quarta-feira, 20 de agosto de 2025

A atual decadência do Legislativo e a erosão da democracia representativa

Sem um Parlamento capaz de legislar com coerência, técnica e compromisso social, a democracia representativa se esvazia


Nascimento da Democracia na Grécia Antiga

A democracia representativa, tal como concebida por Norberto Bobbio e John Stuart Mill, funda-se na premissa de que o povo, por meio de eleições periódicas e livres, delega a representantes a tarefa de formular leis que expressem seus interesses, preservem direitos e respondam às demandas concretas da sociedade. Essa forma de governo pressupõe que o Parlamento seja um espaço de deliberação qualificada, onde se produz legislação capaz de enfrentar problemas reais e promover o bem comum.

Os regimes políticos que hoje se caracterizam como democráticos originaram-se, direta ou indiretamente, a partir das revoluções do final do século 18, notadamente na França e nos Estados Unidos, sendo que a partir do século 19, a ideia do povo como única fonte de legitimação do poder político começa a se impor progressivamente (BÔAS FILHO, 2013, p. 652).

A democracia, como forma de governo, é antiga e, não obstante o transcorrer dos séculos e todas as discussões que se travaram, o significado descritivo do termo não se alterou. A mudança ocorrida não foi sobre o titular do poder político, que sempre reside no povo, mas na forma como ele é exercido: da democracia direta dos antigos à democracia representativa dos modernos (BOBBIO, 2023, p. 56).

Diversamente da democracia direta exercida na Grécia antiga, em que os cidadãos da polis se reuniam na Ágora para deliberar sobre as questões de interesse da coletividade, na moderna democracia representativa, o povo elege representantes que defendem seus interesses.

Nesse contexto, o Legislativo deve legislar levando em consideração o ordenamento jurídico em vigor, avaliando a legislação que possua afinidade com a proposição apresentada. Ronald Dworkin, ao desenvolver a metáfora do “romance em cadeia”, originalmente concebida para o Judiciário, a fim de combater o ativismo judicial, oferece uma imagem igualmente aplicável à atividade legislativa.

Tal qual um grupo de romancistas que escreve coletivamente uma obra, cada novo capítulo precisa dar continuidade coerente à história já construída, adaptando-se aos fatos anteriores e mantendo-se fiel ao enredo e à intenção da narrativa.

No plano Legislativo, isso significa que as proposições devem ser compatíveis com o conjunto normativo vigente e com os desígnios constitucionais, funcionando como a continuidade de um projeto nacional que integra história, cultura e necessidades sociais. Legislações extravagantes ou repetidas, que colidem com o direito positivo ou reproduzem normas já existentes, rompem a lógica dessa continuidade e comprometem a coerência do “romance” institucional.

O cenário brasileiro recente revela um preocupante distanciamento dessa missão. Segundo levantamento do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde, publicado pelo Estadão (14/8, A20), foram analisadas 2.568 proposições apresentadas no Congresso em 2024, das quais 1.314 tratavam de saúde.

Dentre estas, 37% contrariavam leis vigentes e 26% apenas repetiam normas já em vigor, sem qualquer inovação. Exemplos incluem propostas que afrontam a reforma psiquiátrica (2001) ou o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990). Além disso, 23% das proposições na área de saúde mental contrariavam princípios da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), como a prioridade ao atendimento comunitário em detrimento da internação, e 14% possuíam baixa relevância, como a criação de datas comemorativas.

Trata-se de um sintoma claro de esvaziamento do papel representativo do Legislativo, que deveria ser um dos pilares da democracia. A lógica representativa exige que o Parlamento seja não apenas um produtor de leis, mas um canal de diálogo entre o povo e o Estado, além de um mediador das demandas sociais.

Quando os representantes se afastam dessa função, abrem-se espaços para populismos, extremismos e para o uso arbitrário de conceitos como “patriotismo” ou “defesa da democracia” para legitimar práticas contrárias à própria essência democrática.

O enfraquecimento do Legislativo enquanto instância de mediação gera consequências graves: compromete o equilíbrio entre os Poderes, corrói a confiança pública nas instituições e aprofunda a polarização política.

Mais do que improdutividade, o problema está na baixa qualidade e na irrelevância social de parte significativa da produção legislativa, voltada a interesses corporativos ou eleitorais, em detrimento do interesse público.

Infelizmente, o que se observa atualmente é que grande parte do Legislativo brasileiro não mais cumpre esse papel, ocupando-se com proposições que não visam o bem dos seus representados, mas o interesse de poucos.

Propostas que pleiteiam anistia para determinados grupos, o fim do foro privilegiado apenas em contextos politicamente oportunistas ou mesmo o apoio a governos estrangeiros em detrimento dos interesses do próprio País e do seu povo revelam um distanciamento preocupante da missão constitucional que deveria guiar a atividade parlamentar.

Sem um Parlamento capaz de legislar com coerência, técnica e compromisso social, a democracia representativa se esvazia e o projeto constitucional brasileiro corre o risco de se tornar apenas um registro histórico, um “romance” interrompido antes de seu melhor capítulo.

O resgate dessa instituição passa por recolocar o interesse público no centro da produção legislativa, assegurar a coerência normativa e reafirmar o compromisso com os princípios constitucionais. Sem isso, o Parlamento não apenas perderá sua relevância, mas colocará em risco a legitimidade e a estabilidade de todo o edifício democrático brasileiro.

Andeirson da Matta Barbosa, o autor deste artigo, é Mestre em Direito. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 20.08.25

terça-feira, 19 de agosto de 2025

Trump desmoraliza direitos humanos

Ao caracterizar o Brasil como uma ditadura, enquanto poupa regimes violadores de direitos humanos, relatório dos EUA mostra como Trump desvirtua os valores que seu país ajudou a consagrar


Imigrantes deportados pelo Governo Trump para El  Salvador

O mais recente relatório de direitos humanos do Departamento de Estado dos EUA revela mais sobre a política externa do presidente Donald Trump do que sobre as realidades que alega documentar. Ao inverter prioridades, encurtar investigações e hipertrofiar recortes convenientes, o texto se transforma num instrumento de retaliação política – e não numa avaliação séria e universal dos direitos humanos. É um manual de como subverter valores que, por décadas, definiram a imagem internacional dos EUA: a defesa da liberdade, do Estado de Direito e da democracia.

O caso do Brasil é exemplar. O documento concentra críticas nas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) contra apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, acusando repressão à liberdade de expressão e perseguição política. Há abusos reais – decisões monocráticas sem devido processo, censura seletiva nas redes sociais, prisões preventivas prolongadas – que exigem correção. Mas o relatório falseia a escala desses problemas no caso brasileiro e contemporiza outros regimes que violam flagrantemente os direitos humanos, como El Salvador, Israel, Hungria, Filipinas e Arábia Saudita – cujos governos são todos alinhados a Trump

Pelo cotejamento de monitores respeitados, como os da Freedom House, V-Dem, Human Rights Watch ou World Justice Project, o Brasil está longe da repressão típica de autocracias. Mantém eleições competitivas, imprensa livre e um Judiciário – em que pesem todos os seus desvios – relativamente funcional. O relatório distorce essa realidade para emoldurar o País como caso extremado, justificando sanções comerciais ilegais e medidas de intimidação contra magistrados.

Trump instrumentaliza a pauta de direitos humanos como já fez com o comércio internacional, a política externa e a defesa da democracia: armas seletivas contra adversários e blindagem para aliados. Sob sua lógica transacional, regimes ideologicamente alinhados ou úteis a seus interesses escapam de reprimendas; governos adversos à agenda Maga são expostos a recriminações e sanções exorbitantes. É a mesma mentalidade que o leva a bajular autocratas, minimizar atrocidades de aliados e atacar a imprensa, universidades e agências científicas quando seus dados ou análises contrariam a narrativa oficial.

A hipocrisia é gritante. Como Trump cobra de outros países respeito à liberdade de expressão quando manda universidades cercearem discursos, ordena que museus retratem a história americana segundo o seu ponto de vista, intimida jornalistas e processa veículos que ousam contrariá-lo? Como posar de guardião do Estado de Direito enquanto pressiona tribunais para obter decisões políticas ou dissemina teorias conspiratórias que corroem a confiança nas eleições? A mendacidade de Trump e seus abusos contra direitos e liberdades fundamentais – de deportações em massa à repressão de protestos – minam qualquer autoridade moral de sua diplomacia.

No Brasil, a escalada recente – tarifas punitivas, sanções pessoais e retórica truculenta – é desproporcional, ilegal e extorsiva. Serve menos à proteção de direitos humanos e mais a uma tentativa de influenciar processos judiciais e o cenário eleitoral. O País, com todas as suas mazelas, não pode ser equiparado a regimes que criminalizam a dissidência, fecham Parlamentos ou fraudam eleições. E muito menos pode aceitar que seus Poderes sejam chantageados para anistiar um notório golpista.

Não se trata de absolver nossas autoridades de críticas: o STF, o Executivo e governos estaduais têm cometido abusos contra liberdades fundamentais. Mas aceitar que a pauta de direitos humanos seja usada como pretexto para sanções e ingerências é abrir a porta para que qualquer dissenso interno seja explorado por interesses externos.

O relatório, nesta versão trumpista, é um retrato de como valores historicamente americanos podem ser distorcidos até a desfiguração total, convertendo-se em instrumentos de coerção seletiva. É mais um passo firme rumo a um mundo menos regido por regras e mais confortável para os fortes – e, paradoxalmente, mais hostil para as próprias democracias que os EUA um dia ajudaram a proteger.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 15.08.25

Um Congresso acima da lei

A pretexto de enfrentar abusos do STF, parlamentares parecem interessados em tornar o Congresso um Poder imune aos controles republicanos – exatamente a crítica que muitos fazem ao Supremo


Deputados e Senadores em sessão do Congresso Nacional

O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), declarou em entrevista à GloboNews que há “um ambiente de discussão” para restabelecer a exigência de prévia autorização legislativa para a abertura de inquéritos envolvendo parlamentares. Se esse despautério prosperar, o Brasil dará um salto de 24 anos para trás, destruindo um dos avanços institucionais mais relevantes desde a redemocratização do País. O Congresso, ao fim e ao cabo, tornar-se-ia um Poder imune aos devidos controles republicanos, fazendo desta uma república capenga.

Em 2001, foi promulgada a Emenda Constitucional (EC) 35, que fixou parâmetros claros para a imunidade parlamentar. Desde então, a abertura de ações penais em face de deputados e senadores pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – e, consequentemente, os inquéritos que as fundamentam – independe de autorização da respectiva Casa a que pertence o parlamentar investigado ou réu. A um só tempo, a EC 35 fortaleceu o princípio republicano fundamental, qual seja, a igualdade de todos perante a lei, e preservou a natureza da democracia representativa, garantindo aos parlamentares a inviolabilidade civil e penal apenas por suas opiniões, palavras e votos.

À época, os congressistas mantiveram certas prerrogativas que fazem sentido pela natureza de seu trabalho. Por exemplo: desde a diplomação, parlamentares não podem ser presos, “salvo em flagrante de crime inafiançável”. Também não estão obrigados a “testemunhar sobre informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do mandato”. Estas, a rigor, são garantias da preservação da vontade livre e consciente dos eleitores, e não da pessoa do parlamentar.

O que o sr. Hugo Motta e muitos de seus pares têm defendido, porém, é a impunidade de deputados e senadores suspeitos de crimes comuns, alçando-os a uma classe especial de cidadãos, que passariam a estar imunes às leis. É o que pode acontecer, pois não é difícil imaginar que, diante da perspectiva de persecução criminal de um colega, o espírito de corpo haverá de prevalecer na maioria dos casos. Decerto vocalizando o desejo de muitos no Congresso, o que o presidente da Câmara propôs é reverter a lógica da imunidade parlamentar, criando uma casta intocável de cidadãos que apenas lograram ser eleitos para um mandato temporário. O efeito prático do eventual sucesso dessa monstruosidade legislativa será a legalização do compadrio.

A ameaça de retrocesso não se resume a esse ponto. Desde o momento em que uma malta de bolsonaristas tomou de assalto as Mesas Diretoras da Câmara e do Senado, começaram as tratativas desavergonhadas para restringir o alcance do foro especial por prerrogativa de função, o chamado foro privilegiado, além do conjunto de medidas que ficou conhecido como a “PEC da Blindagem”. Tudo, é claro, sob o pretexto de reparar injustiças, erros ou abusos cometidos pelo STF, especialmente contra Jair Bolsonaro e outros réus por tentativa de golpe de Estado. A anistia ao ex-presidente, porém, é apenas o verniz na cara de pau: o objetivo real de próceres do Congresso é blindar parlamentares acusados de crimes graves perante o Supremo, como o desvio de bilhões de reais em emendas ao Orçamento da União.

Foi por essa razão que Motta afirmou que há um “incômodo” no Congresso porque “muitos parlamentares”, segundo ele, estariam sendo investigados “por crimes de opinião”. Ora, isso não é verdade. O que há são investigações e processos relativos a crimes de corrupção, peculato, lavagem de dinheiro e outros, ainda que a responsabilização da delinquência ordinária venha mal disfarçada de “perseguição política” para justificar essas alterações constitucionais voltadas à impunidade.

É legítimo questionar decisões do STF e pugnar pela correção de eventuais abusos que alguns ministros possam cometer. Mas instrumentalizar as críticas ao Judiciário para criar um Congresso acima da lei é corroer o próprio sistema de freios e contrapesos que sustenta a República. Se o Congresso se autoconceder o poder de autorizar ou não a investigação de seus membros, o Brasil passará a ter um Poder que não presta contas a ninguém, exatamente a acusação que hoje se faz ao Supremo.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 16.08.25

A inflação de Trump

Presidente nega, mas seu tarifaço começa a se espalhar pelos preços nos EUA


Tarifaço, arma voadora de Donald Trump

Como esperado, os efeitos da guerra tarifária do presidente Donald Trump já alimentam a inflação nos EUA. Em julho, o índice de preços ao produtor (PPI, na sigla em inglês) subiu 0,9% em relação a junho, quando o esperado era um avanço de 0,2%. Em 12 meses, o PPI teve elevação de 3,3%, o maior patamar desde fevereiro deste ano. Já o núcleo do PPI, que exclui preços mais suscetíveis à volatilidade, como os de alimentos e energia, teve alta mensal de 0,6% em julho, maior patamar desde março de 2022.

Poucos dias antes, os dados de inflação ao consumidor (CPI, na sigla em inglês) já sinalizavam que o período em que empresas utilizaram o que tinham em estoque, anteciparam importações e seguraram os repasses ao consumidor das tarifas impostas por Trump era coisa do passado.

Mas mesmo com CPI anual de 2,7% em julho, muito acima da meta de 2% ao ano perseguida pelo Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA), parte do mercado chegou a apostar em queda de juros no mês que vem.

O secretário do Tesouro, Scott Bessent, não se furtou a aventar (e depois negar) a possibilidade de corte nos juros norte-americanos em setembro, numa clara tentativa de agradar ao chefe Trump, para quem a inflação nos EUA é praticamente inexistente.

Não é o que dizem os dados. A bem da verdade, o PPI demolidor de julho reflete apenas efeito parcial do tarifaço, já que as alíquotas mais punitivas (como a de 50% sobre o café brasileiro, por exemplo) entraram em vigor recentemente e ainda não aparecem nos indicadores. O que está ruim, portanto, só tende a piorar.

Em um cenário desses, dificilmente um banco central técnico e independente, como tem sido ao longo das últimas décadas o dos EUA, tem margem para reduzir juros. O único elemento que, no momento, permitiria vislumbrar um corte de juros é o enfraquecimento do mercado de trabalho.

Ocorre que Trump não só alardeia que a inflação é zero nos EUA, como também bravateia que o mercado de trabalho está a pleno vapor, exibindo orgulhosamente toda a sua ignorância econômica. Mercado de trabalho pleno e inflação inexistente são realidade apenas em mentes alienadas como a do republicano.

O problema é que Trump é um delirante com poder nas mãos, e tem conseguido impor, na base do grito e da chantagem, praticamente tudo o que deseja. Irritado com as estatísticas oficiais, que somente refletem uma economia que apenas começou a se deteriorar, o presidente vem atirando para matar os mensageiros.

Foi o que aconteceu com Erika McEntarfer, a comissária que comandava o departamento responsável pela coleta, análise e divulgação dos dados de emprego, bem como do CPI e PPI. Trump não só a demitiu, como para o lugar dela indicou um economista obscuro que já propôs suspender o relatório mensal de emprego.

Até o momento, o Fed, na figura do presidente Jerome Powell, é uma das poucas forças de resistência a Trump. O PPI de julho apenas corrobora a conduta cautelosa da política monetária. Powell tem o apoio dos dados, mas não o de Trump.

Da resolução desse impasse depende não só o futuro dos juros nos EUA, como o da economia global.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 16.08.25

Freios ao poder sem limites

As Supremas Cortes, como guardiãs da Constituição, são o anteparo mais eficaz contra a instrumentalização da democracia pelos que querem impor a tirania da maioria

Ministro Edson Fachin, Presidente eleito do Supremo Tribunal Federal

Como o mundo, atônito, observa, o presidente dos EUA, Donald Trump, tem cometido as maiores barbaridades supostamente em defesa dos valores da democracia liberal. Legitimado pela maioria do voto popular e do Colégio Eleitoral, além do fato de ter o controle de ambas as Casas Legislativas, Trump parece se sentir autorizado a fazer o que lhe dá na veneta, como se o triunfo eleitoral fosse uma espécie de salvo-conduto para a imposição arbitrária – e irresponsável – de suas vontades. Tal atitude viola o princípio democrático fundamental segundo o qual há limites claros para o exercício do poder, mesmo quando emanado de escolhas majoritárias.

Em escala menor de danos, mas não menos preocupante, Jair Bolsonaro agiu da mesma forma no Brasil. Durante seu trevoso mandato, o ex-presidente esgarçou as fronteiras da legalidade, da institucionalidade e da decência, naturalizando arroubos autoritários como tática para acostumar a opinião pública, digamos assim, ao seu projeto de poder. Os efeitos disso são duradouros. Há poucos dias, como se viu, uma súcia de parlamentares ligados ao bolsonarismo sequestrou as Mesas Diretoras da Câmara e do Senado como se isso fosse a coisa mais normal do mundo, e cobrou como resgate o avanço de projetos destinados à impunidade não só de Bolsonaro e seus asseclas, como também de deputados e senadores que se sentem ameaçados pela lei – sobretudo pela malversação de bilhões de reais em emendas ao Orçamento.

Todos esses atores políticos se dizem defensores de valores democráticos universais – liberdade de expressão, direitos humanos, eleições regulares, participação popular –, mas, na prática, só instrumentalizam a democracia para dar vazão a seus desígnios autoritários, sem prejuízo de outros interesses inconfessáveis. Essa contradição, aliás, é o cerne de uma perversão contemporânea, de resto já amplamente descrita pela literatura política: as liberdades democráticas transformadas em um meio de sua própria erosão. Ao reivindicar legitimidade das urnas para atacar os pilares do Estado Democrático de Direito, líderes como Donald Trump, Jair Bolsonaro, Vladimir Putin e Viktor Orbán, entre outros, revelam-se, na verdade, inimigos da mesma democracia liberal que juram estar resguardando com suas estocadas.

Há, no entanto, obstáculos institucionais contra esses democratas de fancaria que precisam ser preservados. O principal deles é a Constituição, que garante que nem mesmo a vontade da maioria nas urnas pode transgredir os limites, direitos e garantias individuais nela consagrados. No Brasil, cabe ao Supremo Tribunal Federal (STF) a missão de ser o guardião desse pacto civilizatório. E, nesse sentido, é de justiça reconhecer que a Corte tem resistido bravamente a enormes pressões, internas e externas, principalmente do governo dos EUA – a maior potência militar e econômica da História –, para aliviar a barra de Jair Bolsonaro e seus corréus no julgamento por tentativa de golpe de Estado. Não seria aceitável, mas seria compreensível, se os ministros sucumbissem a tamanho bullying. A vida pessoal deles tem sido afetada por decisões arbitrárias da Casa Branca com claro propósito de subjugar o STF.

É legítimo e saudável criticar decisões pontuais de ministros ou mesmo do colegiado do STF. Isso é próprio de uma democracia vibrante. Outra coisa, intolerável, é deslegitimar a Corte pelo que ela é com o objetivo de enfraquecer ou eliminar a instituição guardiã da mais poderosa barreira contra o autoritarismo. Ataques desse jaez não podem ser enquadrados como mera divergência política – são atentados contra o Estado Democrático de Direito.

Há poucos dias, o próximo presidente do STF, ministro Edson Fachin, resumiu bem estes tempos estranhos ao afirmar que há “tentativas de erosão democrática” nas Américas. Fachin também foi preciso ao anunciar que sua gestão privilegiará a contenção, a colegialidade e a pluralidade. Oxalá assim seja. É exatamente disso que advém a força institucional das Cortes constitucionais mundo afora. Agindo dentro desses parâmetros, elas são hoje mais fundamentais do que nunca para garantir a integridade do texto que é o único anteparo civilizado contra aqueles que, disfarçados de democratas, pretendem governar sem freios.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 16.08.25

O efeito deletério do Bolsa Família

Estudo mostra que mudanças no programa nos últimos anos, sobretudo o aumento do benefício, têm gerado impacto negativo sobre o mercado de trabalho e estimulado a informalidade


A foto acusa

Com mais de 20 anos de existência num país onde as políticas públicas têm história errante, o Bolsa Família é um robusto programa de transferência de renda, uma marca já integrada ao imaginário nacional e uma força de irresistível apelo eleitoral – atributos que costumam converter críticas em crime de lesa-pátria. Mas, felizmente, não têm faltado estudos sérios destinados muito mais a aperfeiçoar o programa do que questionar sua existência. O mais recente deles, realizado por pesquisadores do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), toca numa novidade: os efeitos do Bolsa Família sobre o mercado de trabalho mudaram. Para pior. Segundo o estudo, para cada duas famílias que recebem o auxílio, uma sai da força de trabalho.

Até aqui não foram poucos os críticos que, por intuição ou preconceito, diziam que o Bolsa Família estimularia a preguiça e a desocupação. Com a longevidade de um programa pensado como rota de transição para que cidadãos desassistidos pelo Estado pudessem se estabelecer economicamente, e a partir daí prosperar por conta própria, tornou-se comum a ideia de que, no fundo, o Bolsa Família desincentiva o trabalho. Trata-se de uma versão mal contada da história. Até 2019, vários estudos mostraram que, no geral, o programa não afetava negativamente a oferta de trabalho. Enxergou-se, inclusive, um efeito positivo entre as mulheres.

Os dados apresentados agora pelo Ibre mostram um impacto diferente do que se avaliava antes. O fenômeno é resultado do aumento significativo do valor do benefício (que mais que triplicou de 2019 a 2023, passando de cerca de R$ 190 para R$ 670) e do alcance do programa (que saltou de 14 milhões para 21 milhões de famílias beneficiárias). Essa dupla tendência contribuiu, segundo os pesquisadores, para reduzir a ocupação e a participação de alguns grupos no mercado – sobretudo os homens do Norte e do Nordeste –, ao mesmo tempo que levou ao aumento generalizado da informalidade: brasileiros de todas as regiões tendem a evitar o emprego formal quando têm acesso aos benefícios. Em outras palavras, foge-se da formalidade a fim de preservar o auxílio do Estado.

Quando criado, em 2003, o Bolsa Família tinha outra cara: um custo mais baixo, um alcance bem mais reduzido e um benefício mais modesto. Começou com R$ 4,3 bilhões de orçamento (ou pouco mais de R$ 14 bilhões em valores atualizados). Em 2017, eram R$ 35 bilhões. Para 2025, seu orçamento beirou eloquentes R$ 170 bilhões – sem esquecer os muitos outros programas sociais, como Pé-de-Meia, Minha Casa Minha Vida, tarifas sociais do saneamento e da energia elétrica, cisternas, Auxílio Gás, Benefício de Prestação Continuada (BPC), entre outros. Este último, aliás, também gera distorções. Benefício concedido a idosos a partir de 65 anos e pessoas com deficiência, o BPC, segundo especialistas, estimula a informalidade, já que é possível receber um salário mínimo nessa idade sem nenhuma contribuição à seguridade social.

Tamanhos gigantismo e generosidade, contudo, não deixaram de legado ao País o fim da extrema pobreza e a redução da pobreza. De acordo com a economista Laura Müller Machado, do Insper, aplicando os critérios de elegibilidade e valor de benefícios do Bolsa Família atual na renda da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2023, o orçamento necessário para erradicar a pobreza teria de ser de R$ 76 bilhões anuais. Conclusão: gastamos com Bolsa Família mais que o dobro do valor necessário caso tivéssemos focalização perfeita e maior eficiência do gasto. E focalização perfeita, lembra ela, requer conhecimento da renda correta dos beneficiários, algo desincentivado pelo próprio Bolsa Família.

Pôr luz sobre os dados da informalidade pode ajudar no aperfeiçoamento do programa – sem dogmas e preconceitos de lado a lado. Hoje o País só tem conhecimento do aumento da renda quando ela ocorre pelo mercado de trabalho formal, pela Previdência e pelo BPC, por exemplo. E, depois, a lei é aplicada só aos formais, e não aos informais. Trata-se de um evidente incentivo à informalidade. E assim celebramos a saída de pessoas do Bolsa Família quando vão para o mercado formal de trabalho (cerca de 1 milhão de famílias, segundo o governo anunciou em julho), enquanto outros milhões escondem-se na informalidade para seguirem recebendo benefícios.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 16.08.25

Ditadura do Judiciário coisa nenhuma

Usar as mesmas palavras, ainda que com ressalvas, para aproximar os ‘anos de chumbo’ da ditadura militar à imperfeita democracia do presente é muito grave. Este artigo é a réplica ao artigo "Precisamos dar nome aos bois" (Estadão, 9/8, A4), que defende que o Brasil vive sob um “estado de exceção informal”.


Thêmis, a Deusa da Justiça 

Encorajado pela chantagem de Trump, o bolsonarismo aumenta o tom da ladainha: o Brasil “vive sob a ditadura do Poder Judiciário”, personificada na figura de Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). A acusação é parte da estratégia voltada a promover a impunidade daqueles que atentaram contra o Estado Democrático de Direito.

O Brasil vive a mais longa experiência democrática de sua acidentada história constitucional. Uma experiência imperfeita, é verdade. O fato, no entanto, é que ao longo dos últimos 40 anos, fomos capazes de solucionar os conflitos políticos de forma pacífica, por meio de eleições e de acordo com a Constituição, regra de ouro da democracia, que o ex-presidente Bolsonaro e seus acólitos buscaram subverter.

Não se confunda a crítica legítima a decisões eventualmente equivocadas do STF com a tentativa de solapar as instituições democráticas. Quanto mais agora, quando o chefe da maior potência militar e econômica do planeta mobiliza instrumentos punitivos contra a soberania nacional na tentativa de coagir o Supremo Tribunal Federal a abdicar da responsabilidade de guardar a Constituição.

Nesse contexto, preocupa que vozes da direita democrática brasileira façam coro com a cantilena golpista, ainda que de modo mais sofisticado. É o caso do artigo Precisamos dar nome aos bois, escrito por Henrique Zétola e Jamil Assis, pessoas a quem respeitamos pelo bom trabalho que realizam à frente do Sivis, entidade dedicada ao estudo e ao debate da liberdade de expressão.

Sem analisar com rigor os casos a que se referem e sem considerar o contexto em que foram tomadas, os autores arrolam decisões supostamente exemplificativas da usurpação de poder por parte do STF. Nesse passo, misturam decisões sobre as emendas parlamentares, nas quais o Supremo buscou assegurar princípios constitucionais elementares, como a transparência no uso dos recursos públicos; decisões que ratificam a competência constitucional do presidente da República para alterar a alíquota do IOF, tida como incontroversa pela maioria dos tributaristas; grande número de decisões monocráticas do Supremo, substancialmente reduzidas pela obrigação de levá-las de imediato ao plenário das turmas do Tribunal; e decisões mais controversas. O descuido analítico seria inofensivo se não fornecesse supostos “elementos de prova” para a conclusão de que o Brasil ainda não seria uma ditadura, mas tampouco continuaria a ser uma democracia, vivendo sob um regime de “permanente exceção”.

Quem faz uma afirmação como essa ou não tem ideia do que seja de fato um regime de exceção – talvez porque não o tenha experimentado na pele como as pessoas da nossa geração e da anterior – ou não tem disposição de distinguir imperfeições da nossa democracia, algumas delas bem apontadas no artigo, de supostas mutações que estariam a alterar o seu código genético.

Não há como comparar as condições políticas de hoje com a experiência vivida durante o regime autoritário, em que o Executivo federal concentrou e exerceu todos os poderes de forma arbitrária, cassou parlamentares e ministros do STF, suspendeu ou restringiu gravemente as garantias e liberdades fundamentais, prendeu, exilou, torturou e matou clandestinamente adversários. Usar as mesmas palavras, ainda que com ressalvas, para aproximar os “anos de chumbo” da ditadura militar da imperfeita democracia do presente é muito grave.

A concentração de várias investigações sob a presidência do mesmo juiz, que dirige a instrução do processo e participa do julgamento, ainda que originalmente decorrente da omissão das diversas instâncias de aplicação da lei de cumprirem sua tarefa básica, pode ser criticada.

Não devemos nos esquecer, porém, de que não vivemos tempos normais, nem aqui nem no mundo. O ataque às Cortes Supremas é comum a todos os movimentos e governos autoritários que emergiram, à esquerda e à direita, no século 21. Eles veem no Judiciário um obstáculo. Submetê-lo é parte essencial de uma estratégia que se desdobra no controle sobre o Congresso, sobre o processo eleitoral, assim como sobre a imprensa. A literatura especializada mostra que, onde o Judiciário conseguiu resistir, a virada autoritária teve maior dificuldade para avançar.

Essa constatação não afasta o risco de que o Judiciário, ao se colocar como trincheira na defesa da democracia, possa cometer erros, que devem ser apontados com rigor.

A restrição à liberdade de expressão é sempre um risco. Quão tolerantes devemos ser com os intolerantes? Quais os limites das democracias para se defender daqueles que abusam de suas liberdades para destruí-las? Essas questões estão em pauta no Brasil, não de maneira abstrata, mas de forma concreta. Não podemos negligenciá-las. As críticas ao comportamento das instituições são essenciais ao seu aperfeiçoamento.

É preciso não confundir, porém, críticas legítimas com a utilização distorcida de conceitos. Não se pode aceitar que, sob o pretexto de dar nomes aos bois, se facilite a abertura da porteira para que passe a boiada golpista.

Os autores deste artigo - Oscar Vilhena é Professor de Direito da FGV-SP e membro da Comissão Arns; e Sergio Fausto é Diretor-geral da Fundação FHC, membro do Gacint-USP. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 16.08.25.

O cacoete autoritário do lulopetismo

Governo Lula aproveita comoção com pedofilia online para rascunhar um projeto que suspende redes sociais sem necessidade de ordem judicial, apenas pela vontade de órgão do Executivo



Lula, Presidente da Honra do PT

A comoção provocada por um vídeo do influenciador digital Felipe Bressanim Pereira, conhecido como Felca, no qual ele expôs os sórdidos mecanismos de exploração sexual infantil nas redes sociais, sensibilizou a sociedade e, por óbvio, chamou a atenção do governo Lula da Silva. A gravidade das denúncias feitas por Felca não deixa dúvida de que o País precisa fortalecer seus instrumentos legais de proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital. O busílis é que, a pretexto de enfrentar um problema relevante, Lula parece empenhado em revigorar o conhecido projeto lulopetista de controlar o fluxo de informações nas plataformas digitais.

Segundo o que se sabe a respeito do projeto de lei a ser encaminhado pelo Palácio do Planalto ao Congresso sobre o assunto, o governo pretende concentrar poderes inéditos em uma reformulada Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), órgão vinculado ao Ministério da Justiça. Entre eles, o de determinar, por decisão administrativa, sem prévia autorização judicial, o bloqueio por até 60 dias de qualquer rede social que seja considerada negligente no combate à pedofilia online e a outros crimes diversos, como fraudes e golpes. Não há exagero em qualificar uma medida desse jaez como autoritária. Conferir a um ente subordinado ao Executivo a faculdade de retirar do ar plataformas usadas diariamente por milhões de brasileiros, para os mais variados fins, abre uma avenida para arbitrariedades de toda ordem.

É evidente que a pedofilia online e outras formas de exploração de crianças e adolescentes exigem uma resposta firme do Estado. Mas essa resposta, por óbvio, deve respeitar o devido processo legal. Desde o julgamento da constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet, concluído pelo Supremo Tribunal Federal em junho passado, a retirada de conteúdos do ar pode ser feita mediante notificação dos usuários – exceto no caso de crimes contra a honra –, mas a suspensão das plataformas só pode ser determinada pelo Judiciário, em processos que assegurem o contraditório e a ampla defesa. Ao pretender substituir esse escrutínio judicial por um processo administrativo conduzido por uma agência ligada ao governo, a proposta do Palácio do Planalto embute o risco de o combate aos crimes digitais ser transformado em um poderoso instrumento político nas mãos do governo.

Não é a primeira vez que o PT revela sua tentação autoritária no campo da comunicação. O partido nunca escondeu a obsessão por implementar no País o tal “controle social da mídia”, eufemismo nada sutil para censura. Ao propor medidas de enfrentamento a um crime real com tantas lacunas hermenêuticas – afinal, o que levará um burocrata a certificar que uma empresa de tecnologia foi “negligente” no combate à pedofilia online? –, o projeto do governo embaralha fronteiras que deveriam ser cristalinas do ponto de vista legal. O risco é que a mão do governo de turno se estenda para decidir, com o polegar para cima ou para baixo, o que pode ou não circular nas redes sociais. Isso não tem outro nome: é arbítrio.

Eis o ponto fundamental: não cabe ao Executivo arbitrar o discurso público. O combate à pedofilia e a outras formas de violência online deve ser conduzido pelas instituições republicanas nos estritos limites do Estado Democrático de Direito, não por meio de uma estrutura burocrática de controle da informação circulante com poder quase ilimitado. Se levada adiante, a proposta de Lula dará ao governo a prerrogativa de calar vozes incômodas a pretexto de proteger cidadãos vulneráveis – a desculpa esfarrapada que regimes autoritários costumam dar para restringir as liberdades democráticas.

É possível, sim, avançar na formulação de regras mais duras para que as big techs identifiquem e removam conteúdos que violem direitos de crianças e adolescentes, como prevê o Projeto de Lei n.º 2.628/2022, já aprovado no Senado e em tramitação na Câmara. Esse projeto, embora mereça ajustes, parte de uma base mais sólida e democrática do que a proposta do governo. O que é inaceitável é a exploração da justa indignação social contra crimes abjetos como um atalho para a censura.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 19.08.25;

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

O telefonema que Tarcísio deveria dar

Governador cobra de Lula que ligue para Trump. Mas Tarcísio também poderia telefonar a Eduardo Bolsonaro, filho de seu padrinho político, e pedir que cesse a sabotagem contra SP e o Brasil

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, cobrou do presidente Lula da Silva que telefone para o presidente dos EUA, Donald Trump, com o objetivo de negociar o tarifaço imposto pelos americanos ao Brasil – e que afeta particularmente o agronegócio paulista. “É isso que vai fazer a diferença”, disse Tarcísio. Este jornal defendeu e continua a defender exatamente isso, que o presidente Lula tente telefonar para Trump, mas, se o governador Tarcísio está de fato interessado em ajudar o Brasil e os paulistas, ele mesmo podia passar a mão no telefone e ligar para os EUA – para falar não com Trump, e sim com o deputado “exilado” Eduardo Bolsonaro.

Tarcísio poderia pedir que Eduardo Bolsonaro, filho de seu padrinho político Jair Bolsonaro, pare de sabotar os esforços do governo brasileiro para estabelecer um diálogo com a administração americana. O recente cancelamento abrupto de uma reunião virtual entre o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o secretário do Tesouro dos EUA, Scott Bessent, é um exemplo cristalino de como o clã Bolsonaro faz mal ao Brasil. Até a antevéspera, estava tudo pronto: agendas de ambas as autoridades alinhadas, link de acesso à plataforma de videoconferência estabelecido e interlocução formalizada entre os dois governos. Ainda assim, na undécima hora, a conversa entre Haddad e Bessent, que deveria ter ocorrido hoje, foi retirada de pauta pelo gabinete do secretário do Tesouro sob a insólita justificativa de “falta de agenda” – uma desculpa claramente esfarrapada.

Haddad culpou “forças de extrema direita”, em referência a Eduardo Bolsonaro e ao blogueiro Paulo Figueiredo, ambos homiziados nos EUA para conspirar contra o Brasil em troca da impunidade de Jair Bolsonaro e outros golpistas. De fato, as evidências apontam para uma “coincidência”, chamemos assim, bastante reveladora: no dia do anúncio do cancelamento da reunião entre Haddad e Bessent, Eduardo concedeu entrevista ao Financial Times prevendo novas sanções da Casa Branca contra autoridades brasileiras, justamente quando o governo Lula da Silva tentava estabelecer canais de diálogo para conter a escalada punitiva deflagrada por Trump.

Não se trata, por óbvio, de um mero desencontro diplomático. Em público, o sr. Eduardo nega, mas a interferência do filho do ex-presidente Bolsonaro para, desde o exterior, inviabilizar contatos de alto nível entre os governos das duas maiores democracias das Américas é um ato de gravidade ímpar. O fato de o deputado federal licenciado agir com esse grau de desenvoltura contra seu próprio país revela não só seu desprezo pelo decoro parlamentar, mas um desdém absoluto pelos interesses de milhões de brasileiros que são prejudicados pelo tarifaço. É espantoso que a Câmara ainda continue a lhe pagar salário e não lhe tenha cassado o mandato.

É certo que Lula não é propriamente conhecido por sua admiração pelos EUA e vem subindo o tom com bravatas palanqueiras para capitalizar eleitoralmente sua disputa particular com Trump. Mas a ordem dos fatores, aqui, altera o produto: foi a sabotagem dos Bolsonaros que resultou no tarifaço excêntrico de Trump, e não o antiamericanismo infantil de Lula. Logo, se Tarcísio estiver genuinamente empenhado em destravar as relações com os EUA, deve deixar de lado o discurso eleitoreiro que tenta jogar toda a responsabilidade pela crise nos ombros de Lula e deve começar a cobrar dos seus caros amigos Bolsonaros que parem de atrapalhar o Brasil.

Cabe a Tarcísio, como governador de um dos Estados mais afetados pelo tarifaço e liderança política com pretensões nacionais, exigir que cessem as manobras golpistas e irresponsáveis do clã Bolsonaro que tanto vêm prejudicando o País e, de forma particular, a economia paulista. Criticar Lula é fácil e sempre pode render dividendos políticos. Enfrentar o sabotador maior do Brasil, contudo, exige coragem e compromisso com a República, o que o sr. Tarcísio ainda precisa demonstrar com mais vigor e independência.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 13.08.25

Leão 14 supera medalhões como líder global, aponta nova pesquisa

Pontífice novato ficou à frente de Volodimir Zelenski, Bernie Sanders e Donald Trump em levantamento do instituto Gallup.


O papa Leão 14 acena para fiéis ao deixar a missa do Jubileu da Juventude, em Tor Vergata, em Roma - Remo Casilli-3.ago.25/Reuters

Foi um presentaço para Leão 14. Ao celebrar cem dias de pontificado neste sábado (16), o papa desponta numa pesquisa americana do instituto Gallup como o líder global do momento. Ele conseguiu 57% de avaliação positiva, contra apenas 11% de rejeição e 31% de neutralidade. Nestes 31 %, cabe a justificativa de que ele ainda é uma figura pouco familiar.

Papas costumam se sair bem neste estudo feito desde 1993, avaliando chefes de governo e personalidades do mundo político. Foi assim com João Paulo 2º, cuja popularidade só cresceu no longo papado, e com Francisco, por seu enorme carisma.

Com Bento 16, tímido e reservado, os números foram menos vistosos. Mas, o que chama atenção agora é a lavada do pontífice novato sobre seus competidores: no topo do ranking, desbancou Volodimir Zelenski (segundo colocado, com 52% de aprovação), o senador democrata Bernie Sanders (terceiro colocado, com 49%), Donald Trump (quarto colocado, com 41%) e seu vice J. D. Vance (quinto colocado, com 38%). A taxa de rejeição de todos supera em muito a do papa –a de Trump alcança 57%.

Uma multidão de pessoas está reunida, muitas delas segurando celulares e tirando fotos. No centro da imagem, um líder religioso, vestido de branco, sorri e faz um gesto positivo com a mão. O ambiente é festivo, com pessoas visivelmente animadas e algumas usando chapéus e roupas leves. Ao fundo, há uma grande quantidade de fotógrafos e espectadores.

Há pelo menos duas formas de olhar os resultados da pesquisa. A primeira diz respeito ao que os respondentes preferem quando o assunto é liderança global. Personalidades conciliadoras, como Leão 14 e mesmo o veterano Sanders, têm mais apelo do que polarizadores como Trump ou Vance.

O Gallup destaca que o papa se saiu bem até entre os republicanos. Em síntese, no plano aspiracional, os americanos parecem querer distância de líderes globais fantasiados de exterminadores do futuro.

A outra forma de olhar tem a ver com o fenômeno Leão 14 em si. Ele é o primeiro papa nascido nos EUA, o que justificaria o favoritismo, porém, tem dupla cidadania (americana e peruana)..

Uma das imagens a circular tão logo seu nome soou na Praça São Pedro foi a de um religioso com botas sujas de lama, enfrentando a enchente numa comunidade pobre e periférica do Peru. Isso o faz testemunha do desencanto que leva milhões de latinos a tentar a vida nos EUA. Diante da caçada desumana de Trump aos imigrantes, Leão 14 já informou de que lado está.

Há um debate em curso nos círculos da igreja sobre se ele deveria usar mais o inglês em público. Fluente também em espanhol e italiano, há quem defenda que o papa se expresse na sua língua nativa, falada por 1,5 bilhão de pessoas, para atingir uma audiência global. O argumento é forte, no entanto, o sucessor de Francisco tem preferido o italiano, língua oficial do pequeno país que governa. É assim: enquanto autocratas praguejam, Leão 14 testa a potência do seu estilo comedido.

Dias atrás, na Jornada Mundial da Juventude, que reuniu um milhão de pessoas em Roma, foi saudado como popstar. O "mundo em guerra" talvez não tenha notado que ele desfilou de papamóvel, pousou de helicóptero, fez selfies, ficou em vigília com os jovens, acordou-os logo cedo com um sonoro "bom dia", rezou missa e exortou: "Estamos com a juventude de Gaza!".

A multidão vibrou. Não à toa a Jornada foi chamada de Woodstock católico e Madonna, na sequência, pediu que Leão 14 visite os palestinos, "antes que seja tarde". Visita que talvez tenha mais chance de ocorrer do que a ida do pontífice ao país natal em 2026, para festejar, ao lado de Trump, o aniversário dos 250 anos dos EUA. O futuro dirá.

Laura Greenhalgh, a autora deste artigo, Jornalista, atuou nas revistas Veja e Época, foi editora-executiva de O Estado de S. Paulo e é sócia-fundadora da Palavra Escrita Editorial. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 15.08.25

Eduardo Bolsonaro diz que EUA podem impor novas sanções e até mais tarifas ao Brasil

Deputado disse em entrevista à Reuters que sobretaxas não serão reduzidas sem concessões do STF

O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) em entrevista à Reuters em Washington - ( Crédito da foto: Jessica Koscielniak/Reuters)

O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) espera novas sanções dos Estados Unidos contra autoridades brasileiras e, possivelmente, até mais tarifas devido ao que chamou de crise institucional deflagrada pelo tratamento do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes ao seu pai, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Em uma entrevista no escritório da Reuters em Washington nesta quinta-feira (14), após reuniões com autoridades norte-americanas de alto escalão, o parlamentar afirmou não ver como o Brasil possa negociar uma redução de tarifas sem concessões do STF.

"Os ministros do Supremo Tribunal têm que entender que perderam o poder", disse ele. "Não existe cenário em que a Suprema Corte saia vitoriosa desse imbróglio todo. Eles estão tendo um conflito com a maior potência econômica do mundo."

A atuação de Eduardo Bolsonaro em Washington o colocou no centro das tensões bilaterais depois que Trump impôs uma tarifa de 50% sobre produtos brasileiros e aplicou sanções financeiras a Moraes, exigindo o fim do que chamou de uma "caça às bruxas" contra o ex-presidente brasileiro.

Jair Bolsonaro está atualmente sendo julgado pelo STF por uma suposta conspiração para reverter as eleições de 2022, que ele perdeu. O ex-presidente nega qualquer irregularidade.

Eduardo Bolsonaro descreveu as tarifas dos EUA sobre produtos brasileiros como carne bovina, café, peixe e calçados como um "remédio amargo" destinado a conter o que classificou de ofensiva legal descontrolada contra o ex-presidente.

"Tenho alertado a todos aqueles que pretendem tratar isso apenas pela ótica comercial. Isso não vai funcionar", disse o deputado. "É por isso que tenho dito: tem que ser dada uma primeira sinalização aos Estados Unidos de que a gente está resolvendo essa crise institucional."

O Departamento de Estado dos EUA aumentou a pressão sobre o Brasil na quarta-feira (13) ao anunciar revogações e restrições de vistos a várias autoridades do país e a seus familiares devido à participação no programa Mais Médicos, que envolvia médicos cubanos.

Eduardo Bolsonaro disse esperar que essas restrições atinjam em breve o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, e, provavelmente, a ex-presidente Dilma Rousseff, que estiveram à frente do programa.

Dilma foi chefe da Casa Civil e sucessora do presidente Luiz Inácio Lula da Silva após seu segundo mandato, que terminou em 2010. Representantes de Padilha e Dilma não responderam imediatamente a pedidos de comentários.

Lula rejeitou as recentes exigências de Trump como uma afronta à soberania nacional e se recusou a "humilhar-se" com uma ligação para a Casa Branca. Em uma entrevista à Reuters na semana passada, ele chamou Eduardo Bolsonaro e seu pai de "traidores" por, segundo ele, incitarem a intervenção de Trump.

O STF está investigando os Bolsonaro por terem recorrido à Casa Branca. Moraes intensificou as medidas contra o ex-presidente, colocando-o em prisão domiciliar e proibindo contato com seu filho nos EUA ou com autoridades estrangeiras.

O deputado afirmou que o setor agropecuário brasileiro, que apoia Bolsonaro, tem se posicionado favoravelmente à sua atuação nos EUA. Segundo Eduardo Bolsonaro, o agro avalia que "vale a pena" eventuais perdas financeiras para que o país possa "resgatar a normalidade institucional".

Na entrevista desta quinta-feira em Washington, Eduardo Bolsonaro disse esperar uma resposta dos EUA a essa repressão, incluindo sanções contra a esposa de Moraes, uma advogada de destaque no Brasil. Bolsonaro também disse que poderia ver "mais" tarifas sobre produtos brasileiros no futuro.

O deputado, que se mudou em março para os Estados Unidos em um esforço para obter o apoio de Trump a seu pai, disse que tem defendido sanções visando Moraes e sua família. Com relação às tarifas, disse que as via como uma "última alternativa".

Ele disse que sanções imediatas dos EUA contra outros ministros do STF parecem improváveis, dado o foco em isolar Moraes, a quem ele chamou de "gangster" e comparou a um "psicopata" e "mafioso".

O STF não respondeu de imediato a um pedido de comentário.

Em uma entrevista à Reuters no mês passado, Jair Bolsonaro disse que esperava que seu filho eventualmente buscasse a cidadania norte-americana para evitar retornar ao Brasil.

Eduardo Bolsonaro recusou-se a comentar os detalhes de seu status de imigração, mas disse que ele e sua família tinham permissão para permanecer nos Estados Unidos "por um bom tempo", e deixou a porta aberta para buscar asilo e, eventualmente, cidadania.

Com relação à corrida presidencial de 2026, disse que o candidato da direita é seu pai, mas que ele estaria disposto a apoiar quem Jair Bolsonaro escolhesse. Falou também que não ambiciona ser presidente da República, mas que aceitaria a "missão", caso fosse a vontade de seu pai. "Se for uma missão dada pelo meu pai... eu sim aceitaria o desafio."

Jair Bolsonaro está inelegível para o pleito de 2026 após ter sido condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Marcelo Teixeira, de Washington - DC e Luciana Magalhães, de S. Paulo - SP com apoio da Reuters para a Folha de S. Paulo (edição impressa), em 14.08.25

terça-feira, 12 de agosto de 2025

Justiça manca

Judiciário brasileiro tem muitos e graves problemas, mas não dá para falar em ditadura da toga como fazem bolsonarist

Sessão plenária do STF, sob a presidência do ministro Luís Roberto Barroso - Pedro Ladeira - 27.nov.2024/Folhapress

O Judiciário brasileiro é muito ruim. É moroso, inconsistente e cheio de vieses. Se levarmos em conta o fator preço --gastamos com o sistema de Justiça 1,33% do PIB, contra uma média internacional de 0,3%--, torna-se sério candidato ao posto de um dos piores do mundo.

O STF é tudo menos inocente nessa história. É dele que vem muito da instabilidade jurídica que marca nosso sistema. E da politização também. Um ministro conseguiu a façanha de votar de modo diametralmente oposto a si mesmo no mesmo processo. Bastou que mudasse de Dilma para Temer o nome do presidente da República que poderia perder o cargo numa interminável ação na Justiça Eleitoral por abuso de poder que ele julgava.

A imagem mostra uma sessão do Supremo Tribunal Federal do Brasil. No centro, há uma mesa com vários juízes e um presidente da sessão, todos em trajes formais. Ao fundo, há uma bandeira do Brasil e um crucifixo na parede. Na frente, há uma plateia com pessoas sentadas, algumas delas com trajes escuros. Em duas telas de projeção, é possível ver informações relacionadas à sessão.

Ainda assim, é preciso ter perdido o juízo para achar que vivemos sob uma ditadura da toga, como afirmam bolsonaristas.

É o próprio conceito de ditadura judicial que se mostra problemático. Praticamente todos os regimes autocráticos instrumentalizam o Judiciário para servi-los. Vimos isso aqui mesmo no Brasil durante os anos de chumbo do período militar. Mas não conheço caso de Judiciário que tenha atropelado Executivo e Legislativo e passado a comandar um país. É que o Judiciário, sem tropas e sem votos, tende a ser o menos resiliente dos três Poderes.

É justamente aí que está o ponto chave. O Judiciário extrai sua legitimidade dos serviços que presta ao país. O STF tem algum crédito por seu papel na contenção do golpe que Jair Bolsonaro e seus aliados tentaram dar. Até algumas das heterodoxias do tribunal se mostram defensáveis, quando se considera que uma Procuradoria-Geral da República (PGR) muito próxima ao bolsonarismo se fazia perigosamente inerte.

Mas a situação mudou. A PGR voltou ao normal, Bolsonaro deixou o poder e está sendo julgado. Não há mais justificativa para ousadias. Mais do que nunca, o STF tem de operar em modo ortodoxo. A corte máxima precisa dar sua contribuição para tornar a Justiça brasileira mais estável, menos partidarizada e mais barata. Para torná-la, enfim, menos ruim.

Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, foi editor de Opinião da Folha de S. Paulo. É autor de "Pensando Bem…" Publicado originalmente em 12.08.25

PJ aquece mercado de trabalho, mas impõe desafios

Atividade por conta própria ganha mais vagas e renda; legislações devem se adaptar às mudanças

Movimentação de candidatos durante Mutirão Nacional do Emprego, em São Paulo (SP) - Rafaela Araújo - 12.ago.24/Folhapress

Em 2014, os celetistas eram 41%, ante cerca de 22% de trabalhadores por conta própria. Atualmente, são 38,1% e 25,2%, respectivamente

Os números do trabalho no Brasil passaram por mudanças relevantes desde a grande recessão de 2014-16, em parte influenciadas pela reforma da CLT aprovada em 2017.

Termos como terceirização e pejotização entraram no centro dos debates político e econômico. Depois de uma década, o cenário demanda que se discutam regulação do trabalho, impostos e contribuições previdenciárias.

Reportagem nesta Folha apresentou dados —oriundos de pesquisa de Nelson Marconi, da Escola de Administração de São Paulo da FGV— que revelam a redução da parcela dos ocupados em contratos regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho.

Ademais, pessoas empregadas por conta própria, segundo a terminologia do IBGE, e com CNPJ têm rendimentos superiores aos daqueles que trabalham nos mesmos setores como celetistas.

Uma pista para explicar tal diferença é o fato de que entre os por conta própria formalizados há pessoas de maior qualificação. A redução do custo tributário e a flexibilidade levaram pessoas a optar por esse regime ou a serem para ele levadas por empresas que as empregavam

A parcela dos empregados em contratos da CLT era de 39,2% em 2012; chegou ao pico de 41% do total dos ocupados em 2014. A taxa dos que trabalhavam por conta própria flutuou pouco em torno de 22,5% de 2012 a 2014, indo a 24,1% no final de 2016. Atualmente, os celetistas são 38,1%, e os por conta própria, 25,2%.

Note-se que, desde 2019, quase todo o crescimento dos primeiros se deu naquela categoria dos que têm registro de CNPJ, com rendimentos mais altos.

Ainda que possa favorecer trabalhadores, a transformação não deixa de trazer questões problemáticas. Os regimes de tributação do Simples e do Microempreendedor Individual (MEI), que facilitam ou incentivam a pejotização —tornar-se pessoa jurídica, ou PJ— com isenções fiscais, também provocam a redução da receita de impostos e contribuições previdenciárias.

Por exemplo, em 2012, o gasto tributário com o Simples equivalia a 0,66% do Produto Interno Bruto; em 2025, a 0,98%.

Tais impactos se somam ao envelhecimento da população como motivos de subfinanciamento da Previdência Social. No caso federal, a receita do INSS passou do patamar de 4,7% do PIB na virada do século para uma média de 5,6% entre 2009 e 2024, ora em 5,5%. Já a despesa cresceu de 5,7% do PIB para 8% do PIB hoje.

A correta reforma de 2017 tornou a CLT menos rígida e obsoleta, facilitando a criação de vagas formais. A legislação trabalhista precisa continuar se adaptando às mudanças no mercado, que incluem ainda o emprego por aplicativos. Igualmente, as normas previdenciárias, alteradas em 2019, precisarão de aperfeiçoamento contínuo nos anos por vir.

Recalibrar a tributação de salários e lucros e delimitar o alcance do Simples e do MEI são temas a serem tratados desde já.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 12.08.25 (editoriais@grupofolha.com.br)

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

O STF e o foro

Proposta restaura o statu quo pelo qual a Câmara controlará a licença e estenderá no tempo os processos


Palácio do STF na praça dos Três Poderes, na região central de Brasília - Pedro Ladeira - 24.abr.25/Folhapress

Antes do início do julgamento da denúncia do PGR sobre Bolsonaro, escrevi aqui neste espaço que o saldo líquido para a corte seria negativo em qualquer cenário. "O julgamento será fatalmente percebido como hiperpolitizado —seu custo proibitivo— em um momento crítico para a democracia brasileira". O pior cenário materializou-se. E a intervenção de Trump no processo representa um choque no sistema. Ela altera o equilíbrio perverso entre parlamentares e juízes no qual há interdependência: a ameaça de impeachment é a contrapartida de ameaças de condenação em ações penais.

Mas ela tem duas consequências que se movem em direção contrária, e que em parte se neutralizam. A primeira é que aumentou os incentivos para a base bolsonarista de tentar aprovar o impeachment de Alexandre de Moraes, recolocar a anistia na agenda e eliminar o foro por prerrogativa de função. O segundo é que o efeito de união nacional contra a interferência externa extravagante e inédita. A mudança no foro, no entanto, poderá prosperar porque ela incorpora à aliança um bloco de deputados para além do PL envolvidos em ações pouco republicanas.

A imagem mostra um grupo de seis pessoas sentadas em um banco de concreto, de costas, observando o Palácio da Alvorada, que é um edifício moderno com grandes janelas e uma estrutura arquitetônica distinta. O céu está nublado e há uma estátua visível à direita. O ambiente é amplo, com cercas de segurança visíveis na frente do palácio.

O foro é a base da jurisdição criminal do STF —que não tem paralelo em outros países, mas tratei disso aqui—, mas foi instrumental para a resiliência democrática malgrado as patologias da corte. A ascensão de Bolsonaro inaugurou uma era de confronto aberto. E aqui há um fato novo crucial: a arbitragem constitucional mudou de chave. Não se trata de conter os excessos do Executivo ou de conflitos interpoderes envolvendo o Legislativo, mas de responder os ataques à própria corte; o que é inédito e deflagrou respostas hiperbólicas num crescendo. O ovo da serpente.

O perfil de agente passivo de arbitragem não dá mais conta face às investidas virulentas (que passaram a incluir planos de assassinato de juízes). Mas esta resposta —concentrada em decisões monocráticas controversas para dizer o mínimo— tem acarretado custos muito elevados para o STF. Gerou perplexidade a participação de membro da corte como parte interessada e julgador. O hiperprotagonismo individual cobrou um preço quanto à legitimidade da corte.

Se o impeachment ou anistia tem baixa probabilidade de sucesso, o foro é diferente: era letra morta porque os membros nunca concediam licença prévia para seus membros serem julgados. A mudança institucional ocorre por choques, como argumentei aqui. O escândalo Hildebrando Paschoal, em 2001, deflagrou a eliminação da licença. O ônus da impunidade passou ao STF desde então. Mas o caso Ronaldo Cunha Lima expôs a manipulação estratégica de foros para garantir impunidade. A resposta do STF foi restringi-lo a ações ligadas ao cargo. Nova mudança em 2025 com o atual julgamento: o foro passa a ser perpétuo, independente do mandato.

A proposta de mudança restaura o statu quo pre Pascoal pelo qual a Câmara controlará a licença (para roubar e matar) e/ou estenderá no tempo os processos, aumentando riscos de impunidade. Eis o dilema. O problema é sistêmico e envolve degradação institucional em virtude, entre outras coisas, do padrão hiperpolitizado e personalístico de nomeações para a corte.

Marcus André Melo, o autor deste artigo, é Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA). Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 11.08.25

De golpista a mártir: o teatro político de Bolsonaro

Com apoio de Trump, o ex-presidente aposta na inversão de papéis para escapar da Justiça – e manter sua base radical em alerta permanente.

Imagens de um Jair Bolsonaro recluso e com tornozeleira surtem o efeito desejado nas redes do bolsonarismo: o de pintar o ex-presidente como salvador da pátria perseguido pelos poderosos, escreve Philipp Lichterbeck (Foto: Eraldo Peres/AP Photo/picture alliance)

Faz parte das estratégias centrais dos novos movimentos de direita, que ao redor do mundo ameaçam a democracia, apresentar a si e seus líderes como vítimas. Donald Trump foi o precursor. O bilionário, que ao longo da vida violou repetidas vezes e de forma comprovada as leis, afirma estar sendo perseguido por um sistema judiciário injusto e politizado. Agora, porém, ele estaria se defendendo. Essa é sua justificativa para os ataques a figuras e estruturas centrais da democracia, que se baseia na divisão do poder e das decisões. Quando essa divisão deixa de existir, também deixa de existir a democracia.

O ex-presidente do Brasil Jair Bolsonaro e seu clã – admiradores de longa data e alunos aplicados do atual presidente dos EUA – tentam copiar essa estratégia de inversão entre agressor e vítima. Querem fazer os brasileiros e o resto do mundo acreditarem que não são eles os autores de uma tentativa de golpe de Estado, mas sim as vítimas de um suposto juiz ditatorial no STF. Já não resta dúvida de que o golpe de Bolsonaro só fracassou devido à resistência de alguns generais que não quiseram embarcar na aventura do capitão.

Diante desse fato, o clã Bolsonaro passou a investir em outra frente de combate: manter sua base mobilizada por meio de confusões calculadas, distrações constantes e imagens nas redes sociais que retratem Bolsonaro como a verdadeira vítima. Era exatamente esse o objetivo quando Bolsonaro, com a ajuda de seus filhos, violou deliberadamente a ordem judicial clara do ministro Alexandre de Moraes de se abster do uso das redes sociais, provocando assim a imposição da prisão domiciliar. Seria ingênuo acreditar que os advogados de Bolsonaro não o alertaram sobre essa consequência.

No círculo de Bolsonaro sabe-se muito bem que a tentativa de golpe permanece abstrata no imaginário da maioria dos brasileiros e, portanto, também facilmente negável. Já as imagens de um ex-presidente com tornozeleira eletrônica e em prisão domiciliar são concretas e permanecem na memória. Nas redes do bolsonarismo (e do trumpismo), hermeticamente fechadas à realidade e a qualquer forma de complexidade, essas imagens têm o efeito desejado: Jair, o salvador do Brasil, está sendo perseguido pelo poder.

Essa narrativa não se destina apenas ao público brasileiro, mas também a Donald Trump e seus capangas, como o secretário de Estado americano Marco Rubio. A tentativa de Trump de exercer pressão sobre o governo Lula por meio da ameaça das tarifas de importação mais altas do mundo não foi bem recebida no Brasil. A sociedade brasileira pode estar politicamente extremamente polarizada – mas a maioria dos brasileiros rejeita tentativas de ingerência externa nos assuntos internos do país; e compreende (espera-se!) o que significa separação de poderes.

Foi um erro de cálculo do clã Bolsonaro imaginar que, com ameaças totalmente desproporcionais, seria possível exercer tamanha pressão a ponto de fazer com que a denúncia contra Bolsonaro fosse arquivada ou que Lula concedesse anistia aos golpistas. No círculo de Bolsonaro isso parece já ter sido compreendido. Agora, trata-se de continuar alimentando a espiral de escalada e manter Trump engajado. O presidente americano deve continuar acreditando que há uma "caça às bruxas" contra Bolsonaro – assim como teria havido contra ele, o grande Donald.

Protagonismo de Moraes acaba servindo aos bolsonaristas

É absolutamente legítimo criticar que o Supremo Tribunal Federal do Brasil seja sobrecarregado com decisões que pertencem ao campo da política. Também é válida a crítica às decisões monocráticas e ao excesso de poder que é atribuído a juízes individuais em casos específicos. O resultado são decisões muitas vezes tidas como impulsivas e excessivas, que colocam os juízes sob fogo cruzado. Cria-se a impressão de que há duelos pessoais entre juiz e acusado. Foi assim no caso Moro vs. Lula; e agora se repete no caso Moraes vs. Bolsonaro.

Por maiores que sejam os méritos de Moraes em defesa da democracia e do Estado de Direito, por não se deixar intimidar por aspirantes a ditador, seu protagonismo involuntário acaba servindo aos bolsonaristas. Pois, naturalmente, apresentam a situação como se Moraes estivesse em uma cruzada pessoal contra Bolsonaro e seus seguidores – quando, na verdade, trata-se de um processo judicial contra criminosos.

Seria bom que o caso Bolsonaro chegasse logo ao fim e que o ex-presidente fosse condenado a uma pena de prisão justamente merecida (que, como de costume no Brasil, ele de todo modo não cumpriria integralmente). Também seria desejável que os conservadores brasileiros se libertassem do feitiço maligno de Bolsonaro e de seu clã. Há tempo demais o país não se ocupa com a modernização necessária em quase todas as áreas (que também não está sendo promovida pelo governo Lula), mas sim com os assuntos familiares e as fantasias de onipotência desse senhor paranoico e medíocre.

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Philipp Lichterbeck, oo autor deste artigo,  queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais da Alemanha, Suíça e Áustria. Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio. / Publicado originalmente por Deutsche Welle, em 11.08.25

Israel mata cinco jornalistas da emissora Al Jazeera em Gaza

Entre os mortos está o conhecido correspondente Anas al-Sharif. Israel admite ataque proposital e diz que repórter "era membro do Hamas", o que foi negado pela rede de TV. Organizações de imprensa repudiam mortes.

O jornalista Anas al-Sharif, que era o principal rosto da Al Jazeera na cobertura da guerra em Gaza (Foto: AL JAZEERA/AP Photo/dpa/picture alliance)

Um conhecido jornalista da emissora de televisão Al Jazeera foi morto juntamente com quatro colegas em um ataque israelense neste domingo (10/08) na Faixa de Gaza. A ação militar direcionada, admitida por Israel, foi condenada por organizações de jornalistas e grupos de direitos humanos.

Os militares israelenses confirmaram ter alvejado e matado Anas al-Sharif, alegando que ele liderava uma célula do Hamas e estava envolvido em ataques contra Israel.

A Al Jazeera rejeitou a alegação. Antes de morrer, Sharif também havia rejeitado acusações de Israel de que ele tinha ligações com o Hamas, grupo fundamentalista considerado uma organização terrorista pela União Europeia (UE), Alemanha, Estados Unidos (EUA) e outros.

ONGs que repudiaram o ataque afirmaram que Sharif se tornou um alvo por causa de suas reportagens na linha de frente da guerra em Gaza e que a alegações de Israel carecem de provas.

"Tentativa de silenciar vozes"

Sharif, de 28 anos, estava entre um grupo de quatro jornalistas da rede catari Al Jazeera e um assistente que morreram em um ataque direcionado contra uma tenda em que estavam perto do Hospital Al-Shifa, no leste da Cidade de Gaza, segundo informações das autoridades de Gaza e da rede Al Jazeera. Um funcionário do hospital disse que o ataque matou outras duas pessoas e danificou a entrada do setor de emergências do complexo hospitalar. 

Chamando Sharif de "um dos jornalistas mais corajosos de Gaza", a Al Jazeera afirmou que o ataque foi uma "tentativa desesperada de silenciar vozes em antecipação à ocupação de Gaza".

Os outros jornalistas mortos foram Mohammed Qreiqeh, Ibrahim Zaher e Mohammed Noufal, informou a Al Jazeera.

O primeiro-ministro do Catar, país de origem da Al Jazeera, Sheikh Mohammed bin Abdul Rahman al-Thani, condenou a morte dos jornalistas. "Esses crimes são inimagináveis" e revelam "a incapacidade da comunidade internacional e de suas leis de impedir essa tragédia".

Prêmio Pulitzer

Sharif fazia parte de uma equipe da Reuters que, em 2024, ganhou o Prêmio Pulitzer na categoria Fotografia de Breaking News pela cobertura da guerra entre Israel e o Hamas.

Os militares israelenses afirmaram em um comunicado que Sharif era o chefe de uma célula do Hamas e "responsável por promover ataques com foguetes contra civis israelenses e tropas das Forças de Defesa de Israel (FDI)", citando informações de inteligência e documentos encontrados em Gaza.

Israel acusa jornalista de ser "terrorista"

Em uma publicação nas redes sociais, as Forças de Defesa de Israel (FDI) justificaram o ataque contra Sharif afirmando que ele era"um terrorista".

"Atingido: O terrorista do Hamas Anas Al-Sharif, que se passou por jornalista da Al Jazeera. Al-Sharif era o líder de uma célula terrorista do Hamas e promoveu ataques com foguetes contra civis israelenses e tropas das FDI. Informações de inteligência e documentos de Gaza, incluindo listas de membros, listas de treinamento de terroristas e registros de salários, comprovam que ele era um agente do Hamas integrado à Al Jazeera. Um crachá de imprensa não é um escudo para o terrorismo", diz a publicação.

De acordo com a rede BBC, há indícios de que Sharif tenha trabalhado num braço de mídia do Hamas antes do conflito, mas não há sinais concretos de que ele tenha "chefiado uma célula terrorista" como Israel alega. Israel também não teve a dizer sobre os outros jornalistas mortos no ataque. 

Foi a primeira vez desde o início da guerra que as forças de Israel assumiram rapidamente a responsabilidade pela morte de um jornalista em um ataque.

Ruínas em Gaza: pouco antes de morrer, Sharif, ganhador do renomado prêmio Pulitzer, reportou que a cidade era bombardeada por mais de duas horas (Foto: Rizek Abdeljawad/Xinhua/IMAGO)

Associações de jornalistas criticam ataque

Um grupo de liberdade de imprensa e representantes das Nações Unidas alertaram anteriormente que a vida de Sharif estava em perigo devido às suas reportagens de Gaza. A relatora especial da ONU, Irene Khan, afirmou no mês passado que as alegações de Israel contra ele eram infundadas.

A Al Jazeera afirmou que Sharif havia deixado uma mensagem nas redes sociais para ser publicada em caso de sua morte, que dizia: "nunca hesitei em transmitir a verdade como ela é, sem distorção ou deturpação, na esperança que Deus seria testemunha por aqueles que permaneceram em silêncio".

Em outubro passado, os militares israelenses identificaram Sharif como um dos seis jornalistas de Gaza que, segundo alegaram, eram membros do Hamas e da Jihad Islâmica Palestina, citando documentos que, segundo eles, mostravam listas de pessoas que concluíram cursos de treinamento e salários.

"A Al Jazeera rejeita categoricamente a descrição das forças de ocupação israelenses de nossos jornalistas como terroristas e denuncia o uso de evidências fabricadas", afirmou a rede em uma declaração na época.

O Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ), que em julho instou a comunidade internacional a proteger Sharif, afirmou em comunicado que Israel não apresentou nenhuma evidência para respaldar suas alegações contra ele.

"O padrão israelense de rotular jornalistas como militantes sem fornecer evidências confiáveis levanta sérias questões sobre sua intenção e respeito à liberdade de imprensa", disse Sara Qudah, diretora do CPJ para o Oriente Médio e Norte da África.

Após o início da guerra em Gaza, em outubro de 2023, Israel proibiu jornalistas internacionais de entrar em Gaza. Desde então, a tarefa de documentar a guerra recaiu quase exclusivamente sobre jornalistas palestinos locais, muitas vezes sob intenso risco.

De acordo com o CPJ, 186 jornalistas foram mortos desde o início da ofensiva militar de Israel.

Em julho,  três grandes agências internacionais de notícias — Reuters, AP e AFP — emitiram uma declaração conjunta expressando "profunda preocupação" com seus jornalistas na Faixa de Gaza, apontando que eles estão cada vez mais incapazes de alimentar a si mesmos e suas famílias.

Última postagem minutos antes de morrer

Sharif, cuja conta no X contava com mais de 500 mil seguidores, publicou na plataforma minutos antes de sua morte que Israel vinha bombardeando intensamente a Cidade de Gaza por mais de duas horas.

O grupo militante palestino Hamas, que controla Gaza, afirmou que o assassinato pode sinalizar o início de uma ofensiva israelense. "O assassinato de jornalistas e a intimidação daqueles que permanecem abrem caminho para um grande crime que a ocupação planeja cometer na Cidade de Gaza", afirmou o Hamas em um comunicado.

O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, afirmou que lançaria uma nova ofensiva para desmantelar os redutos do Hamas em Gaza, onde a crise de fome se agrava após 22 meses de guerra.

"Anas al-Sharif e seus colegas estavam entre as últimas vozes restantes em Gaza a transmitir a trágica realidade ao mundo", afirmou a Al Jazeera.

A assessoria de imprensa do governo de Gaza, administrada pelo Hamas, informou que 237 jornalistas foram mortos desde o início da guerra em 7 de outubro de 2023. O CPJ afirmou que pelo menos 186 jornalistas foram mortos no conflito de Gaza.

Relação conflituosa

Em 2024, Israel baniu o funcionamento da Al Jazeera no país, alegando que sua cobertura representava uma ameaça à segurança nacional.

À época, a proibição veio na esteira de uma lei aprovada em abril pelo Knesset, o Parlamento de Israel, que autorizou o fechamento de emissoras estrangeiras que ameacem a segurança nacional diante da guerra que o país trava contra o Hamas na Faixa de Gaza. No mesmo ano, militares invadiram e fecharam uma sucursal da emissora na Cisjordânia ocupada.

A emissora catari foi fundada em 1996 e se destacou internacionalmente pela sua cobertura também crítica do mundo árabe. Israel, por sua vez, tem uma relação tensa com a organização de mídia, cuja cobertura da guerra em Gaza tem focado especialmente no lado dos palestinos.

Israel costuma acusar o canal de atuar em parceria com o Hamas e fazer propaganda do grupo radical islâmico.

A jornalista Shireen Abu Akleh, que foi morta em 2022 na Cisjordânia ocupada (Foto: Al Jazeera Media Network/AP/picture alliance)

Na última década, A Arábia Saudita e a Jordânia também chegaram a fechar redações locais do canal. O sinal da emissora também já foi bloqueado nos Emirados Árabes Unidos, no Egito, na Síria e no Bahrein.

Um dos poucos veículos de imprensa que seguiu funcionando em Gaza após o início do conflito, em 7 de outubro de 2023 – quando o Hamas perpetrou uma ofensiva terrorista contra Israel –, a Al Jazeera transmitiu imagens e vídeos de bombardeios aéreos mortais e hospitais lotados sob fogo israelense.

Em janeiro de 2024, a emissora já havia acusado as forças de Israel de matarem deliberadamente dois dos seus jornalistas em Gaza. Em 2022, o canal também acusou tropas israelenses de assassinarem a jornalista palestina-americana Shireen Abu Akleh.

Publicado originalmente por Deutsche Welle, em 11.08.25

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Por 30 horas, bolsonaristas realizaram sonho de fechar o Congresso

Para salvar ex-presidente, extrema direita quer forçar guerra entre Legislativo e Judiciário

Os bolsonaristas realizaram por 30 horas o sonho de fechar o Congresso. Na manhã de terça, parlamentares de extrema direita se entrincheiraram nos plenários da Câmara e do Senado. Foi um motim contra a prisão domiciliar de Jair Bolsonaro, decretada na véspera pelo ministro Alexandre de Moraes.

A rebelião evoluiu para um sequestro do Parlamento. Os amotinados avisaram que só permitiriam a retomada dos trabalhos mediante três exigências: anistia aos golpistas, fim do foro especial e impeachment do ministro Moraes.

Porta-voz dos sequestradores, Flávio Bolsonaro apresentou a pauta como “pacote da paz”. Na verdade, o senador quer empurrar o Legislativo para uma guerra contra o Judiciário. Tudo em nome da impunidade do pai.

O pacote dos bolsonaristas é triplamente enganoso. O objetivo da anistia não é salvar os autoproclamados “manés” do 8 de Janeiro, que invadiram e depredaram prédios públicos. A ideia é melar o julgamento do ex-presidente, chefe e beneficiário da trama golpista.

A proposta de acabar com o foro privilegiado não tem nada de moralizante. O que a extrema direita quer é livrar o capitão e seus generais do alcance do Supremo. Enviada à primeira instância, a investigação teria que voltar à estaca zero. Isso também ocorreria com dezenas de inquéritos que apuram desvios em emendas parlamentares.

A ideia do impeachment de Moraes não passa de uma agenda de vingança. Os bolsonaristas pregam a cassação do ministro para retaliá-lo por decisões e votos no Supremo. Aberto o precedente, ele seria apenas o primeiro na lista de expurgos.

O motim terminou na noite de quarta, após um acordo cujos termos só devem ser conhecidos nas próximas semanas. Da arruaça, ficarão as imagens de senadores enrolados em correntes e deputados de esparadrapo na boca, como se estivessem proibidos de falar. Dizendo-se censurados, eles cassaram a palavra de colegas que pretendiam usar a tribuna para comentar o fato da semana: a prisão de Bolsonaro.

Bernardo Mello Franco, o autor deste artigo é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 08.08.25.

Golpismo explícito

A punição dos que sequestraram o Congresso a título de livrar a cara de Jair Bolsonaro tem de ser exemplar. Não se pode premiar com a leniência quem atenta contra o funcionamento de um Poder

Motim a bordo (Crédito da foto:Metropóles)

O País assistiu, estarrecido, ao sequestro das Mesas Diretoras da Câmara e do Senado por parlamentares bolsonaristas que decidiram rasgar o Regimento de ambas as Casas, afrontar a Constituição e manchar a história do Congresso fazendo-o refém de uma chantagem. Durante mais de 30 horas – que não deveriam ter durado nem 30 minutos –, os trabalhos legislativos foram suspensos na marra por uma súcia de deputados e senadores que puseram seus mandatos a serviço da impunidade de Jair Bolsonaro, e não do melhor interesse do Brasil. O que se viu não foi nada menos do que uma nova tentativa de golpe no coração da democracia representativa.

Chamemos as coisas pelo nome. Não há outra forma de descrever o que aconteceu em Brasília. Impedir o livre trabalho do Congresso não é outra coisa senão um atentado contra o Estado Democrático de Direito. Pior ainda quando a violência é perpetrada de dentro da instituição democrática por excelência por indivíduos que, malgrado terem sido legitimamente eleitos, agiram como traidores da mesma democracia que os consagrou nas urnas. Um absurdo.

Obstrução parlamentar é prática legítima em todas as democracias maduras. Porém, o que os vândalos bolsonaristas praticaram naquelas horas de caos não foi obstrução, mas coerção. Não foi protesto contra a prisão domiciliar de Bolsonaro, foi delinquência. Em última análise, não foi política, foi seu exato oposto: a imposição de vontades por meio da força bruta.

Os presidentes da Câmara, Hugo Motta, e do Senado, Davi Alcolumbre, falharam miseravelmente em impedir o sequestro. A Polícia Legislativa deveria ter sido acionada minutos após a paralisação dos trabalhos legislativos. Ulysses Guimarães, um dos mais altivos deputados a tomar assento na presidência da Câmara, não teria hesitado em fazê-lo. Já Motta e Alcolumbre, lamentavelmente, mostraram-se menores do que suas cadeiras ao se omitirem por tempo demasiado longo enquanto as Casas que presidem eram violadas por uma turba de parlamentares que, na prática, comportou-se como uma facção criminosa a serviço de Bolsonaro.

Passada a tibieza inicial, o único caminho republicano que se abre diante de Motta e Alcolumbre, se preocupados estiverem com suas biografias, é a restauração da autoridade moral e política do Congresso. E isso só será possível por meio de duas ações. Em primeiro lugar, a imediata e rigorosa punição de cada deputado e cada senador que participou do sequestro do Legislativo federal. O que eles fizeram é intolerável para um país que se pretende sério. Em segundo lugar, os presidentes da Câmara e do Senado devem enterrar definitivamente as demandas apresentadas pelos delinquentes a título de resgate. Avançar com a proposta de anistia a Bolsonaro e outros golpistas ou com o impeachment desarrazoado do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes equivalerá a uma capitulação. Não se negocia com delinquentes. A democracia não se rende – ou deixa de ser democracia.

Por ora, é desconhecido o inteiro teor da barganha que Motta e Alcolumbre fizeram com os sequestradores travestidos de parlamentares para a retomada de seus assentos. Mas, se há um cálculo político que ambos têm de fazer agora, é este: caso não punam exemplarmente os radicais bolsonaristas, sinalizarão que sua tática bandida é aceitável e, consequentemente, pode ser repetida no futuro. Por óbvio, não pode. Em uma democracia digna do nome, não é normal o que essa gente fez.

O Congresso precisa dar uma resposta clara e firme aos bolsonaristas irresignados com os ritos democráticos: no Estado Democrático de Direito não há espaço para aventuras autoritárias que pretendem subverter as instituições em nome de interesses particulares de quem quer que seja. Deputados e senadores têm o dever de defender os interesses da sociedade e da Federação, e não do líder de um movimento político que cada dia mais se desvela como seita.

É hora de Motta e Alcolumbre, do alto dos cargos que ocupam, fazerem uma escolha entre a leniência que estimula a baderna e a firmeza institucional que a debela. A Câmara e o Senado precisam se erguer em defesa de sua própria autoridade. O País precisa de paz. E ela só virá se o Congresso não se ajoelhar diante dos que pretendem sabotá-lo.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 08.08.25