão sobre a atualização da Lei do Impeachment não é inédita. O STF já havia revisado pontos da norma na ADPF 378, julgada em dezembro de 2015, que tratou do rito aplicável ao Presidente da República. O STF definiu, na ocasião, que o Senado teria competência para instaurar ou não o processo de impedimento, depois da autorização da Câmara, e que a admissibilidade exigia apenas maioria simples — dispositivo que agora foi derrubado por Gilmar.

Ao tomar a decisão atual, no âmbito das ADPFs 1.259 e 1.260, Gilmar avaliou que o aval de apresentação de denúncia “a todo cidadão” viabiliza a criação de um ambiente propício à “proliferação de denúncias motivadas por interesses político-partidários, desprovidas do rigor técnico necessário para uma acusação legítima”.

“Esse cenário expõe os membros dos Tribunais Superiores a constantes riscos de serem alvos de processos de impeachment baseados em discordâncias políticas ou em divergências interpretativas legítimas, convertendo o legítimo instrumento do impeachment em um meio de propagação do arbítrio pela intimidação e retaliação política”, justificou o ministro na decisão.

O panorama exposto por Gilmar tem lastro nos movimentos atuais do Congresso. Aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) assumem abertamente o objetivo de ampliar a base da oposição no Senado, nas eleições de 2026, para formar quórum suficiente e pautar o impeachment de ministros do STF, em especial de Alexandre de Moraes.

Para Gilmar, a mera ameaça de impeachment pode funcionar como um “mecanismo eficaz para constranger membros do Poder Judiciário”. Portanto, a restrição da competência ao PGR é um “filtro rigoroso” para garantir a seriedade e o rigor técnico do processo.

O atual PGR, Paulo Gonet, defendeu a competência exclusiva do órgão ao se manifestar nos autos das ADPFs. Ele apontou que a Lei de Impeachment prevê um “rito procedimental incompatível com a Constituição Federal de 1988” e que os ministros do STF desempenham uma função contramajoritária com base nos “valores e princípios permanentes da Constituição” e não no “sentimento político dos eleitores”.

Rafael Neves, jornalista, é editor e repórter especial da revista Consultor Jurídico. Publicado originalmente em 04.12.25


Regra de indicação para STF deixa aberto 'caminho da politização do Supremo', diz professor da USP

"Risco do atual sistema é de 'ter uma mudança brusca ou um presidente que indique a maioria da corte'

'Muitas vezes a legitimidade da Corte é questionada também porque nós estamos ainda vivendo esse modelo antiquado de formação', diz Tavares (Crédito: Divulgação)

O (ex) presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência e professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP), André Ramos Tavares, diz que o modelo de indicação de ministros ao Supremo Tribunal Federal (STF) no Brasil deixa aberto o "caminho da politização verdadeira do Supremo" e "transformação do tribunal em um espaço político".

A falta de atualização nessas regras é um dos motivos, na avaliação do constitucionalista, que leva a questionamentos sobre a legitimidade do Supremo.

"Muitas vezes a legitimidade da Corte é questionada também porque nós estamos ainda vivendo esse modelo antiquado de formação", disse Tavares.

A melhoria desse sistema, na avaliação de Tavares, deve passar pela criação de mandatos para ministros do Supremo e deve prever regras que ampliem as fontes de indicação de nomes, sem tanta concentração da decisão no presidente da República. Ele também sugere exigências mais específicas em relação à experiência profissional/acadêmica dos indicados.

Hoje a Constituição prevê que um indicado para ministro do Supremo deve ter "notável saber jurídico e reputação ilibada", além de mais de 35 anos e menos de 65. O nome é indicado pelo presidente da República e passa pelo aval do Senado. E não há mandatos - os ministros devem deixar o cargo quando completam 75 anos.

Tavares classifica o modelo atual como "muito perverso" e diz que ele acentua a "arbitrariedade do presidente em indicar o nome que quiser". Afirma, ainda, que o Senado "exerce papel nenhum" - apenas uma função protocolar de aceitar o nome indicado, ele diz

O fato de não haver mandatos faz com que alguns presidentes indiquem muito mais ministros que outros. Após a redemocratização, por exemplo, os dois ex-presidentes que foram reeleitos e exerceram os dois mandatos completos indicaram números bem diferentes de ministros: Fernando Henrique Cardoso indicou três magistrados e Lula, oito.

A próxima vaga para ministro do Supremo ficará disponível em breve. O decano da Corte, ministro Marco Aurélio Mello, informou que vai se aposentar em 5 de julho - uma semana antes de completar os 75 anos, idade limite para permanecer no posto.

Bolsonaro, que indicou em 2020 o ministro Kassio Nunes Marques e está prestes a designar mais um nome, voltou a dizer a apoiadores neste ano que escolherá um ministro "terrivelmente evangélico".

A seguir, leia os principais pontos da entrevista de Ramos Tavares por videoconferência à BBC News Brasil:

BBC News Brasil - Como o sr. avalia o atual modelo de indicação de ministros do Supremo no Brasil, inspirado nos Estados Unidos?

André Ramos Tavares - É um modelo muito arcaico, não só porque foi pensado e construído no final do século 18, nos Estados Unidos. Não é possível imaginar que a sociedade continue a mesma, né?

Não acredito que esse modelo atenda plenamente nossa cultura atual, nossa diversidade. Ele não foi modernizado e isso é ruim, porque gera dificuldades até em termos de legitimidade. Muitas vezes a legitimidade da Corte é questionada também, porque nós estamos ainda vivendo esse modelo antiquado de formação da Corte.

Um ponto essencial é saber que essas cortes passaram a fazer controle das leis e, quando isto se tornou algo importante, principalmente a Europa criou um modelo diferente, de tribunal constitucional. Então, esse controle que o Supremo faz no Brasil - abstrato, que vale pra todo mundo, que alguns dizem que são decisões políticas ou algumas interferem em políticas públicas - passou a ser feito por tribunal constitucional, em que a composição é múltipla, (a indicação de seus integrantes) não está nas mãos de um presidente.

BBC News Brasil - Como isso poderia inspirar o Brasil?

Tavares - A primeira grande diferença seria termos mandato e permitir a renovação da corte. Esse modelo vitalício - nos EUA até a morte, e aqui, até a aposentadoria - petrifica a corte e exacerba os poderes individuais. Os ministros da Praça dos Três Poderes são o único poder que permanece por longos períodos. Então, eles assistem a essa troca de cadeiras (nos outros poderes) várias vezes. Os ministros do Supremo, por força desse prazo estendido que eles têm de permanência, são vistos de uma maneira diferente pelos políticos. Muitos políticos têm um certo receio, um medo reverencial, porque é poder exercido por um longuíssimo período pela pessoa. Então isto tem um impacto político, pesa na Praça dos Três Poderes. Seria importante a gente ter um mandato que permitisse um rodízio maior desses desses juízes com tanto poder.

Isso funcionaria desde que também tivéssemos um modelo diferente de nomeação. Não adianta muito continuar sendo pela pela escolha arbitrária do presidente - e esse é o modelo, não estou fazendo crítica a ninguém. Tem dois requisitos que são genéricos - reputação ilibada e notável saber jurídico -, que talvez fizessem sentido no século 18.

Hoje você vai ser CEO de uma multinacional, aí precisa saber qual é sua experiência, quais foram as suas realizações. Para ser ministro do Supremo, basta algo que é considerado genérico. Essas coisas acabam impactando também na legitimidade da corte. Então, muitas vezes, as críticas da que se dirigem à corte, elas têm um fundo, que não está muito claro, que é esse de termos um problema de um modelo muito perverso de indicação porque acentua a arbitrariedade do presidente em indicar o nome que ele quiser. E o Senado não exerce papel nenhum, apenas papel protocolar de aceitar.

Historicamente, o Senado tem ratificado todas as escolhas de nomes, diferente do Senado dos Estados Unidos, em que nomes são rejeitados.

BBC News Brasil - O senhor mencionou a legitimidade da Corte. Avalia que, hoje, a legitimidade do nosso Supremo já está comprometida?

Tavares - Essa é uma análise que pesa mais no sociológico. Tenho a impressão que hoje o Supremo entrou na arena política porque o cenário fez com que o Supremo avançasse para também estar presente nas questões de governo - e isso não é de hoje, tem sido progressivo nos últimos anos. E, ao entrar na arena política, é inevitável que a instituição sofra um desgaste maior, próprio da disputa política.

O Supremo não tem os instrumentos para lidar com esse tipo de ataque, de crítica permanente, constante. Com isso, ele vai perdendo legitimidade - não porque esteja errado, não porque as decisões sejam ruins, mas porque ele está dentro de uma arena que no fundo não é dele.

BBC News Brasil - Diante desses pontos, qual seria, então, o melhor modelo para garantir maior equilíbrio no Supremo?

Tavares - A melhor palavra talvez seja diversidade, pluralismo… É o que a gente tem que buscar na composição da corte. Mas não representatividade. Não posso ter alguém lá na corte que seja representante do segmento X - dos Estados do Nordeste ou do Sul. Isso não faria sentido, os ministro têm que ser representantes da Constituição e em caráter sempre nacional.

Por que esse mecanismo que está aí não é bom? Porque ele não nos dá nenhum tipo de salvaguarda. Que salvaguarda a gente gostaria? Manter uma diversidade interna do tribunal - isso a gente só vai conseguir alternando as fontes de indicação. Não pode ser sempre a mesma pessoa ou não pode ser sempre a partir dos mesmos grupos (a indicação).

No fundo, a indicação do Presidente, a gente nunca sabe o que pode estar atendendo - pode ser que esteja atendendo uma demanda política de um grupo de parlamentares, uma pressão de um grande poder econômico, questões pessoais de um presidente - e nada disso é bom se é feito sem transparência. E como a gente alcança a transparência? Com regras que diversifiquem essas escolhas. Precisam partir de um modelo mais transparente.

O modelo atual é um modelo no qual a sociedade não sabe o motivo pelo qual determinado nome é escolhido. Não sabe como apareceu na mesa do presidente, quem levou, como levou, quando levou, se houve algum outro tipo de troca, de favor, de interesses.

Estamos vivendo uma sociedade que tem evoluído para transparência e não temos nada disso na escolha dos ministros da mais importante corte do país, que decidem a vida, quase que diariamente, da sociedade brasileira como um todo.

BBC News Brasil - Quais seriam as regras ideais, na sua avaliação? Alguma que esteja prevista em propostas de emenda à Constituição? Lista tríplice, participação de outras instituições?

Tavares - Não tem uma que eu acho que seja a correta. Várias podem ser usadas. O importante é que não seja só uma pessoa a escolher o nome. A gente pode pensar na participação dos outros poderes, até em sistema de rodízio - a primeira vaga, o Congresso Nacional vai realizar a indicação do nome. Na seguinte, o Judiciário indica um nome. Na terceira, aí o presidente indica, a partir de uma lista, por exemplo, fornecida por universidades, OAB, ou outras entidades da sociedade organizada. São composições que vão retirar esse poder da mão de um único presidente e vão dar diversidade para a corte.

E isso tudo tem que funcionar como um mandato. Hoje, pode ser que muitos ministros terminem no mandato de um mesmo presidente. Já aconteceu com o ex-presidente Lula, vai acontecer com o presidente Bolsonaro.

Mas o maior problema é você mudar repentinamente a maioria da corte. De repente você muda quatro, cinco, seis ministros em questão de quatro, cinco anos. Isso tudo gera uma mudança brusca da própria jurisprudência, do que é o direito. Essas coisas têm que ocorrer progressivamente. Os mandatos servem para poder ter essa previsibilidade.

Tavares - Dez anos seria razoável. Não pode ser muito curto, porque perderia toda a experiência que vai construindo, mas não pode ser também muito longo, porque vai engessando a corte. É uma coisa que gira entre oito, doze anos - é o que tem nos tribunais constitucionais pela Europa.

BBC News Brasil - O presidente Jair Bolsonaro já falou em ampliar o número de ministros do Supremo de 11 para 21. É uma boa ideia? Qual pode ser o impacto?

Tavares - Sei que parece uma pergunta simples, mas é super complicada, porque no fundo é quase um falso dilema. Nosso problema é saber o que o Supremo tem que julgar. Se a gente continuar com esse Supremo tendo esse volume gigantesco de processos para julgar, 21 seria pouco.

Então, mais importante do que mexer no número de ministros - porque isso talvez só atenda a uma demanda de nomes que querem ir para o Supremo ou de políticos que queiram indicar nomes - é mudar a quantidade de processos que chegam ao Supremo.

Se você olhar ao redor do mundo, as cortes não têm números elevados.

BBC News Brasil - Tivemos no Brasil a mudança na idade de aposentadoria compulsória num passado recente, mas não muito mais que isso, embora tenha propostas sobre modelo de indicação ao Supremo aparentemente paradas. Há interesse em mudar?

Tavares - A gente não muda porque é nossa cultura. No Brasil, a gente resolve os problemas quando eles aparecem. É difícil reconstruir normas para evitar os problemas. Veja o caso do impeachment: foi toda aquela briga, por causa de normas antigas, se aplicava, não aplicava. Aí hoje continuamos com o mesmo sistema. Passou, a gente deixa para lá, esquece. Toda vez que tem uma vaga no Supremo vem essa discussão. Aí passa, o ministro é escolhido, e ninguém mais discute.

É uma tarefa do Congresso, que também tem lá o seu tempo político. Aliás, é uma coisa, também, que acontece rotineiramente: o Congresso critica o Supremo, mas no fim do dia aprova leis que ampliam o poder do próprio Supremo - fez isso na criação da súmula vinculante (instrumentos que uniformizam decisões jurídicas diferentes), por exemplo.

BBC News Brasil - Quais são os riscos que o sr. considera que o Brasil corre ao manter o atual modelo?

Tavares - O risco, que pode nunca acontecer, é de ter uma mudança brusca ou um presidente que indique a maioria da corte e faça essas indicações de maneira política ou segundo convicções pessoais, não institucionais e não republicanas. É o risco de você acabar gerando não um tribunal Supremo, mas uma terceira câmara política, alinhada com o presidente.

Eu vejo tanta crítica, e muitas vezes fundadas, ao que aconteceu em outros países na América do Sul, em que as indicações foram politizadas - o Supremo, as cortes não tinham independência verdadeira, eram todos afinados com o presidente, que estava no no poder ou que ainda está. E nós deixamos aberto esse caminho, que é o caminho da politização verdadeira do Supremo e a transformação do tribunal em um espaço político. E aí como vamos fazer? Tem que respeitar, continuarão sendo decisões, proferidas formalmente por um tribunal.

Esse risco é um risco muito grave. Fica aí uma tentação sempre, vamos dizer assim. Para que o sistema oferecer esse tipo de estímulo a algum presidente? Temos que evitar isso.

BBC News Brasil - Por outro lado, o FHC indicou três ministros e o Lula, oito, no mesmo tempo de mandato. Apesar desse número alto de indicações do ex-presidente do PT, não se diz que ele controlou de alguma forma o Supremo, até pelo que aconteceu depois.

Tavares - Essas escolhas foram feitas de maneira independente - não sou filiado a nenhum partido, nunca fui, mas acho que, no caso do ex-presidente Lula está muito claro que elas não foram escolhas nem sequer alinhadas ao Partido dos Trabalhadores.

A história provou que, de fato, esses ministros não se alinharam, porque ele se tornou réu, e houve toda essa disputa em torno de interesses que a gente conhece. Então, o tribunal se mostrou independente, porque as pessoas indicadas tinham esse perfil. E eu acho que isso é o mais importante. Deixaremos isso ao acaso, como acontece, e eventualmente vai dar certo, como deu? Ou tentaremos criar salvaguardas para evitar que um mal maior aconteça?

BBC News Brasil - Considerando suas críticas ao modelo atual, quais seriam exigências mais apropriadas para o perfil de ministro ou ministra do STF?

Tavares - Em termos de incluir condições, aquelas que a modernidade trouxe: o que o Congresso entende que é alguém com um notável saber - alguém que publicou obras, ou que teve uma grande ação, na qual atuou e fez toda a diferença pra sociedade brasileira? Eu indicaria aí especificações que podem ser alternativas - alguém que tenha doutorado e/ou 20, 30 anos de experiência na advocacia do Supremo, ou que tenha patrocinado uma grande causa de impacto para maior parte da sociedade brasileira.

É possível imaginar critérios objetivos que detalham, no momento histórico atual, o que é alguém com notável saber jurídico. Certamente, não é alguém que tenha apenas um diploma e que tenha exercido a advocacia, no meu modo de ver.

Pode ser alguém que tenha tido experiência como advogado-geral da União, por dois, três anos, ministro da Justiça…. Mas aí entra que condição eu gostaria que fosse impositiva, que é de que ministros ou advogado-geral da União - inclusive tem uma PEC sobre isso - sofresse uma quarentena. Em termos de preservação, vamos dizer assim, de questões de evitar esse favoritismo de momento.

Risco do atual sistema é de 'ter uma mudança brusca ou um presidente que indique a maioria da corte'

BBC News Brasil - O presidente Jair Bolsonaro voltou a falar em um nome "terrivelmente evangélico" para o STF. O que acha desse critério?

Tavares - Não tenho nada contra essas questões de escolha em que o presidente diz "vou escolher alguém terrivelmente evangélico". O grande problema é, talvez, a imagem que passa, de que alguém ascenderá ao Supremo apenas porque é terrivelmente evangélico, porque seria um notável erro escolher alguém só por esse critério. Mas eu acredito que quando o presidente diz isso, não está endereçando uma questão técnica, está conversando com alguma base política dele. No meu modo de ver, a gente só vai saber disso no momento da escolha. Tanto que a escolha que ele fez (em 2020) não foi essa, apesar de ter anunciado. Escolheu um juiz de carreira (Kassio Nunes).

BBC News Brasil - Quando você fala em diversidade, também se refere a aumentar participação de mulheres e de ministros negros, por exemplo?

Tavares - Acho que não deveria ter cota para o supremo. O mecanismo poderia ser por meio dessa diversidade de fontes de escolha. Se você tiver um modelo em que a sociedade participe, muito provavelmente conseguiríamos ter diversidade de gênero ou outras. Então, isso tudo teria que vir dessa diversidade de entidades que vão colaborar na escolha.

O importante é a diversidade das pessoas por terem formação diversa, por terem circunstâncias pessoais diversas, para não serem todos do mesmo grupo. Pode acontecer: é uma determinada elite, em que dentro daquele grupo sempre se escolhe os ministros. Ou são sempre pessoas formadas mais numa faculdade, ou num determinado estado do país. Então, precisa ter diversidade, experiências de vida distintas.

Laís Alegretti, originalmente, de Londres (UK) para a  BBC News Brasil , em 13.06.21