sábado, 8 de novembro de 2025

CPI do Crime Organizado deve também mirar políticos e 'andar superior', diz presidente de comissão

Colegiado deve prestar serviço à população, afirma senador Fabiano Contarato (PT-ES)

Para parlamentar, é possível conciliar defesa de direitos humanos e combate firme a delitos

Fabiano Contarato, 59, Senador pelo Espírito Santo, fez carreira na área de segurança pública. Foi delegado da Polícia Civil, diretor-geral do Detran-ES e corregedor-geral da Secretaria de Estado de Controle e Transparência. É mestre em sociologia política pela Universidade Vila Velha e professor de direito penal.

O presidente da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) do Crime Organizado, Fabiano Contarato (PT-ES), afirma que o colegiado deve mirar políticos e o "andar superior" que estimulam o avanço do crime organizado no país.

Ao defender uma apuração que alcance a corrupção também dentro das instituições, diz que a CPI precisa apresentar soluções concretas e não se transformar em palanque político às vésperas das eleições de 2026.

Contarato, que é filiado ao PT e foi delegado de polícia, afirma que o partido tem passado por um processo de reflexão sobre segurança pública. Ele defende que é possível conciliar a defesa dos direitos humanos com o combate firme ao crime organizado.

Sobre o presidente Lula (PT), que falou em matança ao se referir à operação no Rio de Janeiro que deixou 121 mortos, inclunindo quatro policiais, o senador diz que o petista expressou preocupação com o alto número, mas ponderou que é preciso cautela antes de qualquer julgamento.

A CPI foi instalada nesta terça-feira (4) e terá como relator o senador Alessandro Vieira (MDB-SE). O senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS) será o vice-presidente.

O que esperar da CPI?

O crime organizado tem várias frentes que podem ser exploradas: espaço territorial, que envolve milícia, facção, tráfico de entorpecentes, aspecto econômico. Se você olhar para os aspectos da corrupção, também há a possibilidade até mesmo do envolvimento de políticos. Eu acho que a CPI tem que prestar um serviço à população. Tanto eu, quanto senador Alessandro Vieira [relator], temos perfil mais técnico [delegado], de ser mais pragmático, mais objetivo. Então, eu espero que ela aponte soluções.

Como evitar que a CPI vire palanque político às vésperas das eleições de 2026?

Não estou querendo falar porque eu estou no Senado, mas o perfil é mais, vamos dizer, mais respeitoso. Então, eu acho que esse tipo de comportamento tem como você impedir, parar e falar 'olha, isso não é o objeto da CPI, nós não podemos perder tempo com relação a isso'. Então, eu acho que tudo depende da forma como você vai conduzir. É claro que vai ter discurso, vai ter senador que vai estar lá para fazer recorte para a rede ou para falar do partido, do governo. Mas eu tenho consciência tranquila de que estarei ali para tentar contribuir e evitar.

E importante mencionar que eu sou progressista, mas eu não confundo ser progressista com ser permissivo com quem comete crime, principalmente crime organizado, principalmente organização criminosa, principalmente com lavagem de dinheiro, com corrupção, com envolvimento de pessoas de elevado poder aquisitivo. Eu acho que dá para conciliar as duas coisas. Passou da hora de a gente entender, principalmente o campo progressista, que debater segurança pública não é uma pauta exclusiva da direita, é uma pauta de todos nós.

A oposição apresentou requerimento para ouvir membros de facções. O sr. pretende colocar isso em votação?

Pautar é prerrogativa e poder discricionário da presidência. Eu vou ter toda cautela. Eu vou seguir o plano de trabalho. Isso [ouvir membro de facções] não está sendo debatido no desenrolar desta CPI. Eu tenho que pegar efetivamente a mão estendida dessas organizações criminosas, não só quem está lá na ponta ou quem já foi preso. Quer dizer que isso não vai acontecer lá no futuro? Eu não sei, mas não sei qual é a relevância para chamar. Isso nem sequer está no radar da comissão.

O que o sr. achou da declaração do presidente Lula ao classificar a situação no Rio como matança?

Eu acho que o Congresso tem que debater de forma mais responsável o tema da segurança pública. Esse assunto não pode ser exclusivamente da direita, eu faço parte da Comissão de Segurança Pública do Senado e estavam aumentando lá a pena do estelionato para 19 anos de reclusão.

Eu falei assim: "Olha, a pena do homicídio é de 6 a 20. O estelionato é praticado sem violência e sem grave ameaça à pessoa. Como fica a proporcionalidade?". Eu acho que falta o envolvimento de todos os partidos, independentemente de coloração partidária, para tratar do assunto com mais responsabilidade.

Como membro do PT, o que o sr. acha do discurso do partido sobre segurança pública?

Eu acho que está havendo uma reflexão do partido. Eu acho que ele está repensando esses valores, esse tema.

O que o sr. achou da declaração do presidente Lula ao classificar a situação no Rio como matança?

Eu acho que a reflexão do presidente é de preocupação, ele é um chefe de Estado. Eu sempre falo, eu sou delegado, o policial tem que ser visto como garantidor de direitos, e não como violador de direitos. Talvez ele não tenha sido feliz na colocação quando fez esse pré-julgamento. Eu, sinceramente, não sei quais foram as circunstâncias de como aquela operação se desencadeou naquele contexto que resultou nessa quantidade de óbitos.

Só quem está lá efetivamente é quem sabe. Imagine você entrando lá e sendo recebido por pessoas fortemente armadas. E isso deve ser aprofundado e apurado no inquérito policial, que vai ter a participação da Defensoria, do Ministério Público.

Mas eu não posso, aí a fala é minha, partir da premissa de já determinar que houve uma execução sumária. Eu prefiro esperar, pela cautela e pela prudência, que seja apurado. E, aí sim, se for apurado que houve pessoas ali que não reagiram e ainda assim houve execução, aí tem que se atribuir responsabilidade penal, civil e administrativa para qualquer pessoa que assim tenha praticado.

Como foi a operação na sua avaliação?

O objetivo era prender o Doca, o segundo no Comando Vermelho. Ele não foi preso. Foi restituída a pacificação para a comunidade? Houve a ocupação social ali pelo poder público? Nós tivemos um saldo de 121 mortos. O resultado, para mim, é mais uma operação que resultou em óbitos de policiais e também de civis.

Qual o legado o sr. espera que a CPI deixe?

O que a gente pode dar é uma resposta eficiente de mudança naquilo que seja de competência do Poder Legislativo. No aspecto da responsabilidade, buscar essa união entre União, estados e municípios, para que eles possam trabalhar em um sistema de cooperação mútua. Agora, não tem como falar que a comissão vai apurar a omissão ou o comportamento do governador A, B ou C. Ela tem que fazer esse diagnóstico, tem que ser propositiva, tem que apresentar projeto de lei, legislar, aprovar as leis e fazer esse trabalho de buscar uma interação entre os poderes.

Eu espero que a gente alcance, por exemplo, o andar superior também de quem, de qualquer forma, tenha concorrido para estimular o crime organizado, seja em facções, seja em milícias, lavagem de dinheiro, corrupção, não importa. Esse tema é tão complexo porque ele envolve também a corrupção dentro dos âmbitos das instituições.

Entrevista concedida a Raquel Lopes para a Folha de S. Paulo (edição impressa). Publicada originalmente em 07.11.25.

'Primeiro, conquistamos Manhattan'

Promessas de novo prefeito configuram programa tão ousado quanto arriscado

Mamdani não pode candidatar-se a presidente, mas lançou desafio a Trump

O prefeito eleito de Nova York, Zohran Mamdani, em uma entrevista coletiva após sua vitória - Kylie Cooper - 5.nov.25/Reuters

"Condenaram-me a vinte anos de tédio/ por tentar mudar o sistema por dentro/ Estou chegando agora, estou chegando para recompensá-los/ Primeiro, conquistamos Manhattan, depois conquistamos Berlim". O compositor Leonard Cohen escreveu o verso em 1987, para uma canção que definiu como tributo a "nossos terroristas, Jesus, Freud, Marx, Einstein". Zohran Mamdani nasceria apenas quatro anos depois, mas seu triunfo em Nova York parece a muitos uma confirmação: só o radicalismo salva.

Trump colheu derrotas em série na terça passada, um reflexo da queda livre de sua aprovação desde a posse (de +18% a -1% entre brancos, de -8% a – 37% entre hispânicos e de -37% a -76% entre negros). As vitórias democratas na Virginia e em Nova Jersey inscrevem-se na equação das pesquisas. Nova York, porém, descortinou a opção estratégica que divide os democratas: Cuomo, o pragmatismo centrista, ou Mamdani, o giro à esquerda. Interpreta-se, febrilmente, o resultado como lição.

Homem fala em púlpito com placa azul que diz 'A NEW ERA for NEW YORK CITY'. Microfones estão posicionados à frente, e fundo mostra relevo arquitetônico.

Um ano atrás, Trump obteve na cidade a maior votação de um candidato presidencial republicano desde 1988, alcançando 30% dos votos. Às vésperas da eleição municipal, o presidente abandonou o candidato de seu partido para endossar Cuomo, contra o "lunático esquerdista" Mamdani.

Numa leitura superficial, pretendia ajudar a eleger o "mal menor". Uma segunda leitura sugere manobra mais sofisticada: como seu apoio é visto como kriptonita pela maioria dos eleitores democratas, a intenção seria incinerar o centrista a fim de exibir o rosto de Mamdani como a face do conjunto do Partido Democrata.

Mamdani descreve-se como um "democrata socialista". Em 2020, no rastro dos protestos de rua contra o assassinato de George Floyd, qualificou a polícia de Nova York como "racista, anti-queer e uma ameaça à segurança pública", clamando pelo "desfinanciamento" do departamento policial municipal. De lá para cá, desculpou-se e assegurou que repudia aquelas opiniões. Os democratas, centristas ou esquerdistas, concluíram corretamente que suas políticas identitárias fracassaram, traçando a via do retorno de Trump à Casa Branca. Mas o consenso termina aí.

O populismo nacionalista e reacionário de Trump recuperou uma classe trabalhadora desprezada pela "nova esquerda" pós-marxista. Bernie Sanders, o pretendente democrata batido por Hillary Clinton, não se cansa de propor a restauração da "velha esquerda": a luta por direitos sociais e econômicos. A campanha de Mamdani, embalada pelo colorido dos filmes de Bollywood e impulsionada por bandos de jovens engajados nas redes sociais, ofereceu uma embalagem contemporânea a um conceito antigo: populismo econômico.

Congelamento dos aluguéis de um milhão de apartamentos, gratuidade nos transportes e creches municipais, mercados públicos subsidiados –as promessas configuram um programa tão ousado quanto arriscado. Seus custos, Mamdani não escondeu, serão cobertos por forte elevação de impostos. À memória de não poucos democratas terá emergido a imagem de Jeremy Corbyn, o socialista britânico que encantou o Partido Trabalhista até levá-lo, em 2019, à mais humilhante derrota eleitoral desde 1935.

Mamdani não pode candidatar-se a presidente, mas lançou o desafio a Trump: "aumente o volume do som". Manhattan, primeiro, depois os EUA. A esquerda democrata dobra sua aposta.

Demétrio Magnoli, o autor deste texto é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP. Publicado originalmente pela Folha de S.Paulo, em 07.11.25 

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Primeira Turma do STF tem maioria para rejeitar recurso de Bolsonaro: o que acontece agora?

Moraes, o relator do caso na 1ª Turma do STF, é quem vai definir onde Bolsonaro ficará preso

Bolsonaro ao retornar à prisão domiciliar, depois de ser internado em um hospital para cirurgia, em setembro (Crédito: Reuters)

Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria para rejeitar o recurso apresentado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro contra sua condenação por tentativa de golpe de Estado, a 27 anos e três meses de prisão em regime fechado.

O julgamento, realizado no plenário virtual, começou nesta sexta-feira (7/11) e os ministros têm até a sexta-feira da próxima semana (14/11) para apresentar seus votos.

Primeiro a se manifestar, o relator do processo, Alexandre de Moares, votou pela rejeição do recurso e foi acompanhado integralmente por Flávio Dino e Cristiano Zanin.

Só falta se manifestar a ministra Cármen Lúcia. Único a votar pela absolvição de Bolsonaro em setembro, o ministro Luiz Fux solicitou sua transferência para a Segunda Turma e, por isso, não participa desse julgamento.

A expectativa de juristas é que o pedido da defesa será rejeitado por unanimidade, tornando mais próximo o início do cumprimento de sua pena.

Esse primeiro recurso apresentado é chamado de embargos de declaração, que serve para esclarecer possíveis erros, omissões e contradições do julgamento.

Moraes, porém, considerou que o recurso não buscou sanar esses problemas, mas contestar o mérito da condenação.

"Não merecem guarida os aclaratórios que, a pretexto de sanar omissões da decisão embargada, reproduzem mero inconformismo com o desfecho do julgamento", diz o voto.

"O acórdão condenatório demonstrou que Jair Messias Bolsonaro atuou, dolosamente, para estruturar um projeto golpista e de ruptura das instituições democráticas", diz ainda Moraes.

Moares, Dino e Zanin também votaram contra os recursos de outros seis condenados no processo: Alexandre Ramagem, Almir Garnier, Anderson Torres, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e Walter Braga Netto.

Mesmo que a Primeira Turma acompanhe Moraes e rejeite o recurso, ainda não é possível saber quando Bolsonaro começará a cumprir sua pena, já que a defesa deve tentar apresentar novos recursos.

Juristas ouvidos pela BBC News Brasil projetam diferentes cenários.

Para o ex-defensor público federal Caio Paiva, é possível que a Primeira Turma determine o cumprimento imediato da pena, assim que rejeitar esse primeiro recurso.

Segundo ele, isso pode ocorrer se os ministros avaliarem que os embargos de declaração não têm consistência e buscaram apenas atrasar o início da punição.

Coordenador do CEI, uma plataforma de cursos jurídicos, ele faz um acompanhamento sistemático de decisões dos ministros do STF e afirma que a Corte tem sido pouco paciente com recursos considerados "protelatórios".

Após ler o recurso de Bolsonaro, Paiva avalia que a defesa repetiu argumentos já rejeitados pela Corte ao longo do processo.

"O STF tem jurisprudência reiterada no sentido de não admitir os embargos [recursos] para rediscutir o mérito do caso penal ou para revelar mero inconformismo com o desfecho do julgamento", disse à reportagem.

"Em casos como esse, o STF tem o costume de reconhecer que houve abuso no direito de recorrer, determina que se certifique o trânsito em julgado e, portanto, a pena pode ser imediatamente executada. Me parece que é o que será feito nesse caso", continuou.

Em seu voto, porém, Moraes não se manifestou pela imediata execução da prisão.

Já o criminalista Gustavo Badaró, professor de Direito Processual Penal da USP, acredita que a Corte vai esperar eventuais novos recursos de Bolsonaro antes de determinar o cumprimento da pena.

"Já teve casos em que o Tribunal considerou que os embargos eram protelatórios e determinou o início do cumprimento da pena, independentemente de julgamento de interposição de outros embargos, mas isso normalmente ocorre quando são embargos de declaração nos embargos de declaração, ou terceiro embargos de declaração. No primeiro, já declarar isso, acho estranho", afirma Badaró.

Além de possíveis novos embargos de declaração, a defesa ainda deve tentar apresentar embargos infringentes, que servem para questionar decisões tomadas sem unanimidade, mas é provável que o Supremo rejeite esse recurso sem nem analisar seu conteúdo.

A jurisprudência atual da Corte estabelece que apenas decisões das Turmas que tenham ao menos dois votos divergentes podem ser contestadas por embargos infringentes. E, no caso de Bolsonaro, o placar ficou em 4 votos a 1 por sua condenação.

Atualmente, o ex-presidente está preso preventivamente em sua casa em Brasília.

Quando houver o trânsito em julgado (esgotamento dos recursos), o ministro Alexandre de Moraes vai decidir se mantém a prisão domiciliar, devido aos problemas de saúde do condenado, ou se determina que Bolsonaro cumpra a pena em um presídio, numa cela especial, deferência reservada a ex-presidentes.

Outra possibilidade é que ele fique preso em uma sala da Superintendência da PF no Distrito Federal, como ocorreu com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que ficou 580 dias detido na Superintendência da PF em Curitiba, quando foi condenado na Operação Lava Jato. O petista foi solto em 2019, quando o STF mudou o entendimento sobre prisão após condenação em segunda instância. Depois, seu processo foi anulado pela Corte.

Na quinta-feira, Moraes decidiu não atender ao pedido do governo do Distrito Federal (GDF) para que fosse feita uma avaliação médica de Bolsonaro para determinar se ele teria condições de cumprir pena no sistema prisional do DF.

A principal prisão distrital é o Complexo Penitenciário da Papuda, onde outros políticos famosos já estiveram presos no passado, como o ex-ministro petista José Dirceu e Valdemar da Costa Neto, presidente do PL.

O GDF é governado por Ibanês Rocha (MDB), aliado de Bolsonaro. Ao rejeitar a solicitação, Moraes disse que ela não era pertinente ao processo. A expectativa é que o pedido de avaliação médica seja analisado pelo STF apenas após o esgotamento dos recursos, quando for decretado o cumprimento da pena.

"Considerando a ausência de pertinência, desentranhe-se a petição STF nº 158.408/2025 dos autos", diz a breve decisão do ministro.


O que diz o recurso apresentado por Bolsonaro?

Apoiadores de Bolsonaro protestaram por anistia, mas proposta perdeu força no Congresso (Crédito: Reuters)

No novo recurso, a defesa repete argumentos já apresentados ao longo do processo e questiona pontos da decisão que o condenou.

Os advogados argumentam, por exemplo, que o ex-presidente não pode ser considerado responsável pelos ataques de 8 de janeiro de 2023 porque centenas de pessoas que estavam no local no momento da invasão das sedes dos Três Poderes já foram condenadas por "dolo direto".

Dessa forma, sustenta a defesa, como a Corte entendeu que essas pessoas agiram com clara vontade de cometer crimes, Bolsonaro não poderia ser considerado culpado de suas ações.

Além disso, os advogados dizem que o ex-presidente estava fora do Brasil naquele dia e não deu qualquer ordem para a invasão.

"O acórdão [documento com a decisão da Corte pela condenação], dada a máxima vênia, esforça-se para colocar o Embargante como uma figura onipresente nos fatos narrados sem, contudo, demonstrar ações concretas e as provas correspondentes", afirmam os advogados nos embargos de declaração.

Moraes, no entanto, considerou não restar dúvidas da liderança do ex-presidente na tentativa de golpe. Ele destaca em seu voto a atuação dos condenados para dar respaldo e orientação aos acampamentos em frente a ações militares, como o que ficou por semanas em frente ao QG do Exército após a eleição de 2022, de onde partiram os manifestantes no 8 de janeiro.

"Ressalta-se, portanto, que a autoria delitiva de Jair Messias Bolsonaro ficou amplamente demonstrada com relação aos atos antidemocráticos praticados em 8/1/2023, tendo sido exaustivamente fundamentada por esta Suprema Corte, não havendo qualquer omissão e contradição no acórdão condenatório proferido por esta Suprema Corte", escreveu o ministro.

Em outro trecho, Moraes aponta a atuação de Bolsonaro ao contestar o resultado da eleição e buscar alternativas autoritárias a sua derrota para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

"Destaca-se, por exemplo, que mesmo após o recorrente ter recebido um aconselhamento jurídico do então Advogado-Geral da União confirmando a inexistência de qualquer fraude eleitoral, o embargante permaneceu atuando na consecução do objetivo golpista e prosseguiu na elaboração da minuta de decreto golpista e na tentativa de cooptação dos Comandantes das Forças Armadas", diz, em outro trecho.

No recurso rejeitado por Moraes, a defesa também volta a argumentar que não há provas de participação do ex-presidente em supostas ações executórias para o golpe de Estado, como o plano Punhal Verde e Amarelo, que previa o assassinato do então presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, e de Alexandre de Moraes, no final de 2022.

Segundo a acusação, esse plano foi impresso no Palácio do Planalto por Mario Fernandes, então secretário executivo da Secretaria-Geral da Presidência, e depois levado por ele ao Palácio da Alvorada, onde Bolsonaro estava.

Os advogados, por sua vez, dizem que não há prova de que os dois se reuniram no Alvorada e o então presidente recebeu e validou o plano.

"O registro de entrada no Palácio do Alvorada demonstra apenas e tão somente isso: a ida deste funcionário do governo, dentre tantos, ao Alvorada. O que, contudo, não se confunde e não é prova nem de que o ex-Presidente de fato tenha recebido o codenunciado e, muito menos, do teor de eventual conversa ou reunião", diz o recurso.

A defesa volta a dizer, também, que a condenação deve ser anulada por ter se baseado na colaboração premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. Para os advogados, a delação foi feita sob pressão e, por isso, é ilegal.

Outro argumento repetido pelos advogados no recurso é que a defesa de Bolsonaro foi cerceada devido à falta de prazo suficiente para analisar o grande volume de material produzido pela acusação.

Caso todos esses argumentos pela anulação da condenação sejam recusados, a defesa pede que a Primeira Turma reduza a pena estabelecida para Bolsonaro, argumentando que a Corte não fundamentou adequadamente o tamanho da punição fixada.

Todas as solicitações da defesa foram rejeitadas por Moraes.

O ex-defensor federal Caio Paiva chama atenção para o tamanho do recurso, com 85 páginas.

"Os embargos de declaração buscam apenas sanar obscuridade, dúvida, contradição ou omissão na decisão. A petição da defesa do ex-presidente Bolsonaro é bem fundamentada, mas o seu tamanho revela a fuga da essência dos embargos. Muito incomum uma petição de embargos declaratórios com essa extensão".

Na sua leitura, questões levantadas como cerceamento de defesa e contradições na delação de Mauro Cid "já foram debatidas à exaustão" no processo.

"Foram, sim, debatidas, embora não conforme a defesa gostaria", reforçou.

Alexandre de Moraes (Crédito,Reuters)

A condenação de Bolsonaro

Bolsonaro foi considerado pelo STF como líder de uma organização criminosa, com militares, policiais e aliados, que atuou para impedir a transição de poder após as eleições de 2022, vencidas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O ex-presidente foi declarado culpado de cinco crimes: organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça e deterioração de patrimônio tombado.

Além de Bolsonaro, os outros sete réus na ação penal também foram condenados: Alexandre Ramagem, Almir Garnier, Anderson Torres, Augusto Heleno, Mauro Cid, Paulo Sérgio Nogueira e Walter Braga Netto.

O único que não recorreu da condenação foi o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, que, por ter feito uma delação premiada no processo, foi condenado a dois anos de prisão em regime aberto. Sua defesa pediu que sua pena seja considerada extinta, por ele já ter cumprido dois anos e cinco meses em medidas restritivas de liberdade.

Para o procurador-geral da República, Paulo Gonet, a organização criminosa agiu em várias frentes desde 2021 para tentar executar o plano de ruptura, desde discursos públicos para descreditar o sistema eleitoral até supostas pressões sobre o Alto Comando das Forças Armadas para apoiar um decreto de cunho golpista — a chamada "minuta do golpe".

Gonet citou ainda na denúncia movimentos para tentar atrapalhar o andamento da eleição, citando os bloqueios da Polícia Rodoviária Federal (PRF) no dia da eleição em 2022, em especial em regiões com eleitores favoráveis ao adversário Lula.

A PGR destacou ainda os ataques de 8 de janeiro de 2023 como o ato final da tentativa golpista.

Ao fim do julgamento, o STF considerou haver provas suficientes das acusações da PGR e condenou os réus.

Mariana Schreiber, de Brasília - DF para a BBC News Brasil, em 07.11.25

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

'Aumente o volume': o discurso do futuro prefeito de NY que desafia Trump

Zohran Mamdani foi eleito prefeito de Nova York na noite de terça-feira (4/11), nas primeiras eleições de grande impacto do segundo mandato de Donald Trump.


Mamdani entrou na disputa no ano passado praticamente como uma figura desconhecida do público, com pouco dinheiro e sem apoio institucional do Partido Democrata.

Ele se tornará o prefeito mais jovem da cidade desde 1892, o primeiro muçulmano e o primeiro nascido na África.

Em discurso após a vitória, o prefeito eleito de Nova York provocou o atual presidente dos Estados Unidos:

"Donald Trump, eu sei que você está assistindo. Só tenho quatro palavras para você: Aumente o volume!", exclamou o presidente eleito, deixando claro que não hesitará em confrontar o presidente americano.

"Para chegar a qualquer um de nós, você terá que passar por cima de todos nós", prosseguiu.

"É assim que vamos parar não só Trump, mas é assim que vamos parar quem vier depois dele."

  • Anthony Zurcher
  • Role,Correspondente da BBC News na América do Norte, em 05.11.25

Bolsonaro na Papuda? Governo do DF pede avaliação médica do ex-presidente às vésperas de possível ordem de prisão

Outros seis réus condenados no mesmo processo de Bolsonaro também podem ter o cumprimento de pena decretado em breve, inclusive três ex-generais do Exército que foram ministros no governo Bolsonaro: Augusto Heleno, Walter Braga Netto, e Paulo Sérgio Nogueira.

Bolsonaro voltou à prisão domiciliar em sua residência em Brasília horas depois de ser internado em um hospital privado para cirurgia. (Crédito, EPA/Shutterstock)

O governo do Distrito Federal (GDF) solicitou ao Supremo Tribunal Federal (STF) que seja feita uma avaliação médica do ex-presidente Jair Bolsonaro para determinar se ele teria condições de cumprir pena no sistema prisional do DF.

A principal prisão distrital é o Complexo Penitenciário da Papuda, onde outros políticos famosos já estiveram presos no passado, como o ex-ministro petista José Dirceu e Valdemar da Costa Neto, presidente do PL, partido de Bolsonaro.

O pedido foi feito dois dias antes de a Primeira Turma do STF começar a julgar um recurso apresentado pelo ex-presidente contra sua condenação a 27 anos e três meses de prisão por tentativa de golpe de Estado.

Quem vai decidir se autoriza a avaliação médica é o ministro Alexandre de Moraes, relator do processo criminal que resultou na condenação de Bolsonaro.

Atualmente, o ex-presidente está preso preventivamente em sua casa em Brasília.

Ainda não está claro quando será determinado o início do cumprimento da pena, o que poderia levá-lo à Papuda. Considerando a forma como a Corte julga recursos criminais, pode ser que a Primeira Turma já determine a prisão após rejeitar esse primeiro recurso da defesa. Outro cenário possível é que a Corte dê espaço para novo recurso, antes de determinar o trânsito em julgado do processo.

Outros seis réus condenados no mesmo processo de Bolsonaro também podem ter o cumprimento de pena decretado em breve, inclusive três ex-generais do Exército que foram ministros no governo Bolsonaro: Augusto Heleno, Walter Braga Netto, e Paulo Sérgio Nogueira.

A iminência das prisões é citada no pedido do GDF para a avaliação médica do ex-presidente.

"Considerado a proximidade do julgamento dos recursos da Ação Penal nº 2668, o que leva a possibilidade de um ou mais réus serem recolhidos no Sistema Penitenciário do Distrito Federal, solicitando que o apenado JAIR MESSIAS BOLSONARO seja submetido à avaliação médica pela equipe especializada, a fim de que seja realizada avaliação de seu quadro clínico e a sua compatibilidade com a assistência médica e nutricional disponibilizada nos estabelecimentos prisionais desta Capital da República", diz o pedido da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Distrito Federal.

O GDF é governado por Ibanês Rocha (MDB), aliado de Bolsonaro.

Quando houver o trânsito em julgado (esgotamento dos recursos), o ministro Alexandre de Moraes vai decidir se mantém a prisão domiciliar, devido aos problemas de saúde do condenado, ou se determina que Bolsonaro cumpra a pena em um presídio, numa cela especial, deferência reservada a ex-presidentes.

Atualmente, ele está preso preventivamente em sua casa em Brasília. No pedido de avaliação médica, o GDF cita já ser de conhecimento público que o condenado "foi submetido a cirurgias na região abdominal".

A Secretaria de Estado de Administração Penitenciária argumenta ainda que, durante a prisão domiciliar do ex-presidente, ele vem recebendo avaliações médicas em casa e precisou de internação hospitalar em setembro.

"A solicitação revela-se oportuna, uma vez que, durante o monitoramento presencial do réu, verificou-se que, em algumas oportunidades, foram realizadas avaliações médicas presenciais no próprio local de monitoramento, evitando-se o deslocamento para escoltas emergenciais".

"Registra-se, ainda, que, em 16/09/2025, foi necessária a realização de escolta emergencial de Jair Messias Bolsonaro ao Hospital DF Star, onde o monitorado permaneceu internado durante a noite".

O recurso que será julgado pelo STF

O recurso apresentado pela defesa de Bolsonaro argumenta que há omissões, erros e contradições no processo que o condenou, como falta de provas de sua atuação criminosa e cerceamento da defesa.

O julgamento do recurso será realizado no plenário virtual da Primeira Turma a partir de 7 de novembro, e os ministros terão até o dia 14 de novembro para apresentar seus votos.

Único a votar pela absolvição de Bolsonaro no julgamento realizado em setembro, o ministro Luiz Fux solicitou sua transferência para a Segunda Turma e, por isso, não julgará o recurso.

O cenário mais provável é que Alexandre de Moraes, Flávio Dino, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin rejeitem o pedido do ex-presidente para rever sua condenação.

No entanto, mesmo que essa previsão se confirme, ainda não é possível saber quando Bolsonaro começará a cumprir sua pena de 27 anos e três meses de prisão em regime fechado. Isso porque a defesa deve tentar apresentar novos recursos.

O primeiro recurso apresentado por Bolsonaro é do tipo embargos de declaração, que serve para esclarecer possíveis erros, omissões e contradições do julgamento.

A defesa ainda deve tentar apresentar embargos infringentes, que servem para questionar decisões tomadas sem unanimidade, mas é provável que o Supremo rejeite esse recurso sem nem analisar seu conteúdo.

A jurisprudência atual da Corte estabelece que apenas decisões das Turmas que tenham ao menos dois votos divergentes podem ser contestadas por embargos infringentes. E, no caso de Bolsonaro, o placar ficou em 4 votos a 1 por sua condenação.

Outra opção da defesa é apresentar novos embargos de declaração, a depender de como a Primeira Turma decidirá sobre os primeiros embargos.

A Corte, porém, pode avaliar que esses recursos têm caráter apenas protelatório, ou seja, de tentar adiar o início do cumprimento da pena. Nesse cenário, a Turma pode rejeitar novos recursos e determinar o trânsito em julgado (esgotamento dos recursos) do caso, o que daria início a execução da pena do ex-presidente.

Os argumentos da defesa de Bolsonaro

Apoiadores de Bolsonaro protestaram por anistia, mas proposta perdeu força no Congresso (Reuters)

No novo recurso, a defesa repete argumentos já apresentados ao longo do processo e questiona pontos da decisão que o condenou.

Os advogados argumentam, por exemplo, que o ex-presidente não pode ser considerado responsável pelos ataques de 8 de janeiro de 2023 porque centenas de pessoas que estavam no local no momento da invasão das sedes dos Três Poderes já foram condenadas por "dolo direto".

Dessa forma, sustenta a defesa, como a Corte entendeu que essas pessoas agiram com clara vontade de cometer crimes, Bolsonaro não poderia ser considerado culpado de suas ações.

Além disso, os advogados dizem que o ex-presidente estava fora do Brasil naquele dia e não deu qualquer ordem para a invasão.

"O acórdão [documento com a decisão da Corte pela condenação], dada a máxima vênia, esforça-se para colocar o Embargante como uma figura onipresente nos fatos narrados sem, contudo, demonstrar ações concretas e as provas correspondentes", afirmam os advogados nos embargos de declaração.

A defesa também volta a argumentar que não há provas de participação do ex-presidente em supostas ações executórias para o golpe de Estado, como o plano Punhal Verde e Amarelo, que previa o assassinato do então presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, e de Alexandre de Moraes, no final de 2022.

Segundo a acusação, esse plano foi impresso no Palácio do Planalto por Mario Fernandes, então secretário executivo da Secretaria-Geral da Presidência, e depois levado por ele ao Palácio da Alvorada, onde Bolsonaro estava.

Os advogados, por sua vez, dizem que não há prova de que os dois se reuniram no Alvorada e o então presidente recebeu e validou o plano.

"O registro de entrada no Palácio do Alvorada demonstra apenas e tão somente isso: a ida deste funcionário do governo, dentre tantos, ao Alvorada. O que, contudo, não se confunde e não é prova nem de que o ex-Presidente de fato tenha recebido o codenunciado e, muito menos, do teor de eventual conversa ou reunião", diz o recurso.

A defesa volta a dizer, também, que a condenação deve ser anulada por ter se baseado na colaboração premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. Para os advogados, a delação foi feita sob pressão e, por isso, é ilegal.

Outro argumento repetido pelos advogados no recurso é que a defesa de Bolsonaro foi cerceada devido à falta de prazo suficiente para analisar o grande volume de material produzido pela acusação.

Caso todos esses argumentos pela anulação da condenação sejam recusados, a defesa pede que a Primeira Turma reduza a pena estabelecida para Bolsonaro, argumentando que a Corte não fundamentou adequadamente o tamanho da punição fixada.

Moraes é quem vai definir onde Bolsonaro ficará presos, caso recursos sejam rejeitados (Reuters)

Bolsonaro foi considerado pelo STF como líder de uma organização criminosa, com militares, policiais e aliados, que atuou para impedir a transição de poder após as eleições de 2022, vencidas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O ex-presidente foi declarado culpado de cinco crimes: organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça e deterioração de patrimônio tombado.

Além de Bolsonaro, os outros sete réus na ação penal também foram condenados: Alexandre Ramagem; Almir Garnier; Anderson Torres; Augusto Heleno; Mauro Cid; Paulo Sérgio Nogueira; e Walter Braga Netto.

Para o procurador-geral da República, Paulo Gonet, a organização criminosa agiu em várias frentes desde 2021 para tentar executar o plano de ruptura, desde discursos públicos para descreditar o sistema eleitoral até supostas pressões sobre o Alto Comando das Forças Armadas para apoiar um decreto de cunho golpista — a chamada "minuta do golpe".

Gonet citou ainda na denúncia movimentos para tentar atrapalhar o andamento da eleição, citando os bloqueios da Polícia Rodoviária Federal (PRF) no dia da eleição em 2022, em especial em regiões com eleitores favoráveis ao adversário Lula.

A PGR destacou ainda os ataques de 8 de janeiro de 2023 como o ato final da tentativa golpista.

Ao fim do julgamento, o STF considerou haver provas suficientes das acusações da PGR e condenou os réus.

  • Mariana Schreiber
  • Role,Da BBC News Brasil em Brasília, em 05.11.25

  • Role,Da BBC News Brasil em BrasíliaMariana Schreiber, de Brasília - DF para a BBC News Brasil, em 05.11.25

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

‘Nenhum bandido importante no Brasil mora em uma favela’, diz especialista em segurança pública

Ricardo Balestreri, que tem atuação federal e estadual na área, critica lógica de combate em operação contra o crime organizado e alerta que facções estão cada vez mais ricas e infiltradas nas instituições

Ricardo Balestreri: ex-secretário nacional de segurança pública — Foto: Leandro Santana/Agência Pará

Ex-secretário nacional de Segurança Pública, e com atuação também nessa área nos governos dos estados de Goiás e do Pará, Ricardo Balestreri reconhece que as facções criminosas exercem “poder tirânico” sobre largas porções do território do Rio e que “não se pode permitir o domínio desses bandidos, exercido com armas longas”, que foram apreendidas na operação — 91 fuzis foram tirados das mãos dos criminosos pelas forças de segurança.

Para o pesquisador, porém, o poder público vem se escorando somente numa lógica de combate, sem dar sequência a iniciativas que poderiam levar à retomada efetiva de territórios.

Balestreri, que é coordenador do núcleo de Urbanismo Social e Segurança Pública do Insper, enfatiza que combater o crime organizado “apenas na favela é enganar a população” — segundo ele, a operação Carbono Oculto mostrou arrecadação bilionária em setores formais da economia. A seguir os principais trechos da entrevista.

O governo do Rio costuma argumentar que as operações ostensivas são necessárias para “cortar capim”, isto é, frear periodicamente o avanço do crime organizado. Esse argumento se sustenta em uma operação como a de anteontem?

Combater o crime dessa maneira desinteligente é como bater em massa de bolo: ela só vai crescer cada vez mais. O discurso do poder público é de que “é melhor isso do que não fazer nada”, que não pode “ficar de braços cruzados”, mas eles na verdade não estão fazendo nada, exceto espetáculo. A única consequência é o pânico na população humilde e trabalhadora. E isso não é culpa da polícia. Ela acaba sendo usada por maus gestores, que inclusive expõem as vidas dos próprios policiais.

Eu lamento que os policiais, muitos deles sem expertise, sejam mergulhados nessa dinâmica de guerra, em operações mal planejadas. Algumas pessoas se irritam quando digo isso, mas o domínio territorial do crime, embora lembre uma guerra, não é uma situação de guerra. O problema de abordar segurança com a lógica da guerra é que reduz essas mortes a meros “danos colaterais”. E mesmo assim, se o poder público ainda pudesse dizer que “pragmaticamente o sacrifício foi necessário”… Mas não pode, porque são milhares de operações grandes, e o Rio está cada vez pior.

Operações como esta do Rio ajudam de alguma forma a punir integrantes do crime organizado?

Tivemos uma operação recente, a Carbono Oculto (do governo federal, em parceria com o governo de São Paulo), que teve apreensões e não deu nenhum tiro. Todo criminoso tem que ser punido. Os bandidos que dominam as favelas do Rio exercem um poder tirânico e maltratam a população empobrecida no seu dia a dia. Eles precisam ser combatidos, mas é preciso estar atento às consequências sociais, econômicas, aos serviços públicos, e até ao turismo que essas operações causam.

O número de mortos, superando até o de episódios como o massacre do Carandiru, se explica pela força das facções ou pelo tipo de abordagem das forças de segurança nesse episódio?

O crime está cada vez mais armado, mais rico, mais infiltrado nas instituições. E todos esses mais de cem bandidos abatidos, supondo que sejam todos bandidos, amanhã estarão repostos no crime por outros jovens de 14, 15, 16 anos. O que explica esse número de mortos é uma busca frenética e não razoável por causar impacto na opinião pública. Não estou amaciando para bandido, defendo inclusive que as penas para faccionados sejam agravadas, mas o fato é que combater o crime só na favela é enganar a população.

De que maneira?

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública publicou uma pesquisa recente sobre o que é conhecido da receita anual do crime organizado no Brasil: mais de R$ 140 bilhões desde 2022, ou R$ 30 bilhões por ano. A maior parte disso estava no mercado de combustíveis, com R$ 60 bilhões. Afirmo com convicção que nenhum bandido realmente importante no Brasil mora em uma favela, com esse nível de arrecadação. A população mostra um cansaço legítimo com a falta de segurança, mas o governo deveria se guiar pela sobriedade, e não pela busca do impacto ou por cortinas de fumaça.

O Rio já ensaiou tentativas para retomar territórios no longo prazo, como as UPPs do governo Cabral, que fracassaram, e mais recentemente o Cidade Integrada, iniciado em 2022 e que até agora não vingou. O que deveria ser feito em paralelo ou em alternativa à ostensividade policial?

Se o crime penetra na favela, é porque o Estado de Direito se retirou. A experiência das UPPs, em seu início, foi um breve sopro de inteligência em meio a três ou quatro décadas de políticas desastrosas. A polícia entrou corretamente, mas sozinha. E o modelo cresceu sem ter condições de funcionamento. As políticas de segurança precisam de escala, mas com sobriedade. Em geral, as iniciativas não se sustentam quando são feitas de forma apressada para mostrar algo à opinião pública às vésperas de eleições.

O discurso de combate à criminalidade a qualquer custo vem pautando eleições em vários países da América Latina, como El Salvador e Equador. No Brasil, ele também está mais forte hoje?

Aqui a rotina de megaoperações vem desde a década de 1990, e vejo que muita gente segue propagando essa ideia, que mexe com emoções desordenadas, mas compreensíveis, da população. É uma ilusão. O caso de El Salvador é sintomático de que a falta de solução para o crime organizado não se explica por falta de brutalidade. Houve um clamor popular para resolver um problema antigo, e o atual presidente, Nayib Bukele, propôs a fórmula de instituir um regime sem direito ao contraditório, de certa forma “vender a alma” da democracia em prol da segurança. Mas o que se vê hoje, e que foi relatado em documentos do governo dos EUA, é que o governo de Bukele mantém negociações por baixo dos panos com o crime organizado, sem a população saber.

Entrevista concedida a Bernardo Mello Franco publicada originalmente pelo O GLOBO, em 30.10.25

Três razões pelas quais o catolicismo está voltando à moda

A combinação de jovens, baby boomers e tecnologia confere à prática da fé um novo significado público.

Leão XIV, na quarta-feira, na Praça de São Pedro, em Roma. (Guglielmo Mangiapane - REUTERS)

Apesar das estatísticas indicarem uma tendência contrária há anos, é muito provável que a Espanha esteja começando a registrar um ressurgimento significativo da prática do catolicismo. Isso é mais do que um mero renascimento estético e público; é um movimento silencioso, porém profundo. Três fatores, entre outros, convergem para tornar isso possível: a chegada das gerações Baby Boomer e X em idades em que estudos sociológicos demonstram o aumento da religiosidade; uma revolução tecnológica que — com suas vantagens e desvantagens — multiplica o acesso à educação, à oração e à comunidade; e uma juventude que, paradoxalmente, por praticamente não ter tido contato prévio com o catolicismo, se aproxima dele sem preconceitos e com genuína curiosidade.

As grandes gerações nascidas entre o final da década de 1950 e a década de 1970 — os baby boomers e o início da Geração X — estão entrando em uma fase da vida em que questões sobre o sentido da existência e a necessidade de comunidade ganham maior importância. De acordo com o Pew Research Center, na maioria dos países, as pessoas mais velhas são mais religiosas e a prática religiosa tende a aumentar com a idade. Por exemplo, nos Estados Unidos, a idade mediana dos cristãos chegou a 55 anos em 2024, e a frequência a cultos religiosos aumenta significativamente após os 60 anos. Na Espanha, onde a geração dos baby boomers é particularmente numerosa, esse fenômeno já pode ser observado em um aumento visível na participação paroquial, no voluntariado e em uma vida litúrgica mais ativa, que inclui o renascimento de práticas devocionais que haviam caído em desuso nas últimas décadas. De uma perspectiva puramente matemática, isso não é apenas uma questão de idade, mas também de números absolutos. Muitas pessoas estão simultaneamente chegando a um momento crucial em suas vidas, no qual um senso de transcendência volta a ser relevante.

O segundo grande motor de mudança é a tecnologia. Nos últimos anos, e especialmente desde a pandemia, a Igreja Católica passou por uma verdadeira transformação digital em todo o mundo. O que começou como uma necessidade emergencial — missas transmitidas pelo YouTube, grupos de oração no Zoom, catequese via WhatsApp — tornou-se uma forma estável de presença pastoral. Hoje, qualquer católico, em qualquer idioma, pode acessar homilias, retiros, formação teológica e acompanhamento espiritual pelo celular. O exemplo paradigmático é, sem dúvida, o aplicativo Hallow, criado nos EUA e disponível em mais de 150 países. Em poucos anos, alcançou 14 milhões de usuários cadastrados e registrou mais de um bilhão de downloads de seu conteúdo. Na Espanha — seguindo os passos de seus pares americanos, que estão vários anos à frente — numerosos bispos e padres embarcaram com sucesso no que se conhece como evangelização digital . No entanto, esse progresso apresenta um desafio sem precedentes: o risco de os pastores atenderem às necessidades individuais. Em outras palavras, a abundância de opções online permite que os fiéis escolham padres, bispos ou comunidades de acordo com suas preferências ideológicas ou estéticas, alterando assim a ordem hierárquica estabelecida. No entanto, os defensores desse modelo argumentam que ele facilita o alcance de públicos muito diversos, desde os idosos que não podem se deslocar até os jovens que descobrem a fé por meio do TikTok, Spotify ou YouTube.

O terceiro fator é precisamente uma juventude sem ideias preconcebidas sobre o catolicismo. Num país onde uma grande parte dos jovens com menos de 30 anos não recebeu instrução religiosa significativa, o catolicismo é apresentado como algo quase exótico. De acordo com o Pew Research Center, nos EUA apenas 45% dos jovens entre os 18 e os 29 anos identificam-se como cristãos, e na Europa o número é ainda menor; mas esta falta de autoconhecimento está a ser vista como uma oportunidade por uma parte significativa da Igreja. Por não terem crescido sob um catolicismo socialmente obrigatório, muitos jovens aproximam-se da Igreja sem qualquer aversão prévia, atraídos pelo testemunho pessoal, pelo silêncio da oração numa época ruidosa ou pela sua mensagem ética.

A tudo isso se soma a influência cultural de um renovado interesse pela espiritualidade. Na última década, filmes, séries e documentários com temas católicos têm sido muito bem recebidos, trazendo de volta ao debate público questões sobre Deus sob diversas perspectivas, sejam elas favoráveis ​​ou contrárias. " Sundays" é apenas o exemplo mais recente de títulos como " The Two Popes" , "The Young Pope" , "Jesus of Nazareth" , "The Chosen" , "Conclave " e " Free ".

Nesse contexto, a Espanha encontra-se numa posição singular. A sociedade é inequivocamente laica — segundo o Pew Research Center, apenas 23% dos europeus consideram a religião “muito importante” em suas vidas —, mas as condições sociológicas, tecnológicas e culturais favorecem a possibilidade de um crescimento real da religiosidade na esfera pública. Não é por acaso que dioceses com forte presença digital ou pastoral adulta estejam registrando um aumento nas conversões, nos cursos de formação e na participação comunitária. A maturidade demográfica como base sólida, a tecnologia como rede de disseminação e uma renovação juvenil comprometida apontam para uma mudança no discurso público sobre o catolicismo nos próximos anos.

Jorge Marirrodriga, jornalista, para o EL PAÍS, em 30.10.25

Como fuzis importados chegam às mãos do crime organizado no Brasil

Um dos destaques anunciados pelo governo foi a apreensão de ao menos dezenas de fuzis — o número oficial é de 93, mas o governador falou em mais de 100.

Policiais escoltam um suspeito preso durante a Operação Contenção, na favela da Vila Cruzeiro, no complexo da Penha, no Rio de Janeiro, em 28 de outubro de 2025 (Crédito,AFP via Getty Images)

Uma megaoperação policial feita no Rio de Janeiro nesta terça-feira (28/10), resultou em ao menos 81 prisões e 64 mortes. Outras 54 mortes estão sendo investigadas, de acordo com o governador do Estado, Claudio Castro.

A ação, que envolveu cerca de 2,5 mil policiais, tinha como alvo a facção Comando Vermelho, nos complexos do Alemão e da Penha, na capital.

Castro comemorou os resultados com uma imagem publicada em suas redes sociais, que mostra algumas dessas armas apreendidas, e divulgou um número ainda maior do que o informado pela polícia.

"O Rio de Janeiro termina o dia com uma imagem que fala por si: mais de 100 fuzis apreendidos pelas Polícias Civil e Militar."

Mas como esses fuzis chegam em grandes quantidades às mãos do crime organizado?

O aumento da apreensão de fuzis

Fuzis representam uma pequena parte do total de armas apreendidas no país, mas o número total de apreensões vem crescendo.

É o que aponta um artigo com dados inéditos sobre o tema, dos pesquisadores Bruno Langeani e Natalia Pollachi, publicado em setembro deste ano no periódico Journal of Illicit Economies and Development.

Esse tipo de arma, explicam os pesquisadores, é crucial para que as facções criminosas exerçam poder de controle dos territórios, possam ameaçar moradores, consigam enfrentar outras facções e tenham poder de fogo contra a polícia.

"Como resultado, as forças estatais são cada vez mais obrigadas a utilizar veículos blindados e grandes contingentes para entrar nessas áreas, enfrentando frequentemente uma resistência armada significativa", explicam.

"O fuzil traz uma preocupação adicional em áreas densamente povoadas. O tipo de ferida que a bala de fuzil produz é muito mais grave, com menor chance de sobrevivência", diz Natália Pollachi, diretora de projetos no Instituto Sou da Paz e uma das autoras do artigo.

"Fuzis têm como característica o disparo com muita energia, que pode atingir o alvo com precisão a mais de 500 metros de distância, além da possibilidade de disparo automático ou semiautomático, muito mais perigoso", diz.

A pesquisa analisou dados de apreensões de armas entre 2019 e 2023 no país, tanto de policiais estaduais quanto da federal.

O número de fuzis apreendidos foi de 1.139, em 2019, para 1.650 em 2023, o mais mais alto na série histórica analisada.

Só no Rio de Janeiro foram 797 armas do tipo apreendidas em um único ano. No país são apreendidas mais de 100 mil armas por ano, segundo os dados oficiais.

De onde vieram os fuzis?

Infografia mostra os caminhos de contrabando de fuzis para o Brasil, destacando os Estados Unidos como principal fabricante

Os pesquisadores apontam ao menos três origens conhecidas dos fuzis: os fabricados no Brasil e desviados, os importados e aqueles fabricados de forma clandestina, tanto com peças importadas quanto produzidas dentro do país.

A pesquisa diz que alterações legislativas feitas durante o governo Bolsonaro flexibilizaram as regras de quem pode comprar armas no Brasil, inclusive de calibre antes restritos aos militares.

Além de ter impulsionado o mercado legal, dizem os pesquisadores, houve também "um notável desvio" para o ilegal.

"Ao longo de quatro anos foi permitido para pessoas cadastradas como CACs [sigla para um registro oficial de armas por pessoas físicas: Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador] comprar fuzis. Uma única pessoa podia comprar 30 armas", diz Pollachi.

A facilidade teria auxiliado no desvio para o crime. "Nem todo mundo tem acesso a um esquema de tráfico internacional, mas qualquer um tem um primo com o CPF limpo. É muito mais fácil cooptar um laranja do que participar de um esquema de tráfico."

Essas alterações foram revogadas em 2023, mas quem comprou armas nos anos anteriores não tem obrigação de devolvê-las. Houve também uma alteração sobre quem monitora os CACs: a atribuição foi transferida do Exército para a Polícia Federal.

Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) identificou, a pedido do Congresso, uma série de fragilidades nesse controle.

Um dos problemas encontrados foi que o Exército não checava a veracidade de informações apresentadas por quem faz os registros. Também não havia informações sobre fiscalizações feitas aos clubes de tiro.

Fabricação nos EUA e Europa

A Polícia Militar do Rio também fez um levantamento com base nas armas que apreendeu em 2024 (sem qualquer relação com a atual operação, portanto) e identificou que praticamente todas (94,7%) tinham sido fabricados no exterior, principalmente nos Estados Unidos (60% das apreensões). Outros países citados são Israel, Alemanha, Áustria e República Tcheca.

"Por isso, a importância de a indústria produtora de armas também fazer parte do enfrentamento ao crime organizado, com a gerência sobre o caminho dos armamentos e atuando em conjunto com o governo federal no controle do tráfico internacional de armas", disse o governador Claudio Castro, em resposta aos dados, quando foram divulgados.

Os dados nacionais apontam também predominância dos EUA, com fabricantes como Colt e Armalite na lista das mais aprendidas.

Uma rota comum vista por autoridades é importar armas de forma legal dos EUA via Paraguai, e depois transportá-las ilegalmente para o Brasil.

Houve também casos de envio direto dos EUA ao Brasil, como quando policiais apreenderam 60 fuzis no Aeroporto Internacional do Rio (Galeão), em 2017. O valor de cada arma era estimado em R$ 70 mil.

O arsenal incluía modelos AR-10 e AK-47 e estava disfarçado em contêineres com aquecedores para piscinas. A carga foi enviada por um brasileiro que morava nos EUA, dono de empresa de importação e exportação de produtos.

Outro fluxo envolve empresas sediadas em países europeus. Em dezembro de 2023, a Reuters noticiou que autoridades brasileiras e paraguaias fizeram operações para apreender armas enviadas da Europa para serem vendidas a grupos criminosos no Brasil.

Uma empresa baseada no Paraguai era responsável por importar armas de Croácia, Eslovênia e República Tcheca.

Depósito com fuzis fabricados de forma clandestina, no interior de São Paulo

Fabricação clandestina e comércio de peças avulsas

Um detalhe que chama a atenção nos dados de apreensões é que uma parte das armas é registrada sem um fabricante ou origem.

Para os pesquisadores, isso pode ter acontecido por falta de treinamento dos profissionais que fazem o registro das apreensões ou ainda por serem armas fabricadas de forma clandestina.


No levantamento feito pela Polícia do Rio (com dados de apreensões de 2024) há a informação de que parte das armas apreendidas no Estado chegou em peças avulsas ao custo de cerca de R$ 6 mil. Depois de montado, o fuzil passa a valer cerca de R$ 50 mil.

Uma das formas de fabricação clandestina é a importação das peças separadas dos EUA.

"Lá as peças são vendidas com pouco controle. Há até kits para você montar seu próprio fuzil, sem número de série", diz Natalia Pollachi, do Instituto Sou da Paz.

Um dos sites vistos pela BBC News Brasil mostrava até mesmo uma "promoção de Halloween" para comprar um desses kits por US$ 400 (cerca de R$ 2,1 mil).

Há ainda montagem de armas com peças fabricadas de forma artesanal. Se no passado isso era feito de forma rudimentar, hoje esse modelo também se especializou, com peças sendo produzidas em máquinas profissionais.

Um caso recente desse modelo foi registrado por policiais no interior de São Paulo em agosto deste ano.

As autoridades encontraram uma fábrica clandestina em Santa Bárbara d'Oeste, que se apresentava como uma produtora de peças aeronáuticas. A investigação descobriu a fabricação usava "equipamentos industriais de alta precisão."

Luiz Fernando Toledo* da BBC News Brasil, em Londres (UK). (*Gráficos feitos por Caroline Souza, da Equipe de Jornalismo visual da BBC News Brasil)

sábado, 18 de outubro de 2025

Apuração sobre venda de sentenças no STJ fortalece o Judiciário

Inquérito é essencial num momento em que a Justiça está vulnerável à infiltração do crime organizado

O prédio do Superior Tribunal de Justiça (STJ) — Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo

As investigações da Polícia Federal (PF) sobre um esquema de venda de sentenças criado em gabinetes de ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) são graves não apenas pelos fatos que têm revelado, mas também pelo que significam no atual contexto de combate ao crime organizado.

Já seriam preocupantes, por si sós, as evidências de ilegalidade em sentenças da penúltima instância do Judiciário, abaixo apenas do Supremo Tribunal Federal (STF). Quando se multiplicam evidências da infiltração de organizações criminosas na economia formal, a investigação precisa servir de referência para proteger o Judiciário de interferências externas. Só uma Justiça íntegra terá capacidade de enfrentar as máfias.

Investigação: PF identifica três núcleos em esquema de venda de sentenças judiciais no STJ

O inquérito tramita em sigilo no STF e é presidido pelo ministro Cristiano Zanin. Tem como alvos advogados, empresários e ex-servidores de gabinetes dos ministros Og Fernandes, Isabel Gallotti e Nancy Andrighi. É fundamental destacar que a PF não encontrou nenhuma evidência de envolvimento dos ministros — eles não são sequer investigados. Tudo transcorreu, de acordo com o que se apurou até agora, sem o conhecimento deles.

A PF divide a investigação em três núcleos. O primeiro apura a atuação no esquema de servidores do STJ, incluindo ex-chefes de gabinete dos ministros. O segundo trata de advogados e lobistas, responsáveis por aliciar clientes para o esquema, principalmente no agronegócio e entre donos de empresas em processo falimentar. O terceiro núcleo reúne os beneficiados pela compra de sentenças.

Operação: PF cumpre mandado de buscas na casa de lobista investigado em esquema de venda de sentenças do STJ

Em apenas um caso, revelado pelo blog da colunista Malu Gaspar, do GLOBO, há menção a um parente de ministro, a advogada Catarina Buzzi, filha do ministro Marco Buzzi, acusada de ter recebido uma transferência de R$ 1,12 milhão, segundo indícios descobertos no celular do lobista Andreson de Oliveira Gonçalves. Relatório preliminar da PF identifica o advogado Roberto Zampieri, assassinado em Cuiabá (MT) em dezembro de 2023, e o empresário Haroldo Augusto Filho como próximos de Catarina. O conteúdo do celular de Zampieri foi essencial para o início das investigações — há nele uma mensagem de Catarina que despertou a suspeita da PF. Haroldo, sócio de consultoria especializada no agronegócio, é investigado sob a acusação de comprar sentenças também no Tribunal de Justiça de Mato Grosso.

Caso se confirmem ramificações do esquema em Cortes estaduais, o inquérito ganhará ainda mais relevância para ajudar a blindar a Justiça contra a influência de organizações criminosas. O Judiciário sairá mais forte das investigações se elas elucidarem os fatos de modo exaustivo e se, confirmados os crimes, as condenações forem exemplares.

Editorial d'O Globo, em 18.10.25

Como preencher uma vaga no STF

Há dois flamenguistas, um corintiano, um palmeirense e um são-paulino, um placar justo. Mas santistas ocupam 18% das vagas

O Supremo Tribunal Federal (STF) — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

É só abrir vaga no STF que o assunto volta à tona: em nome da representatividade, passou da hora de ser indicada uma mulher preta.

Está implícito que deva ser uma mulher preta com reputação ilibada e notável saber jurídico — critérios assaz subjetivos, mas é o que diz a lei. Para ter o direito de ser a última a errar — e fazer jus a um assessor que lhe sirva cafezinho, carregue os processos e a ajude a vestir e desvestir a toga —, a aspirante ao cargo deve ter caráter íntegro e conduta ética e moral irrepreensível, além de reconhecido domínio do cipoal das nossas leis. E, claro, ser brasileira nata e ter entre 35 e 70 anos (alguma objetividade tinha de haver). Não há menção a outros atributos.

Segundo o Censo 2022, as mulheres representam 51,5% da população brasileira. No STF, não chegam a um quinto disso, considerando a composição da corte até ontem, quando Luís Roberto Barroso deixou o cargo. Pela lógica da proporcionalidade, faltam cinco mulheres (além da ministra Cármen Lúcia), não apenas uma. O próximo presidente poderá indicar outros três juízes e, a menos que haja renúncias, a meta da representatividade feminina não será atingida antes de 2030 (a probabilidade de algum dos atuais ministros se declarar trans é relativamente remota).

Existe também a questão étnica: pelo mesmo Censo, somos um país com 55,5% de pretos e pardos — proporção que chega, com muita boa vontade, a 18% no STF. Os próximos quatro indicados precisariam ser afrodescendentes — ou alguns dos atuais ocupantes se autodeclararem não brancos. Os indígenas ou de origem asiática carecem de lobby para pleitear a cota de1% das vagas.

Mas não são só esses os grupos sub-representados. Temos hoje sete sudestinos (estatisticamente, deveriam ser apenas quatro), dois nordestinos (deveriam ser três), um sulista (era para ser o dobro), um centro-oestino (ok!) e nortista, nenhum (deveria haver um número infinitamente maior: um).

Em termos de religião, o desequilíbrio aumenta: são nove católicos, um evangélico e um judeu. No fiel da balança, era para haver seis católicos (há 50% mais), três evangélicos (só há um terço disso), um praticante de outras religiões (de matriz africana, judeus, muçulmanos, budistas etc.) e um ateu (ou agnóstico, que é um ateu ainda em estágio de negação).

Nem só de gênero, crença ou origem étnica e geográfica vive a representatividade. Há dois flamenguistas, um corintiano, um palmeirense e um são-paulino no STF — um placar justo. Mas santistas ocupam 18% das vagas, mesmo correspondendo a apenas 3% da população.

Vinte e sete por cento da Corte são de Touro; 18%, de Sagitário; 18%, de Escorpião — Peixes, Áries, Aquário e Capricórnio têm 9% cada. Não há um único ministro de Leão (não, o Fux é de Touro), de Libra (que ironia, não?), Virgem, Gêmeos ou Câncer. Isso significa que o plenário é composto por 36% de terra, 27% de água, 27% de fogo e só 9% de ar. Depois não entendem quando o ambiente fica irrespirável.

Proponho esta questão para o próximo Enem:

— Considerando que, graças ao esforço de seus cabos eleitorais, Donald Trump e Eduardo Bolsonaro, o atual presidente tem grandes chances de ser tetraeleito em 2026, e que um de seus compromissos é com a diversidade e a representatividade, de que gênero, cor, orientação sexual, time, signo, região e religião devem ser os seus indicados ao STF?

Não, não precisa levar em conta que o único critério real será o da fidelidade canina. A pergunta é meramente retórica.

Eduardo Affonso, o autor deste artigo, é Arquiteto e Cronista. Publicado originalmente n'O Globo, em 18.10.25

Ascensão e queda de um mau militar

O capitão que fez política nos anos 1980 e 1990 como uma espécie de sindicalista de policiais e militares de baixa patente jamais compreendeu a liturgia republicana


Há 35 anos perícia da Policia Federal mostrou que Bolsonaro fez plano de por bombas em quartéis. Acima, reprodução do croqui no plano para explodir a adutora do guandu, no Rio e Janeiro.

A trajetória pública de Jair Bolsonaro mostra como a História, de vez em quando, pode ser tomada de assalto por personagens medíocres, cuja irrelevância de origem pode ser explorada, no momento oportuno, como plataforma para um projeto de poder.

Desde que passou à reserva remunerada do Exército, em 1988, por meio de um arranjo condescendente com a indisciplina e o espírito insurrecto que marcaram sua passagem pela Força Terrestre, Bolsonaro construiu uma longeva carreira política – a bem da verdade, um bem-sucedido empreendimento familiar – com base na irresignação com o advento da Nova República e na permanente hostilidade aos valores democráticos consagrados pela “Constituição Cidadã”. Mais de três décadas depois, o ex-presidente e capitão da reserva foi condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a 27 anos e três meses de prisão por ter liderado uma conspiração golpista que pretendeu subverter o resultado legítimo da eleição presidencial de 2022.

Após a condenação penal na Justiça comum, Bolsonaro deverá enfrentar outro julgamento em breve. No Superior Tribunal Militar (STM), como dispõe a Constituição, provocado pelo Ministério Público Militar, poderá perder a mesma patente que, no início de sua vida pública, serviu de trampolim para sua carreira política. Ao que tudo indica, o ciclo político de Bolsonaro está prestes a se encerrar do modo como começou: em confronto com a lei, em rebeldia contra a ordem constitucional e na reafirmação de sua natureza insubmissa aos princípios democráticos.

Não se trata apenas do ocaso pessoal de Bolsonaro, mas, muito provavelmente, o de um movimento que se articulou em torno de seu nome e absorveu seu estilo. O bolsonarismo emergiu como a resposta visceral à crise de representação política que incendiou o Brasil após os escândalos de corrupção durante os governos lulopetistas. Em 2018, em meio ao desencanto generalizado da população com a política dita “tradicional”, Bolsonaro foi alçado à Presidência da República apregoando ser um outsider, coisa que nunca foi. Assim, explorou um mal-estar social legítimo, mas mal orientado, ao ser escolhido pela maioria dos eleitores como um símbolo de negação: contra o PT, contra a corrupção, contra o establishment político, contra o “sistema”.

Na chefia de Estado e de governo, Bolsonaro foi fiel à sua natureza, frustrando os que esperavam que o peso da institucionalidade o contivesse. O obscuro deputado do baixo clero – que, sem nada digno a oferecer, mostrava-se sempre disponível para escandalizar o País com sua retórica violenta em defesa da ditadura militar – passou a comandante em chefe das Forças Armadas sem nunca deixar de ser um agitador. Hostilizou as instituições, manipulou a verdade factual, insultou a ciência, desprezou a vida dos brasileiros na pandemia, sabotou a boa administração pública e, ao fim, tentou um golpe, como constatado ao final da Ação Penal 2.668, para se aferrar ao poder, malgrado ter sido derrotado em uma eleição limpa.

Não houve surpresas. O capitão que fez política nos anos 1980 e 1990 como uma espécie de sindicalista de policiais e militares de baixa patente jamais compreendeu a liturgia republicana.

A condenação imposta pelo STF e o futuro julgamento no STM representam não só a tardia responsabilização de Bolsonaro por seus atos – que deveria ter sido punido politicamente a tempo certo, como bem destacou o Estadão no editorial Dejetos da democracia (8/1/2000, A3) –, como também uma mensagem clara à sociedade: a democracia brasileira se consolidou. A perda da patente, nesse sentido, seria um evento simbólico a reafirmar que as Forças Armadas, enfim, encerraram o longo capítulo de leniência com o golpismo na caserna que marca nossa experiência republicana. Afinal, Bolsonaro sempre se apresentou e foi tratado por seus aliados como “capitão”, título usado para angariar legitimidade entre os fardados. Ademais, referia-se ao Exército como o “seu” Exército. Destituí-lo da patente, portanto, será desmascará-lo como o “mau militar” (Geisel) que Bolsonaro sempre foi.

Nada disso, no entanto, deve ser motivo de regozijo. O triste capítulo Bolsonaro na história nacional é, a rigor, um luminoso alerta. Alguém como ele só foi alçado à condição de líder da Nação porque muitos cidadãos passaram a descrer na política e nas instituições – em particular nos partidos políticos – e se encantaram pela perspectiva de uma solução rápida para problemas complexos. Nada indica que essa malaise esteja superada. O populismo autoritário só prospera em crises de confiança. Portanto, é dever das forças políticas genuinamente comprometidas com a democracia zelar para que esse terreno nunca mais fertilize ervas tão daninhas.

No crepúsculo de sua vida política, Bolsonaro caminha para o ponto de partida: um militar da reserva indisciplinado, ora condenado pela Justiça comum e prestes a ser declarado indigno da patente pela Justiça Militar. Uma carreira política que começou como afronta ao Exército termina com um golpe contra a República. Ao menos no ponto final desse arco, a sociedade e as instituições souberam reagir. Talvez seja esse o legado positivo da tragédia bolsonarista. Ainda que tarde, a democracia brasileira mostrou força para se defender de seu pior inimigo na história recente.

Itamar Montalvão, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Pulo, em 18.10.25

Honesta e leal aplicação da lei

Jamais o Brasil dependeu tanto de tão elementar premissa civilizatória. Pois, sem lei, restam apenas o desgoverno caótico e as injustiças irrefreáveis.

É indubitável que algo não está bem no Brasil. Decididamente, um país continental, com tantas potencialidades humanas, naturais e materiais, não pode ter apenas um único tema a debater: a relação de amor e ódio entre Lula e Bolsonaro em um divórcio litigioso sem fim. Se fosse novela da tarde, o enredo dantesco poderia ser visto com pipoca salgada; todavia, o problema, na crueza de sua expressão, diz respeito a mais de 200 milhões de cidadãos brasileiros, a maior parte em situação de extrema pobreza e necessidades urgentes, sem escolas, sem segurança pública, sem anestésicos para as fundas dores da existência. Enfim, pessoas sem nada, filhos da indignidade política.

Nossa realidade monotemática é reflexo direto de nosso subdesenvolvimento econômico e intelectual. Países prósperos não aceitam institucionalidade baixa, pois, onde há inteligência, ignorantes não se criam. Infelizmente, o caminho da prosperidade segue sendo um desconhecido brasileiro. Capitalismo de livre mercado, concorrência justa e meritocracia não passam de ecos utópicos de um sistema disfuncional, irrigado por ostensiva interferência estatal nas regras do jogo, benefícios vultosos a amigos e instituições que se servem da – em vez de servir à – República. Tudo como sempre foi, mas com uma diferença sentencial.

Objetivamente, ao longo da quadra democrática pós-1988, a erosão formadora dos partidos e a progressiva degeneração do capital humano da política colocaram o sistema de poder brasileiro em situação de ingovernabilidade aguda. Nos primeiros sintomas, os lapsos de acefalia política foram sendo contornados com pontuais transferências decisórias ao Supremo Tribunal Federal (STF). Antes discreto, o fenômeno ganhou evidência e se impôs por questão de ordem prática: uma maioria colegiada entre 11 é menos trabalhosa do que a complexa construção com 513 deputados e 81 senadores. Além do quesito pragmático, o gradual deslocamento do núcleo político representava prestígio e poder ao STF, habilitando-o a transpor, por decisões constitucionalmente fundamentadas, a legitimidade parlamentar do voto popular.

Veio, então, a temporada de macrocriminalização da política. Os famigerados esquemas delitivos do “mensalão” e “petrolão”, entremeados pela severa campanha punitiva da Lava Jato, deram um tiro no peito da política institucionalizada, colocando-a de joelhos no banco dos réus. Se a expressão adquirida em Curitiba legitimou Sérgio Moro ao Ministério da Justiça, sua atrapalhada renúncia ao cargo criou condições para o STF, já sem a sóbria presença do ministro Teori Zavascki, retomar as rédeas condutoras do processo decisório. Diante dos movimentos erráticos do governo Bolsonaro, num tecido político esgarçado pela confusa gestão da pandemia, restou aberta a porta da experimentação jurídica que levou ao resgate eleitoral de Lula e, ato contínuo, à corrente ingovernabilidade absoluta.

Sim, embora eleito, o presidente não manda e nada de importante decide. Tem auditório e mídia, mas não tem poder. Ou seja, a suprema subjugação da política é traço alto da institucionalidade brasileira contemporânea. Para além de teóricas discussões sobre déficit de democracia ou usurpação da separação de Poderes, o fato existe e aí está, expondo novidades de causas e efeitos. Ilustrativamente, jamais na história política do Brasil um magistrado supremo sofreu sanções diplomáticas da maior potência mundial. Tal ineditismo, além de despertar preocupações, traz alertas importantes ao núcleo de poder brasileiro.

Sem cortinas, as injunções geopolíticas da circunstância – com especial destaque para a postura direta e vertical do presidente Trump sobre elos de interesse da Casa Branca – colocam o País em vulnerabilidade sem precedente. Ao invés da ousadia de gestos histriônicos, a gravidade do momento histórico exige tato, prudência e máximo exercício da razão pensante. A dificuldade estratégica ganha pressão adicional diante da necessidade de soluções diplomáticas em adversa situação de desequilíbrio interno. Em outras palavras, o Brasil não sabe para onde ir nem com quem deve ir e nem sequer dispõe da capacidade de estabelecer diálogos estreitos de orientação mínima.

No vácuo da política, a bússola democrática gira sem norte definido. Aqui, o atalho não faz caminho. Entre os muitos poderes da colenda Suprema Corte não está o de indicar pontos cardeais da democracia. Até mesmo porque dirigismo político – seja qual for – pode ser tudo, menos liberdade constitucional. Em homenagem ao livre pensar sobre o futuro, a memória fez lembrar a autoridade de Paulo Brossard em página alta do STF: “Se eu fosse legislador, é possível que não incluísse o preceito em tela na Constituição; mas eu, que já fui, deixei de sê-lo. Agora, como juiz, não faço leis, antes lhes devo obediência e precipuamente à Lei Maior, goste ou não goste de suas regras, devendo dar-lhes honesta e leal aplicação”.

Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr, o autor deste artigo, é Advogado, é chairman do Instituto Millenium. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 18.10.25

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

É urgente retomar território crescente em poder do crime

Quase um em cinco brasileiros diz conviver com organizações criminosas em sua vizinhança, revela pesquisa

Domínio: Facção criminosa dita suas regras em muro de Barra Mansa, no interior do estado do Rio — Foto: Gabriel de Paiva/Agência O Globo

O domínio de vastas extensões do território brasileiro por facções criminosas e milícias tem se agravado. Praticamente um em cinco brasileiros (19%) diz conviver com o crime em sua vizinhança, segundo pesquisa Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). São ao menos 28,5 milhões de cidadãos expostos ao crime organizado. No levantamento anterior, do ano passado, eram 23 milhões, ou 14% da população. Os dados refletem, no entender de Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do FBSP, a ampliação e o controle de territórios e mercados pelas facções.

A presença dos grupos criminosos é mais sentida em cidades com mais de 500 mil habitantes, capitais e municípios do Nordeste. O crime, diz a pesquisa, cerca tanto os moradores de baixa renda (19%) quanto os de renda mais alta (18%). Mais de um quarto (27%) da população dessas áreas afirma conhecer cemitérios clandestinos, onde são sepultados mortos que não aparecem nas estatísticas oficiais.

A pesquisa traduz a maior angústia que aflige os brasileiros. O cenário se revela em saraivadas de tiros nas guerras entre quadrilhas, na interdição de vias importantes em decorrência da violência, no fechamento constante de escolas e unidades de saúde, na cobrança de taxas ilegais, no medo que impõe mudanças de comportamento, restringindo o direito de ir e vir.

Os métodos usados até agora não têm dado resultado contra o crime organizado, a despeito dos altos investimentos em segurança. Não dão conta de facções cuja atuação ultrapassa a divisa dos estados e as fronteiras do país. Só serão combatidas com engajamento do governo federal e ação conjunta e coordenada de todas as forças da lei.

Organizações criminosas: Levantamento do GLOBO mostra que Brasil tem 64 facções em atuação no país

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança, que tramita no Congresso, é um primeiro passo no rumo certo. Ela amplia a participação do governo federal no combate a facções e milícias, aumenta as atribuições das polícias Federal e Rodoviária Federal, reforça o financiamento, unifica bases de dados e propõe ações integradas sob coordenação federal. A oportunidade não pode ser desperdiçada. Divergências com os estados, que temem interferência de Brasília, não podem travar projeto tão relevante. Parlamentares podem até aperfeiçoar o texto, como quer o relator, deputado Mendonça Filho (União-PE), ao vetar a progressão de regime para líderes de facções. Mas sua essência precisa ser mantida.

É fundamental também que o governo acelere o pacote antimáfia, que ganhou relevância após a operação que expôs a infiltração do crime no mercado formal, usando postos de gasolina e instituições financeiras para lavar dinheiro. As ações previstas incluem aumento de penas e atualização da legislação para tornar mais célere a investigação de organizações criminosas.

É urgente que essas propostas avancem. A situação é crítica — e se agrava a cada dia. Um levantamento do GLOBO mostrou que o Brasil tem pelo menos 64 facções criminosas espalhadas pelas 27 unidades da Federação. Cada vez mais, elas se infiltram em atividades formais. A população está assustada. A preocupação do brasileiro com segurança pública tem crescido e se consolidou como a maior de todas, bem à frente de economia e saúde, revela a última pesquisa Quaest. Quanto mais tempo governo e Congresso levarem para agir, mais difícil será retomar os territórios do crime.

Editorial d'O GLOBO, em 16.10.25

Lula sobe no salto e rebaixa a Presidência

Ao classificar o Congresso como de ‘baixo nível’, o presidente afronta a legitimidade das urnas e sobrepõe seu interesse eleitoral ao interesse público e à institucionalidade do cargo que ocupa


Hugo Motta foi vaiado por apoiadores de Lula, mas exaltou o presidente como 'o que mais fez pela educação do Brasil' / Foto Mariana Ramos - Câmara dos Deputados.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltou a confundir sua posição de chefe de Estado e de governo com a de líder de facção política. Ao afirmar, diante do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), que o Congresso “nunca teve o baixo nível como tem agora” e que a “extrema direita que se elegeu em 2022 é o que existe de pior”, Lula não só cometeu uma descortesia institucional, como afrontou o princípio basilar da democracia representativa: o respeito à legitimidade das urnas.

O discurso foi proferido em ambiente confortável, um evento pelo Dia dos Professores no Rio de Janeiro, diante de uma plateia simpática ao presidente da República e ao PT. Lá, à vontade entre apoiadores históricos, Lula fez o que sabe fazer melhor: transformar um ato oficial em palanque eleitoral. O antagonismo com o Congresso certamente será uma das linhas de sua campanha pela reeleição em 2026. O discurso maniqueísta está pronto: de um lado, o “povo”, que Lula diz representar; de outro, as “elites”, encarnadas nas instituições que impõem limites ao seu voluntarismo ou simplesmente não seguem a cartilha petista.

Com seus erros e acertos, o Congresso é a expressão da pluralidade social e política do País. Seus 513 deputados e 81 senadores foram eleitos pelo voto popular e gozam da mesmíssima legitimidade da qual está investido o sr. presidente da República. Nesse sentido, o Congresso não é “bom” nem “ruim” por natureza; apenas é o que é, reflexo das escolhas dos eleitores. Portanto, ao desqualificá-lo em bloco, Lula desrespeita não apenas os parlamentares que não comungam de sua ideologia, mas também os milhões de brasileiros que os elegeram.

É natural que Lula discorde de posições assumidas por parte do Congresso, sobretudo da Câmara, que, sob nova direção, tem imposto derrotas ao governo e aprovado medidas de autoproteção que soam escandalosas à opinião pública. A aprovação da chamada PEC da Blindagem, que levou milhares de cidadãos às ruas em protesto no dia 21 de setembro, é exemplo disso. Mas discordar é uma coisa, desqualificar é outra. Cabe ao chefe do Executivo se portar com a serenidade e o senso de responsabilidade que seu cargo exige, e não fomentar o descrédito em uma instituição quando esta contraria seus desejos ou não se alinha às suas visões de mundo.

A descortesia de Lula com Hugo Motta, a quem atribuiu erroneamente a presidência do Congresso – cargo que pertence ao senador Davi Alcolumbre (União-AP) –, é mais do que uma “gafe”. É um sintoma da soberba de quem parece ter se deixado inebriar pela retomada da popularidade e pela conveniência política de ter os bolsonaristas, que sofrem alta rejeição, como adversários preferenciais. A imposição de sanções políticas e econômicas ao Brasil pelos EUA tem sido explorada por Lula como a oportunidade perfeita para voltar à retórica do confronto: ele, o líder do “Brasil soberano”, contra as forças do atraso que conspiram contra o País – as quais o presidente, genericamente, empacota como “extrema direita”.

Ocupadíssimo com a campanha eleitoral, o presidente parece ter esquecido que tem um país para governar. E, para isso, não pode prescindir do Congresso. Lula governa em um regime presidencialista multipartidário, que ele conhece bem como poucos. Não é possível aprovar reformas, avançar em políticas públicas nem ao menos fingir buscar a estabilidade fiscal sem construir pontes com as forças políticas presentes no Legislativo – de todos os matizes.

O discurso do confronto institucional, além de irresponsável, isola o governo em um momento em que a economia clama por cooperação entre os Três Poderes. A agenda de equilíbrio fiscal, a reforma administrativa e a segurança pública, entre outras pautas prioritárias para o País, exigem pactos que, por óbvio, não virão dos insultos. Ao subir no salto e atacar genericamente o Congresso, Lula não enfraquece seus adversários políticos – rebaixa a própria Presidência da República.

É sintomático que Lula tenha escolhido um palanque cercado por apoiadores para expressar seu desrespeito por um Poder. Surdo pelos aplausos fáceis, deu vazão à empáfia de quem já se vê reeleito e, portanto, pode prescindir de alianças. Azar do País.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 17.10.25