quinta-feira, 20 de março de 2025

Cem anos dessa praga

‘Mein Kampf’ não é página virada. O Terceiro Reich foi projetado por Hitler para durar mil anos. Como doutrina, já durou cem. E vem mais por aí

Em julho de 1925, o livro Mein Kampf (Minha luta), de Adolf Hitler, foi lançado na Alemanha. No ano seguinte, 1926, chegou aos leitores um segundo volume, este mais dedicado ao tema da organização partidária. A partir daí, nas edições posteriores, os dois volumes foram reunidos num só e Mein Kampf fez sua carreira editorial dividido em duas partes: a primeira, com 12 capítulos, e a segunda, com 15. Nesse compêndio de horrores, o autor destila ódio, megalomania, ressentimento, antissemitismo, nacionalismo, xenofobia e apologia da violência para fixar o ideário nazista. Com êxito.

Faz um século – e não passou. A coisa nunca mais arredou pé. Em 30 de janeiro de 1933, Hitler foi nomeado chanceler pelo presidente Paul von Hindenburg. Ato contínuo, transformou seu país numa ditadura totalitária. Logo que chegou ao poder, foi saudado por passeatas noturnas em que jovens fardados carregavam tochas em formação militar. Eram as Fackelzug. No documentário O Fascismo de Todos os Dias, de 1965, dirigido pelo russo Mikhail Romm, podemos ver esses rios ígneos apavorantes.

O espetáculo piromaníaco não se acomodou nas tochas notívagas. Logo evoluiu para rituais macabros, dentro das universidades, em que livros amontoados no pátio ardiam em fogueiras sacrificiais. Os nazistas cremaram páginas de Tolstói, Maiakovski, Thomas Mann, Anatole France, Jack London e outros gênios. Mais adiante, não satisfeitos com incinerar papel, passaram a queimar pessoas. Holocausto.

Na abertura do trecho em que as chamas devoram a literatura, o cineasta soviético projeta na tela uma frase atribuída ao próprio Hitler: “Qualquer cabo pode ser um professor, mas não é qualquer professor que pode ser um cabo”. O totalitarismo alemão acreditava que havia mais virtudes num quepe de milico do que numa beca de docente. O pior é que, na atualidade, alguns ainda acreditam nisso. Há relatos de que, num país remoto, que não fala alemão, as autoridades tomaram para si a tarefa de implantar as assim chamadas “escolas cívico-militares”. Na visão desses governantes, o coturno se sai melhor do que o quadro negro na missão de educar as crianças. O eleitorado aplaude.

O nazismo original sumiu de Berlim em 1945, derrotado pelas tropas aliadas. Em 30 de abril daquele ano, Hitler se matou. Sua mulher, Eva Braun, foi junto. O ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, também cometeu suicídio ao lado da esposa, depois de assassinar os seis filhos com cianeto. O velho Estado maior veio abaixo, mas as teses hediondas do Mein Kampf seguem atormentando o mundo.

A palavra “propaganda” aparece 173 vezes nos 27 capítulos (quem primeiro me chamou a atenção para isso foi o professor Edgard Rebouças, da Universidade Federal do Espírito Santo). Os chefes do Terceiro Reich arrancaram a investigação da verdade do campo da Filosofia, do método científico, da reportagem jornalística e dos estudos conduzidos por historiadores. Tudo isso deixou de ser fonte confiável. A Justiça e seus peritos também perderam o posto de verificadores da realidade. O nazismo monopolizou essa função, como num monoteísmo profano – aliás, em seus diários, Goebbels anotou seu sonho de fazer do partido a grande religião do povo. Quase conseguiu. Interditando a Filosofia, encabrestando a ciência, dizimando a imprensa, subjugando a Justiça e esvaziando a espiritualidade de cada um, o império da suástica fez da propaganda o único critério da verdade.

Em que se deve acreditar? Ora, naquilo que a propaganda repete mil vezes. O Mein Kampf determina que ela deve “estabelecer o seu nível espiritual (cultural) de acordo com a capacidade de compreensão do mais ignorante dentre aqueles a quem ela pretende se dirigir”. Como se vê, a história de “nivelar por baixo” começou aí.

Hitler usou com malignidade inédita os meios de comunicação da indústria cultural. Manipulou até a morte as multidões sedentas de dominação. Hoje, podemos ver as mesmas técnicas no modo como a extrema direita instrumentaliza as plataformas sociais. As mídias digitais são o prolongamento da escola nazista: rompem com o registro dos fatos e promovem a substituição da política pelo fanatismo. O negacionismo contra as vacinas, contra o aquecimento global, contra as evidências históricas e contra a esfericidade do nosso planeta não é uma exceção, mas a regra.

Segundo o Führer, “a grande massa do povo (é) sempre propensa a extremos”. Antes de muitos pesquisadores, ele notou que o público esclarecido pode até apreciar o equilíbrio do centro, mas a turba enfurecida prefere abertamente a falta de modos. Seus seguidores, declarados ou não, continuam a operar exatamente assim. Vide a aliança de Donald Trump e Elon Musk. Vide o triângulo rosa, com o qual os nazistas estigmatizavam os homossexuais, que o presidente dos Estados Unidos usou agora numa postagem. Vide como ele ataca as universidades e deporta inocentes.

Não, o Mein Kampf não é página virada. O Terceiro Reich foi projetado por Adolf Hitler para durar mil anos. Como doutrina, já durou cem. E vem mais por aí.

Eugênio Bucci, o autor deste artigo, é Jornalista e Professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de S. Paulo. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 20.03.25

Projeto que libera R$ 4,6 bi em emendas e beneficia Alcolumbre é aprovado no Senado aceleradamente

Texto foi incluído na pauta de surpresa, sem sequer constar no sistema, e agora vai à sanção de Lula

O presidente do Senado, Davi Alcolumbre - Pedro Ladeira - 11.fev.25/Folhapress

O Congresso Nacional aprovou nesta quarta-feira (19) um projeto, articulado pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), que destrava cerca de R$ 4,6 bilhões em emendas parlamentares das quais ele próprio é o principal beneficiado.

A tramitação toda do texto durou menos de dois meses e aconteceu de forma acelerada, com amplo apoio da base do governo Lula (PT).

A votação desta quarta aconteceu fora da previsão da pauta do dia, sem que o texto constasse no sistema do Senado e de forma acelerada. Agora ele vai à sanção da Presidência da República.

A proposta é uma das atuais investidas do Congresso para manter as emendas parlamentares, que são contestadas pelo STF (Supremo Tribunal Federal) por falta de transparência e critério para aplicação dos recursos.

Como mostrou a Folha, os parlamentares também aprovaram recentemente um outro texto, que deveria dar mais controle ao rito das emendas, mas na prática cria mecanismos para manter escondido o nome de quem faz a indicação da destinação da verba.

O projeto que revive emendas canceladas foi apresentado em 11 de fevereiro pelo líder do governo no Senado, Randolfe Rodrigues (PT-AP), que é do mesmo estado de Alcolumbre.

Ele foi aprovado no Senado oito dias depois. Quando chegou à Câmara dos Deputados, o líder do governo na Casa, José Guimarães (PT-CE) apresentou um pedido para que ele tramitasse em regime de urgência —indo direto ao plenário, sem passar por comissões.

O requerimento foi acatado, independente da promessa do atual presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), de não repetir a gestão de Arthur Lira (PP-AL), quando a tramitação urgente se tornou quase uma regra na Casa.

O texto ficou sob relatoria do deputado Danilo Forte (União Brasil-CE), coopartidário de Alcolumbre e conterrâneo de Guimarães.

Forte fez algumas alterações no projeto, que foi aprovado na Câmara na última terça-feira (18).

Como sofreu mudanças, ele precisou passar novamente pelo Senado, onde surgiu na sessão plenária já desta quarta, de forma extrapauta —instrumento que permite ao presidente encaminhar textos que não estavam na previsão inicial do dia.

No momento em que foi anunciado, o projeto nem sequer constava no portal público do Senado, segundo consulta feita pela Folha.

Seu relator foi designado oralmente por Eduardo Braga (MDB-AM), que substituía Alcolumbre na condução da sessão naquele momento.

A votação demorou mais que o esperado porque, àquela altura, a presença no plenário era baixa e foi necessário que senadores pedissem aos seus colegas que comparecessem para que houvesse número mínimo para deliberação da matéria.

Após 20 minutos, o projeto foi aprovado. Votaram apenas 69 dos 81 senadores, 66 deles favoráveis à proposta.

O texto devolve ao Orçamento bilhões de restos a pagar que haviam sido cancelados.

Esses valores são investimentos previstos para um determinado ano, mas que acabaram não sendo pagos naquele exercício e, por isso, passam para o seguinte classificados como restos.

Pela lei atual, após dois anos, se essas quantias seguirem empacadas, eles são canceladas e ficam à disposição da União.

O projeto articulado por Alcolumbre, porém, impede o cancelamento dos restos de 2020, 2021 e 2022 e que haviam caído.

Um levantamento da Consultoria da Câmara revelado pelo UOL mostra que deste montante (R$ 4,6 bilhões), o estado de Alcolumbre, o Amapá, é o que mais tem a ganhar: R$ 515 milhões.

Desses, ao menos R$ 130 milhões eram do próprio presidente do Senado.

Dos R$ 4,6 bilhões, o projeto retoma R$ 2,2 bi de emendas de relator —mecanismo amplamente usado pelo ex-presidente da Câmara Arthur Lira e que foi derrubado pelo Supremo em 2022.

Outros R$ 2,4 bilhões são de emendas de comissão —modalidade que vem substituindo a de relator por também permitir manter anônimo o nome que indicou a verba.

É dentro desta modalidade que a resolução aprovada pelo Congresso recentemente cria a figura chamada de "emenda dos líderes", na qual os parlamentares conseguem se manter escondidos atrás da assinatura das lideranças partidárias.

João Gabriel, repórter, de Brasília - DF para a Folha de S. Paulo, originalmente, em 20.03.25.

quarta-feira, 19 de março de 2025

Cláudio Lembo, o liberal que incomodou a ‘elite branca’

 Ex-governador de São Paulo surpreendeu seus pares ao criticar a classe dominante

Ex-governador de São Paulo, Claudio Lembo — Foto: Claudio Belli/Valo

Cláudio Lembo havia acabado de assumir o governo de São Paulo quando o PCC deixou o estado de joelhos. A onda de atentados matou mais de 50 agentes de segurança. Num revide sangrento, homens encapuzados executaram mais de 500 civis.

A explosão de violência fez as atenções se voltarem para o ex-vice de Geraldo Alckmin, que havia deixado o cargo para concorrer ao Planalto. Com longa trajetória em partidos de direita, Lembo surpreendeu ao criticar o “cinismo nacional” e cobrar a responsabilidade das elites.

“Temos uma burguesia muito má, uma minoria branca muito perversa”, disse, em entrevista à Folha de S.Paulo. “A bolsa da burguesia vai ter que ser aberta para poder sustentar a miséria social brasileira”, prosseguiu.

O novo governador afirmou que o Brasil ainda era um país dividido entre casa grande e senzala. “Quando os escravos foram libertados, quem recebeu indenização foi o senhor, e não os libertos, como aconteceu nos EUA. Então é um país cínico. É disso que nós temos que ter consciência”, advertiu.

As declarações deixaram em polvorosa seus colegas de PFL. Exasperado, o senador Antonio Carlos Magalhães disse que Lembo tinha “cara de burro”. O ofendido não se intimidou. “Isso é típico de senhor do engenho. Tudo o que eu disse sobre a burguesia branca ficou caracterizado na frase dele”, devolveu.

Lembo já tinha uma longa folha de serviços prestados ao conservadorismo. Havia passado pela Arena, sigla de sustentação da ditadura, e colaborado com governos de Jânio Quadros e Paulo Maluf.

Não simpatizava com as bandeiras da esquerda, mas nunca abriu mão de sua independência. Em 1979, quase foi expulso do partido por se encontrar com Leonel Brizola. Arquirrival dos militares, o líder trabalhista voltava do exílio para retomar a carreira política no Brasil.

A breve gestão de Lembo no Palácio dos Bandeirantes ficou marcada pelos massacres de maio de 2006. Nos anos seguintes, sua língua ferina continuaria a incomodar os aliados.

Quando João Doria reuniu artistas e socialites no movimento “Cansei”, de oposição ao governo Lula, Lembo disse que aquilo era coisa da “elite branca”. “Deve ter começado em Campos do Jordão”, debochou. Quando a garotada da periferia começou a promover “rolezinhos” nos shoppings paulistas, ele ironizou as senhoras que exigiam providências da PM. “Isso não é problema de polícia. Os jovens não estão fazendo nada de errado”, afirmou.

No fim de 2015, procurei o ex-governador para saber o que ele pensava dos protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff. Mais uma vez, ele foi na contramão de sua turma.

“A elite branca está furiosa”, ironizou, referindo-se aos panelaços contra o governo petista. “A lei exige um crime de responsabilidade, o que não vejo. Ninguém diz que a presidente enriqueceu. Sua honra está preservada”, sentenciou.

Lembo estava filiado ao PSD de Gilberto Kassab, mas não exercia mais funções públicas. Autor de livros como “O testemunho de um liberal” (1979) e “A opção liberal” (1985), continuava a se descrever como um conservador.

Quando perguntei o que ele dizia a seus pares que buscavam derrubar o governo, ele desconversou: “Estou velho. Não querem mais saber de mim”.

O ex-governador ainda viveria mais uma década. Morreu na madrugada desta quarta-feira, aos 90 anos.

Bernardo Mello Franco, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo online, em 19.03.25.

A extrema direita e a arte de distrair

 Novela da saída de Eduardo Bolsonaro do país divide atenção com projeto que impacta milhões de pessoas, mas terá efeito prático zero no destino judicial do patriarca do clã

Morador de Copacabana faz cartaz 'Sem Anistia' para ato com Bolsonaro — Foto: Alexandre Cassiano

Não se pode negar à extrema direita, aqui e alhures, o domínio da arte de plantar distrações no debate público e, com isso, mobilizar as atenções e as conversas. O Brasil, de novo, foi laboratório para esse tipo de experimento nesta terça-feira, quando um projeto complexo, que diz respeito, direta ou indiretamente, a milhões de contribuintes, dividiu espaço no noticiário, nas redes sociais e nos grupos de WhatsApp com um factoide da família Bolsonaro: o filho Zero Três de Jair está de partida para mais uma temporada morando nos Estados Unidos, desta vez, aparentemente, não para fritar hambúrguer.

Provavelmente, a coincidência dos anúncios do projeto de isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil, que reuniu Lula, ministros e os comandantes das Casas do Congresso, e de que Eduardo Bolsonaro se licenciará indefinidamente do mandato de deputado federal para ficar nos Estados Unidos e, de lá, ficar atirando no Judiciário brasileiro não foi estrategicamente pensada.

Mas foi didática para ver quanto somos facilmente tragados para uma agenda que só interessa à família, cada vez mais pressionada pela iminência de que os atos golpistas praticados com comando e anuência do ex-presidente sejam julgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

É como as diabruras diárias de Donald Trump. Muitas dificilmente sairão do gogó ou do papel, sofrerão recuos obrigatoriamente e não passam de provocação, mas geram reação de governos, corporações, mercado financeiro, imprensa americana, do resto do mundo e por aí afora, num efeito dominó perverso que desvia o foco daquilo que, no projeto de desmonte que ele empreende, realmente tem impacto institucional, legal e econômico.

Há muitas conjecturas a respeito da intenção da família com a deserção de Eduardo, da preparação de terreno para uma fuga do pai a um temor mais comezinho de ficar sem o passaporte, possibilidade que se dissipou já na própria terça-feira, quando o procurador-geral da República, Paulo Gonet, negou pedido do PT nesse sentido. O certo é o propósito do bolsonarismo de vitimizar Jair e companhia. Como as investidas têm surtido efeito decrescente, por vezes pífio, vide a manifestação esvaziada do último domingo, resolveram apelar para um showzinho com locação internacional.

O mais provável é que Eduardo produza uma série de vídeos em que, à distância, se sinta mais corajoso para adjetivar Alexandre de Moraes, algo que aqui, no comando da Comissão de Relações Exteriores, o deixaria sempre receoso de ser incluído nas investigações de que escapou de raspão, até agora. Promoverá encontros com lideranças mais estridentes da direita americana, usará bonés com dizeres para animar a torcida e tentará agitar alguma moção contra ministros do STF.

Mas é preciso tirar a espuma da distração estridente e perguntar: e daí? Para efeito de um eventual pedido de asilo de Jair ou de uma fuga cinematográfica, o alarde prévio do filho só atrapalha e deixa quem precisa ficar de olho mais alerta. Se a ideia é constranger ou afetar diretamente Moraes ou os demais ministros da mais alta Corte do Brasil, o deputado e seus aliados demonstram não conhecer nada de princípios elementares de direito internacional, como a autodeterminação das nações soberanas. Trocando em miúdos: a Constituição americana não tem validade em solo brasileiro, nem o Congresso ou a Suprema Corte dos Estados Unidos têm jurisdição sobre Brasília.

O julgamento de Bolsonaro e dos outros 33 denunciados por tentativa de golpe de Estado seguirá o cronograma bastante acelerado que já vem sendo ditado — não por acaso, ontem mesmo foi marcada a análise da denúncia de outro lote, numa demonstração de que o show pirotécnico da família terá efeito prático zero sobre o destino judicial do patriarca e dos demais. Muito barulho por nada.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 19.03.25

Por que não acredito em uma única palavra do que Trump e Putin dizem sobre a Ucrânia

Eu simplesmente tenho muitas perguntas sem resposta

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, cumprimenta o presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante uma reunião bilateral em Osaka, Japão  (Foto: Susan Walsh/AP)

Desde que o presidente Trump retornou ao cargo e começou a tentar fazer jus à sua vanglória de acabar com a guerra na Ucrânia em poucos dias, graças ao seu relacionamento com o presidente russo Vladimir Putin, tenho tido a preocupação de que algo tenha se perdido na tradução do romance entre Vlad e Don.

Quando o intérprete traduz a Trump que Putin diz estar pronto para fazer qualquer coisa pela “paz” na Ucrânia, tenho quase certeza de que Putin realmente disse foi estar pronto para fazer qualquer coisa por um “pedaço” da Ucrânia.

Você conhece esses homófonos - eles podem realmente causar muitos problemas se você não estiver ouvindo com atenção. Ou se estiver ouvindo apenas o que quer ouvir.

O The New York Times informou que, em seu telefonema de duas horas e meia com Trump na terça-feira, Putin concordou em interromper os ataques à infraestrutura de energia ucraniana, de acordo com o Kremlin, mas Putin deixou claro não concordar com o cessar-fogo geral de 30 dias que os Estados Unidos e a Ucrânia haviam acordado e proposto à Rússia.

O Kremlin também disse que a “condição fundamental” de Putin para encerrar o conflito era uma “cessação completa” da assistência militar e de inteligência estrangeira a Kiev - em outras palavras, destituir a Ucrânia de qualquer capacidade de resistir a uma tomada total da Ucrânia pela Rússia. Mais uma prova, se alguém ainda precisava dela, de que Putin não está, como Trump tolamente acreditava, buscando a paz com a Ucrânia; ele está buscando a posse da Ucrânia.

Dito isso, perdoe-me, mas não confio em uma única palavra que Trump e Putin digam sobre suas conversas particulares sobre a Ucrânia - incluindo as palavras “e” e “o”, como disse a escritora Mary McCarthy sobre a veracidade de sua rival Lillian Hellman. Porque alguma coisa não está cheirando bem desde o início com toda essa negociação entre Trump e Putin sobre a Ucrânia.

Eu simplesmente tenho muitas perguntas sem resposta. Vou contar as respostas.

Para começar, o Secretário de Estado Henry Kissinger levou mais de um mês de intensa diplomacia de vaivém para produzir os acordos de retirada entre Israel e Egito e Israel e Síria que encerraram a guerra de 1973 - e todas essas partes queriam um acordo. Você está me dizendo que duas reuniões entre Steve Witkoff, amigo de Trump, e Putin em Moscou e alguns telefonemas entre Putin e Trump são suficientes para acabar com a invasão russa na Ucrânia em termos razoáveis para Kiev?

Trump não conseguiria vender um hotel tão rapidamente - a menos que o estivesse dando de presente.

Espere, espere - a menos que ele estivesse dando de presente. ...

Presente

Senhor, espero não ser isso que estamos vendo aqui. Mensagem para o presidente Trump e o vice-presidente JD Vance: Se vocês entregarem a Ucrânia a Putin, levarão para sempre a marca de Caim em suas testas como traidores de um valor fundamental que tem animado a política externa dos EUA há 250 anos - a defesa da liberdade contra a tirania.

Nossa nação nunca vendeu tão descaradamente um país que luta para ser livre, e nós e nossos aliados apoiamos há três anos. Se Trump e Vance fizerem isso, a marca de Caim nunca será apagada. Eles entrarão para a história como “Neville Trump” e “Benedict Vance”. Da mesma forma, o secretário de Estado Marco Rubio, o secretário de Defesa Pete Hegseth e o conselheiro de segurança nacional Michael Waltz.

Por que mais estou desconfiado? Porque Trump continua dizendo que tudo o que ele quer é acabar com “a matança” na Ucrânia. Eu concordo com isso. Mas a maneira mais fácil e rápida de acabar com a matança seria o lado que começou a matança, o lado cujo exército invadiu a Ucrânia por motivos totalmente inventados, sair da Ucrânia. Presto - a matança acaba.

Putin precisa contar com a ajuda de Trump somente se quiser algo mais do que o fim da matança. Entendo que a Ucrânia terá de ceder algo a Putin. A questão é quanto. Também entendo isso: a única maneira de Putin obter a fatia extragrande de terra e as restrições pós-guerra que deseja impor à Ucrânia - sem mais combates - é recrutando Trump para obtê-las para ele.

Por que mais estou desconfiado? Porque Trump deixou todos os nossos aliados europeus de lado quando negociou com Putin. Desculpe-me, mas nossos aliados europeus contribuíram com bilhões de dólares em equipamentos militares, ajuda econômica e assistência a refugiados para a Ucrânia - mais do que os Estados Unidos, sobre os quais Trump mente - e deixaram claro estar prontos para fazer ainda mais para impedir o domínio de Putin sobre a Ucrânia para vir atrás deles em seguida.

Então, por que Trump entraria em negociações com Putin e não levaria nossa melhor vantagem - nossos aliados - com ele? E por que ele visivelmente desligou e voltou a ligar a ajuda militar e de inteligência dos EUA à Ucrânia - depois de chamar vergonhosamente o presidente ucraniano Volodimir Zelenski de “ditador”?

Desculpe, mas isso também não me cheira bem. Kissinger e o Secretário de Estado James Baker eram negociadores particularmente eficazes porque eles sabiam como alavancar nossos aliados para ampliar o poder dos EUA. Trump, de forma tola, dá as costas de sua mão para nossos aliados, enquanto estende a mão aberta para Putin. É assim que se desiste da alavancagem.

Alavancar aliados - o maior trunfo que temos e que Putin não tem - “é a essência da estratégia inteligente”, disse-me Dennis Ross, conselheiro de longa data para o Oriente Médio dos presidentes dos EUA.

Influência

“A chave para uma boa política é saber como usar o poder de influência que você tem - como combinar seus meios com seus objetivos. A ironia é que Trump acredita em influência, mas não usou todos os meios de que dispõe” na Ucrânia, disse Ross, autor do oportuno e recém-publicado “Statecraft 2.0: What America Needs to Lead in a Multipolar World” (O que os Estados Unidos precisam para liderar em um mundo multipolar).

Também me soa errado Trump parecer não ter a menor ideia do motivo pelo qual Putin é tão gentil com ele. Como um analista de política externa russo em Moscou me disse recentemente: “Trump não entende que Putin está apenas manipulando-o para atingir o seu principal objetivo: diminuir a posição internacional dos EUA, destruir sua rede de alianças de segurança - principalmente na Europa - e desestabilizar os EUA internamente, tornando assim o mundo seguro para Putin e Xi”.

Trump se recusa a entender, acrescentou esse analista, que Putin e o presidente chinês Xi Jinping querem ver os Estados Unidos encurralados no hemisfério ocidental, em vez de se meterem com qualquer um deles na Europa ou na Ásia/Pacífico - e eles veem Trump como seu peão para conseguir isso.

Por fim, e resumindo praticamente tudo o que foi dito acima, parece-me que Trump nunca deixou claro quais concessões, sacrifícios e garantias ele está exigindo da Rússia para conseguir um acordo de paz na Ucrânia. E quem entra em uma negociação sem um resultado final muito claro e inabalável em termos dos principais interesses americanos?

Há maneiras sustentáveis de terminar uma guerra e mantê-la terminada e há maneiras insustentáveis. Tudo depende do resultado final - e se o nosso resultado final for fundamentalmente diferente do resultado final da Ucrânia e de nossos aliados, não acho que eles vão simplesmente se render ao bromance Trump-Putin.

Putin quer uma Ucrânia com um governo que seja basicamente igual ao de sua vizinha vassala, Belarus, e não uma Ucrânia independente como a vizinha Polônia - uma democracia de livre mercado ancorada na União Europeia.

Não tenho a menor dúvida de qual delas é do interesse da Ucrânia, dos Estados Unidos e de nossos aliados europeus. O que me atormenta é não saber qual o interesse pessoal de Donald Trump - e isso é tudo o que importa agora na Washington de Trump.

Até ficar claro que o resultado final de Trump deveria ser o resultado final dos Estados Unidos - nenhuma rendição formal do território ucraniano a Putin, mas simplesmente um cessar-fogo; nenhuma adesão da Ucrânia à Otan, mas adesão à União Europeia; e uma força internacional de manutenção da paz no local, apoiada pela inteligência e pelo apoio material dos EUA -, fico muito, muito cético em relação a cada palavra que Trump e Putin dizem sobre a Ucrânia. Incluindo “e” e “o”.

Thomas Friedman, o autor deste artigo, é colunista de assuntos internacionais do The New York Times e ganhador de três prêmios Pulitzer. Autor de sete livros, entre eles 'De Beirute a Jerusalém', que venceu o Prêmio Nacional do Livro. Publicado n'O Estado de S. Paulo, em 19.03.25

Os novos cidadãos

O cidadão forjado no ativo e ruidoso ambiente digital atual não é um indivíduo politizado. Nem a tolerância é uma marca da comunicação digital atual.

No início deste ano, Mark Zuckerberg, (na foto acima), dono da Meta, anunciou que a empresa não submeterá mais ao sistema de checagem de fatos as postagens feitas no Instagram e no Facebook nos Estados Unidos. A decisão tem diferentes implicações e justifica todo o debate que provocou e ainda provocará.

É oportuna, porém, a observação feita a respeito do tema no editorial Zuckerberg lava as mãos: “A mediação do real nesse ambiente (das redes sociais) é simplesmente impossível, por mais formidável que seja a estrutura de checagem de fatos” (Estadão, 9/1, A3). A observação é oportuna porque recorda a dificuldade de distinguir verdade e mentira numa plataforma que é aberta a todos e que não supõe a participação de especialistas dedicados a fazer essa distinção (e, então, torná-la acessível a todos), como faz a imprensa profissional.

Por muito tempo, a imprensa atuou como curadora das informações e dos discursos que povoavam a esfera pública, medindo, avaliando e selecionando seu fluxo. Seu dever de buscar a verdade factual era, ou deveria ser, uma barreira à manipulação dos fatos pela política; a aplicação do seu cânone da imparcialidade podia mediar as paixões populares.

Mas quantos ainda toleram a imparcialidade (mais ainda, uma imparcialidade pronunciada “de cima para baixo”)? Nem a tolerância é uma marca da comunicação digital atual.

Talvez uma das razões disso seja o modo como geralmente se dá essa comunicação, não raro narcísica, tendenciosa, provocativa, divisiva, além de rápida, segmentada, imagética, emocional. Comunicação que nunca foi tão livre, nem tão manipulada; que ocorre normalmente à distância dos outros, às vezes até de si mesmo: “O mundo da internet trouxe a experiência da desencarnação, da perda do invólucro concreto em carne e ossos, num balanço entre um si mesmo imaginário e seu duplo” (Ponto de Fuga, Jorge Coli).

Essa comunicação, amparada e favorecida pelas tecnologias digitais, molda “como” e “o que” conhecemos. Moldaria, assim, nossa cultura atual; logo, nossa cultura política atual.

Nela, vínculos políticos frequentemente resultam de interações afetivas; o bom político é “espontâneo”, “autêntico”, especialmente quando o que ele diz que sente nós sentimos também (o que ele efetivamente faz torna-se secundário, então). A comunidade política, nesses termos, não deve mirar a civilidade (que estabelece uma distância entre nós), mas a personalidade (que nos aproxima do nosso líder ou grupo). Daí as adesões de corpo e alma a conhecidos personagens políticos da atualidade.

Nesse contexto, sobressai o papel do entretenimento. Ele sempre teve um lugar na política, bem antes dos influencers, dos vídeos do TikTok, dos memes, etc. Como afirma o professor Eugênio Bucci no artigo Sem jornalismo, mundo não tem democracia e, ironicamente, não tem liberalismo (Estadão, 4/1), “a disputa do poder sempre jogou com a dissimulação e com recursos cênicos”. Atualmente, no entanto, “não é mais a política que instrumentaliza o recurso cênico, mas o recurso cênico que se apossa da política”.

O entretenimento, assim, mobiliza interpretações da realidade, induz e reforça convicções, celebra comportamentos com destreza inédita. E, com as tecnologias digitais, ganhou um impulso vigoroso. Como diz Bucci, relatos informativos confiáveis perderam espaço para atrações mais excitantes: “A internet e suas técnicas permitiram que o aliciamento emocional, característico do entretenimento, se impusesse sobre o argumento racional”. Assim, hoje, é o entretenimento que “modula as narrativas, rege o debate público, que funciona como um reality show”. O entretenimento tem a capacidade de suspender a dúvida em nome da diversão ou da confirmação do próprio ponto de vista.

E é assim que muitas sociedades pelo mundo vêm se “repolitizando”, num processo em que a autoexpressão, a representação prevalece sobre a comunicação, em que há mais divisões e menos comunidade, mais certezas do que interrogações, muitas identidades e pouca fraternidade.

É verdade que “democracia é feita de cacofonia”, como dito no editorial citado anteriormente, e que a pluralidade de vozes presentes no debate público geralmente atua em favor de um regime democrático, notadamente numa democracia liberal (democracia, sem esse adjetivo, por si só, não garante o respeito a direitos).

Por outro lado, que cidadão emerge deste ambiente digital espetacularizado de hoje? Uma cultura de participação política está bem encaminhada sob a liderança das lives, dos vídeos curtos, dos memes, da lacração, do cancelamento, do grotesco? Que comunidades políticas, de discussão e ação popular, se formam num tal ambiente? Nele, quais são as chances de tomarmos parte “nos processos de formulação, de monitoramento, de controle e de avaliação” das políticas sociais, como estabelece o parágrafo único do artigo 193 da Constituição federal de 1988? O cidadão forjado no ativo e ruidoso ambiente digital atual não é um indivíduo politizado.

Marcelo de Azevedo Granato, o autor deste artigo, é Doutor em Direito pela USP e pela Università degli Studi di Torin. Integrante do Instituto Norberto Bobbio, é professor da FADI e FACAMP. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 19.03.25

segunda-feira, 17 de março de 2025

Caixa de Pandora das emendas tem de ser fechada

 

Avanço do Congresso sobre Orçamento, que completa 10 anos, compromete qualidade do gasto público e relação entre Poderes

Fachada do Congresso Nacional, em Brasília (DF) - Rubens Chaves/Folhapress

Completam-se nesta segunda-feira (17) dez anos da mudança constitucional que tornou impositiva a execução de emendas parlamentares individuais ao Orçamento —e abriu uma caixa de Pandora que hoje compromete a qualidade do gasto público e as relações entre os Poderes republicanos.

Saudada na época como um mecanismo democrático para fortalecer o Legislativo, a aprovação da regra foi consequência do enfraquecimento político da então presidente Dilma Rousseff (PT), que acabaria sofrendo um processo de impeachment.

Desde então, as emendas, instrumento pelo qual deputados e senadores direcionam recursos federais, cresceram exponencialmente em volume e influência, reduzindo a capacidade de alocação por parte do Executivo.

Em 2019, o Congresso Nacional determinou que as emendas de bancadas estaduais também seriam impositivas. Instituíram-se ainda as chamadas emendas individuais Pix, que reduziram drasticamente a transparência da execução orçamentária.

Elas permitiram aos congressistas direcionar dinheiro do contribuinte diretamente ao caixa de prefeituras e governos estaduais, sem ao menos indicar a finalidade do gasto. Por causa disso, como noticiou a Folha, é desconhecido o destino de 12% dos investimentos da União nos últimos dois anos, ou R$ 14,3 bilhões.

Outra alteração importante —e nefasta— nas normas foi a ampliação do montante destinado obrigatoriamente às emendas individuais, que passou de 1,2% para 2% da receita corrente líquida da administração federal.

O impacto das mudanças no decênio impressiona. De 2014 para este ano, os gastos determinados por parlamentares saltaram de R$ 11,1 bilhões para R$ 49,2 bilhões, em valores corrigidos.

O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), assim como o de Jair Bolsonaro (PL), reúne parcas condições políticas de conter o apropriação pelo Congresso de vastos recursos do Orçamento. A reação tem cabido principalmente ao STF, que tenta ao menos impor protocolos de transparência na apresentação e na execução das emendas.

Deputados e senadores, no entanto, resistem. Em 2024, votaram uma lei complementar que, embora tenha trazido alguma melhora nos processos, esteve longe de atender às exigências da corte. Já na semana passada, aprovou-se projeto de resolução que também mantém lacunas, como a ausência de identificação individual dos autores de emendas de comissão.

Persistem, assim, anomalias quantitativas e qualitativas. Nas principais economias, não há registro de tamanha ingerência direta de legisladores nos recursos públicos —e ela se dá em mero benefício de redutos eleitorais, sem critérios de prioridade.

É urgente, pois, interromper, disciplinar e, tanto quanto possível, reverter o avanço do Congresso sobre um Orçamento público já amplamente deficitário.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 17.03.25 (editoriais@grupofolha.com.br)

sexta-feira, 14 de março de 2025

A molecagem do Congresso com emendas

Resolução para regulamentar acordo sobre transparência embute truque para manter sigilo e deve suscitar nova sanção do STF

O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, recebe cumprimentos do petista Randolfe Rodrigues (esq) e do bolsonarista José Medeiros (dir) — Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

A relação entre Poderes da República não deveria comportar molecagem, mas é difícil encontrar outro nome para classificar a resolução costurada na surdina e aprovada a toque de caixa pelo Congresso que tenta, pela terceira ou quarta vez, driblar as determinações do Supremo Tribunal Federal quanto à necessidade de dar transparência e rastreabilidade às emendas orçamentárias.

O grau de apego e a insistência bizarra de deputados e senadores em manter algum grau de sigilo sobre a liberação de dinheiro público só escancara quanto esta se tornou, antes de tudo, uma maneira de políticos se perpetuarem em mandatos e expandirem seu poder sobre prefeitos, empresas e eleitorado, num ciclo perverso que eles não querem ver quebrado.

Basta lembrar que a tentativa de moralizar as emendas começou (já tarde) com a ministra Rosa Weber, lá atrás, em 2022. Desde então, houve seguidas idas e vindas para algo que não é um capricho do Supremo Tribunal Federal, mas apenas e tão somente o Judiciário cumprindo aquilo que manda a Constituição em relação ao Orçamento da União.

O último lance, com a aprovação de uma resolução que permite que apenas os líderes chancelem indicação das emendas de comissão, permitindo que parlamentares permaneçam incógnitos, tem um teor de afronta ainda maior que os anteriores, porque Hugo Motta e Davi Alcolumbre acabaram de assumir o comando da Câmara e do Senado, foram até o ministro Flávio Dino, se comprometeram com um acordo para, apenas poucas semanas depois, orquestrarem a tentativa de driblá-lo.

É óbvio que, diante da já esperada manifestação do PSOL, autor de uma das ações que questionam o trâmite das emendas, Dino voltará à carga, provavelmente sustando novamente o pagamento das emendas até que a nova diabrura dos senhores parlamentares seja desfeita.

Não adiantará de nada os deputados e senadores apontarem intervenção indevida do ministro, conluio com o governo ou o que quer que seja. O assunto já teve diversos rounds, todo mundo sabe o que está posto à mesa, e a resolução com a brecha marota para o sigilo foi urdida propositalmente nos últimos dias, diante da inação por parte do governo, que reconhece sua própria tibieza na relação com o Legislativo e deu a batalha por perdida. É o que explica a votação da proposta com apoio maciço de quase todos os partidos, inclusive do PT.

Uma segunda manobra que passou relativamente despercebida na votação da resolução prorrogou a atual composição da Comissão Mista de Orçamento até que seja votada a proposta orçamentária deste ano, que segue travada. Com isso, a cúpula do Parlamento mostra que a ideia é manter o Orçamento deste ano como refém até que seja encerrada a novela em torno das emendas — que, como se vê, terá mais um capítulo agora.

Caso a proposta não seja votada na semana que vem, estará alcançado o recorde de atraso na aprovação do Orçamento, um indicativo inquestionável da forma como a agenda de interesse do país está subordinada aos interesses dos congressistas e de quanto o negócio das emendas é, hoje, condição de vida e morte para eles, da esquerda à direita, com a exceção apenas dos nanicos PSOL e Novo, cada um numa ponta do espectro político.

Lula disse na campanha que acabaria com o orçamento secreto, mas rompeu a promessa já antes da posse, quando pactuou a votação da PEC da Transição e o apoio à reeleição de Arthur Lira. Há dúvida razoável quanto ao grau de afinação entre ele e Dino na tentativa de disciplinar aquilo de que deputados e senadores se recusam a abrir mão.

Mas fica nítida a falta de voz e de pulso do Executivo em exigir que a destinação de recursos públicos por parte do Legislativo seja moralizada. A ousadia do Congresso em dobrar a aposta mostra que o negócio é tão lucrativo que a briga compensa.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é comentarista de política n'O Globo. Publicado originalmente em 14.03.25

Congresso aprova projeto que dribla STF e mantém sigilo a autores de emendas

Texto permite indicação por meio de líderes partidários, sem identificação específica dos parlamentares

O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (esq.), ao lado do presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta - Pedro Ladeira 3.fev.25/Folhapress

O Congresso Nacional aprovou, nesta quinta-feira (13), projeto de resolução que dribla o STF (Supremo Tribunal Federal) e mantém a brecha para que a destinação de emendas parlamentares escondam os seus respectivos autores.

A matéria foi aprovada por 361 a 33 entre deputados e 64 a 3 entre senadores. Ela era o único item na pauta da sessão.

A proposta —elaborada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal—, é fruto do acordo com o Supremo para dar mais transparência às emendas.

Ele foi firmado após uma série de embates com o ministro Flávio Dino, que relata ações sobre o tema e chegou a criticar a "balbúrdia" no Orçamento da União criada por esses procedimentos.

Como mostrou a Folha, porém, o texto permite que os parlamentares façam indicações por meio de suas bancadas partidárias, constando apenas a assinatura do líder da sigla, sem identificação do autor original.

A possibilidade está justamente dentro das emendas de comissão, um dos principais alvos de crítica de Dino, pela falta de clareza na alocação dos recursos.

Durante a sessão, parlamentares contrários à iniciativa, como os deputados Glauber Braga (PSOL-RJ) e Adriana Ventura (Novo-SP), também reclamaram que o texto foi protocolado oficialmente menos de 24 horas antes do início da votação.

Presidente do Senado e do Congresso Nacional, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), decidiu manter a deliberação, mesmo assim.

Os partidos solicitaram que a proposta fosse alterada para explicitar o autor das emendas indicadas pelas bancadas, o que não foi acatado pelo relator Eduardo Gomes (PL-TO).

Também tentaram apresentar um destaque para que esse trecho fosse retirado da resolução, mas Alcolumbre argumentou que a medida não tinha amparo no regimento comum do Congresso e a rejeitou sem votação.

A minuta inicial continha um dispositivo que, como mostrou o UOL, esvaziava a competência da consultoria técnica do Congresso. O trecho foi retirado do texto após protesto de deputados.

As iniciativas de Dino sobre as emendas parlamentares tiveram seu ponto alto no final do ano passado, quando o ministro fez exigências de transparência para a aplicação dos recursos, suspendeu pagamentos e acionou a Polícia Federal para investigar possíveis irregularidades.

As medidas abriram uma crise com o Congresso, em especial com o então presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

As emendas de comissão foram turbinadas por Lira após a derrubada, pelo próprio STF em 2022, das verbas de relator, que não tinham mecanismos de transparência.

Os parlamentares, então, passaram a usar os recursos das comissões temáticas do Congresso para direcionar dinheiro a seus redutos eleitorais, sem a identificação de seus padrinhos.

Dino então exigiu mais transparência e que as indicações fossem votadas pelos colegiados. Ele criticou o mecanismo por transformar emendas de comissão em "emendas de líderes partidários", já que estes eram os únicos nomes que apareciam nos registros oficiais.

Lira manobrou e driblou a determinação para que não houvesse votação e para que as indicações fossem assinadas em conjunto pelos líderes da Câmara, mais uma vez escondendo os autores originais.

A resolução aprovada nesta quinta, que deveria adequar os ritos das emendas para dar mais transparência, manteve vivo o mecanismo de indicação pelo líder partidário.

Em um primeiro momento, o texto exige a identificação, em cada emenda, dos parlamentares que compõem as comissões temáticas.

Mais adiante, no entanto, ele permite que sejam feitas indicações às comissões por meio das bancadas de cada sigla, exigindo apenas a assinatura "pelos líderes partidários", acompanhadas de um formulário.

Nesse formulário, que consta em um anexo, são exigidas informações como município e CNPJ do favorecido, valor, beneficiário final, código da emenda e código da ação orçamentária à qual ela representa. Não se exige, portanto, que o parlamentar autor da indicação seja registrado no documento.

Nas decisões e nos acordos firmados até aqui na disputa entre Dino e o Congresso, não constava o conceito de uma ata partidária para as indicações, mas sim a exigência de que fosse dada transparência ao autor da emenda.

O relator Eduardo Gomes chegou a afirmar que havia atendido a solicitação para explicitar os autores das indicações das emendas.

No texto apresentado por ele, porém, apenas foi criada a possibilidade que qualquer parlamentar possa indicar emendas às comissões, se quiser, sem precisar passar pelos líderes.

Deputados do PSOL e do Novo então solicitaram que fosse alterado o formulário para explicitar claramente o padrinho da destinação dos recursos, mas Gomes se negou a fazer essa mudança —na prática, portanto, mantendo a brecha para que esses nomes permaneçam escondidos.

Já nas emendas de bancada estadual, também há uma brecha semelhante. Inicialmente o texto pede a apresentação de um formulário que indica a autoria do autor da emenda, mas em um segundo momento a resolução faz referência a um documento diferente, no qual não é exigida esse nome.

ONGs que foram ao Supremo cobrar mais transparência na destinação de emendas publicaram nota nesta quinta criticando a medida aprovada no Congresso. Elas disseram que a resolução é uma "clara afronta aos princípios constitucionais da publicidade e da moralidade" e estabelece "uma nova modalidade de emenda secreta".

"Cria-se, assim, uma modalidade de emenda não recepcionada pela Constituição Federal: a de bancada partidária."

João Gabriel, repórter, originalmente, de Brasília-DF para a Folha de S. Paulo, em 14.03.21

Maré de impopularidade precoce assedia Trump

Reversão do otimismo com o presidente reflete os custos de seu ativismo disruptivo, que ameaçam a renda dos americanos

Donald Trump, presidente dos Estados Unidos - Mandel Ngan/AFP

Os primeiros 50 dias do segundo mandato de Donald Trump foram marcados por intensa atividade disruptiva do chefe do governo dos Estados Unidos. Em pouco tempo abriram-se tantas frentes de controvérsia que as repercussões negativas, para o presidente e seu país, não tardaram a aparecer.

O otimismo nos mercados que precedeu a posse do republicano foi revertido assim que ficou clara a resultante inflacionária e contracionista das suas medidas. Hoje os investidores passaram a prever desaceleração —alguns vislumbram até recessão— na maior economia do planeta.

Não é para menos. O choque de custos embutido nos anúncios de elevação abrupta de impostos de importação castiga empresas e consumidores norte-americanos que compram produtos estrangeiros. Os preços domésticos do aço, apenas um dos muitos bens atingidos pela metralhadora tarifária de Trump, dispararam.

Se os anúncios forem concretizados, cadeias inteiras de suprimento que dependem de transações transfronteiriças serão atingidas, bagunçando produção, transporte e distribuição de mercadorias com sequelas que implicarão carestia e desemprego.

Mesmo se a catadupa de ameaças comerciais do presidente norte-americano ao final se mostrar menos gravosa do que o inicialmente alardeado, a mera incerteza disseminada por esse método irresponsável de lidar com as expectativas de agentes econômicos já terá produzido estragos.

No front político as sequelas do frêmito mudancista que começam a aparecer tampouco parecem pequenas. A anomalia de investir o empresário Elon Musk de um poder ao mesmo tempo ubíquo e informal na administração federal vai produzindo desgaste.

Numa república de bananas, a figura do amigo do rei que toca seus negócios privados enquanto manda e desmanda no governo com o qual mantém contratos talvez passasse como algo normal. Não numa democracia sólida de mais de 230 anos, como os EUA.

O Judiciário independente continua a bloquear e a reverter ordens ilegais ou inconstitucionais da Casa Branca. Trump já perdeu inclusive na Suprema Corte, apesar da inclinação conservadora da maioria do tribunal.

Somadas as tribulações na política e na economia causadas pelo ativismo trumpista, não espanta que uma maré precoce de impopularidade assedie o líder recém-empossado. O índice de quem desaprova o mandatário passou a superar o dos que o endossam num reputado agregador de pesquisas de opinião pública.

Trump, vale lembrar, não tem direito à reeleição pela regra constitucional dos EUA. Se continuar na toada de ameaçar a renda dos cidadãos e de desafiar o sistema de freios e contrapesos do país, correrá mais riscos de perder a tênue maioria no Congresso no pleito do ano que vem.

A perspectiva de uma segunda metade de mandato melancólica talvez estimule o vaidoso presidente a mudar logo de atitude.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 10.03.25 (editoriais@grupofolha.com.br)

segunda-feira, 10 de março de 2025

Exército já discute onde Bolsonaro poderá ficar preso se for condenado

Força Terrestre debate possíveis acomodações para o ex-presidente, um dos denunciados no inquérito do golpe

Crédito da foto: Wilton Junior / Estadão. 21.02.25

Para militares, ideal seria que julgamento de Bolsonaro fosse concluído até dezembro deste ano

Ainda que com receio de que o julgamento sobre a tentativa de golpe avance em 2026 e não seja possível terminar ainda este ano, como o Supremo Tribunal Federal (STF) calcula, o Exército já planeja como serão acomodados nas prisões militares da ativa ou da reserva que forem condenados. Entre eles, o expresidente Jair Bolsonaro (PL), o que pode levar manifestantes à porta da unidade militar.

Segundo um oficial, ainda não se fala em quem, como e por quanto tempo cada um deles poderá ficar preso, mas é importante que haja uma mínima organização para que, se esta hora chegar, tenha-se uma ideia de como agir.

Extraoficialmente, os militares têm dito que o ideal seria o fim do julgamento até dezembro deste ano, sem entrar em 2026, ano eleitoral em que os ânimos ficam muito mais exaltados. No entanto, como os denunciados são 34 e o julgamento ficará, por enquanto, na Primeira Turma do STF, é pequena a expectativa de que tudo termine nos próximos nove meses.

A maior preocupação diz respeito a Bolsonaro – em razão do cargo que ocupou e da condição de ex-integrante das Forças Armadas, que ele venha a ter de cumprir pena em uma unidade militar. O ex-presidente foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República (PGR), acusado de comandar uma organização criminosa que planejava um golpe de Estado. Ele nega qualquer articulação para uma ruptura institucional, além de afirmar que nunca ouviu falar em um plano de assassinato de autoridades, conforme registra a denúncia apresentada pelo chefe do Ministério Público Federal, Paulo Gonet, ao Supremo.

LULA. O ex-presidente poderia ainda ir para uma unidade da Polícia Federal, como ocorreu com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que cumpriu pena durante 580 dias numa sala da PF, em Curitiba. O ex-presidente Michel Temer (MDB), que também foi preso no âmbito da Operação Lava Jato, em 2019, ficou quatro dias em uma cela especial que foi improvisada para essa finalidade, na Superintendência da PF no Rio de Janeiro.

O mais provável, porém, é que Bolsonaro, em caso de uma condenação, cumpra a pena em uma unidade militar e, na condição de ex-chefe de Estado, venha a ocupar instalações semelhantes às que estão sendo usadas pelo general Braga Netto, outro denunciado, no quarto

General Preso desde dezembro, Braga Netto está em cômodo com frigobar, TV e banheiro exclusivo do comandante da 1.ª Divisão do Exército na Vila Militar, no Rio. O cômodo tem armário, frigobar, televisão, ar-condicionado e banheiro exclusivo.

Para Bolsonaro, entre as hipóteses que estão sendo analisadas, está a liberação de um espaço no Comando Militar do Planalto, com sede em Brasília. Mas, por enquanto, nenhum preparativo está sendo feito e, de acordo com oficiais, essas são apenas hipóteses. O espaço destinado a ex-presidentes presos é um direito previsto no Código Penal Militar e inclui uma série de autoridades, como ministros de Estado, parlamentares e oficiais das Forças Armadas.

Por mais que a legislação não cite ex-presidentes, a regra geralmente é aplicada a eles por serem considerados comandantes em chefe das Forças Armadas durante seus mandatos. A expectativa na caserna é de que o benefício da prisão especial também valha para eventuais condenações definitivas de Bolsonaro.

CONTATO. Um motivo levantado por oficiais-generais para sinalizar que o quartel seria inviável é a possibilidade de o expresidente manter contato com outros militares e também que seguidores de Bolsonaro montem acampamentos ou façam arruaças em frente aos quartéis. Isso já aconteceu após a derrota do ex-presidente na eleição de 2022. Os acampamentos nos quartéis são apontados como elementos do plano para pressionar as Forças Armadas a aderirem a um golpe de Estado.

Durante o período em que Lula ficou preso, foi montado um acampamento de apoiadores do petista em frente à sede da PF em Curitiba. No caso de Bolsonaro, no entanto, uma mobilização semelhante poderia tumultuar a rotina de uma unidade militar.

REFORMULAÇÃO. Dos 34 denunciados pela Procuradoria, 24 integram ou já integraram as Forças Armadas. Como mostrou o Estadão nesta semana, o Exército decidiu diminuir as vagas e retirar curso de formação de militares, além de enxugar o efetivo do Comando de Operações Especiais (COpEsp), do qual fazem parte os chamados “kids pretos”, alvo do inquérito do golpe.

Após dois meses de estudos, o Estado-Maior da Força Terrestre começou a reformulação da tropa que esteve no centro das operações militares clandestinas durante a tentativa de golpe bolsonarista, segundo acusação da PGR.

O diagnóstico no EstadoMaior é de que o COpEsp se tornou uma espécie de “exército dentro do Exército”, com autossuficiência excessiva, desempenhando funções além daquelas para as quais foi programado: ações de comandos e de forças especiais.

Os “kids pretos” são citados na denúncia como parte da “organização criminosa” que tramou uma ruptura. “Esse grupo atuou para pressionar o comandante do Exército e o Alto-Comando, formulando cartas e agitando colegas em prol de ações de força no cenário político”, diz a acusação. 

Monica Gugliano, originalmente para O Estado de S. Paulo, em 06.03.25

Ministério da Defesa publicou link para canal com pedido de golpe de Estado em 2022

Perfil oficial da pasta compartilhou, após a derrota de Bolsonaro contra Lula, um canal do Telegram com pedido ‘dê o golpe Jair’; tuíte segue no ar

O perfil oficial do Ministério da Defesa publicou em 7 de novembro de 2022, ainda sob o governo Bolsonaro, um tuíte que leva para um canal no Telegram com uma mensagem de pedido de golpe de Estado. A publicação permanece por 28 meses no ar. Procurado, o ministério não quis comentar.

A postagem original no então Twitter foi feita oito dias após a derrota do então presidente Jair Bolsonaro (PL) para Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na eleição. O ministro da pasta era o general Paulo Sérgio Nogueira, que havia sido antes comandante do Exército.

O tuíte da Defesa orienta o usuário a conferir na íntegra uma nota sobre o relatório do trabalho de fiscalização do sistema eletrônico de votação, mas o link publicado leva para outra rede social, o Telegram. Ali, há uma única mensagem publicada: “Dê o golpe jair”, diz o texto ao lado de um emoji de bandeira do Brasil. Veja no vídeo abaixo.

Publicação no antigo Twitter tratava de relatório sobre integridade das urnas, mas direcionava para chat do Telegram com mensagem "dê o golpe jair"

O pedido de golpe foi postado por um canal no Telegram intitulado “Ministério da defesa”, com erro no uso de letra minúscula no nome da Pasta. Esse canal conta com apenas 289 inscritos e não é o oficial da pasta.

Já a conta oficial da Defesa no Twitter (rebatizado de X), hoje administrada pelo governo Lula, tem 910 mil seguidores e faz publicações semanais. O mesmo ministério também tem uma conta no Telegram que hoje tem mais de 20 mil seguidores.

Consultados informalmente, membros da pasta não souberam dizer se o episódio se trata de um hackeamento ou teve o envolvimento de algum servidor.

Há registros feitos por usuários no Twitter naquela semana de que a mensagem pedindo golpe foi feita entre a noite do dia 9 e a tarde do dia 10, dias após a criação do canal. No post, consta como última edição às 13h11 do dia 10. A publicação ocorreu em meio ao envolvimento direto do ministério e de setores das Forças Armadas para investigar as urnas eletrônicas.

Antes do pedido de golpe, a conta da Defesa havia divulgado um aviso sobre o trabalho que fizera na auditoria das urnas. Uma nota replicada no site oficial da Defesa, ainda no ar, do dia 7 de novembro, dizia que, dali a dois dias, o ministério encaminharia ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) o relatório do trabalho de fiscalização do sistema eletrônico de votação, realizado pela equipe de técnicos militares das Forças Armadas.

O relatório, entregue no dia 9, no entanto, não apontou qualquer fraude eleitoral e ainda reconheceu que os boletins de urnas e os resultados divulgados pelo TSE eram idênticos. Ou seja, o boletim que a urna tinha imprimido registrando os votos dados ao final da votação conferia com o resultado da totalização divulgada pelo tribunal.

Apesar disso, Nogueira pedia que fosse feita uma investigação técnica urgente sobre eventuais riscos à segurança das urnas. O ministro se referiu a uma suposta possibilidade de que um “código malicioso” pudesse interferir no funcionamento dos aparelhos de votação.

O Estadão apurou naquela ocasião que o uso dessa expressão pelo ministro da Defesa foi interpretada no TSE como uma forma de Nogueira atender de alguma forma ao presidente Jair Bolsonaro, que contava com esse relatório como a última cartada para contestar o resultado da eleição.

A conclusão do Ministério da Defesa de Bolsonaro apresentou mais de 5 mil palavras reunidas em 22 páginas de texto. O termo “fraude” não constou no documento. Mas a construção do relatório deixava aberta uma suposta chance de interferência eleitoral, mesmo não apresentando qualquer evidência.

Naqueles dois últimos meses, autoridades do governo federal e da cúpula das Forças Armadas se reuniram, planejaram um golpe de Estado e alimentaram a expectativa de seus apoiadores por uma intervenção no processo eleitoral, conforme mostraram posteriormente investigações da Polícia Federal.

Áudios revelados pela TV Globo no mês passado mostram o envolvimento de militares e civis com cargos no Poder Executivo no plano para tentar um golpe de Estado. Há registros de oficiais em trocas de áudios incitando a participação popular no esquema.

Tanto Bolsonaro quanto Nogueira foram denunciados ao Supremo Tribunal Federal (STF) no mês passado pela Procuradoria-Geral da República (PGR) por tentativa de golpe de Estado. Outras 32 pessoas foram apontadas na denúncia do procurador-geral, Paulo Gonet.

A atuação de Nogueira no suposto esquema golpista é descrita como “indiscutível” no documento. Gonet citou que o general apresentou uma minuta de teor golpista aos três comandantes das Forças Armadas. O episódio foi confirmado à Polícia Federal pelo comandante do Exército, general Freire Gomes, e pelo chefe da Aeronáutica, o tenente-brigadeiro Carlos Baptista Junior. Depois, seguiu o PGR, o então ministro da Defesa voltou a tratar do tema com os comandantes em seu gabinete.

Guilherme Caetano, originalmente para O Estado de S. Paulo, edição online, em 10;03.25

'É melhor sair da política muito bem do que já velho', diz Sarney ao responder sobre Lula

Prestes a fazer 95 anos, primeiro presidente civil após a ditadura, cuja posse completa quatro décadas nesta semana, defende apoio do MDB à reeleição do petista

O ex-presidente José Sarney, prestes a completar 95 anos — Foto: Cristiano Mariz/Agência O Globo

Quem chega à sala da casa do ex-presidente José Sarney em Brasília contempla, em meio a uma coleção de arte sacra, um quadro com o retrato do frei Francisco de Bourdemare, missionário espanhol enviado ao Maranhão no século 17. Na parede em frente, uma imagem do próprio Sarney, de dimensões maiores, com a faixa presidencial, dá o tom imponente ao ambiente, frequentado por presidentes, ex-mandatários e lideranças políticas variadas. Enquanto desenvolve um raciocínio político aguçado, o ex-presidente caminha com lentidão e diz que o envelhecimento começa pelas pernas. “É melhor sair muito bem (da política) do que já velho”, diz ele.

Prestes a fazer 95 anos de idade, Sarney se mantém ativo como conselheiro político. Longe do dia a dia da vida partidária desde o fim de seu quinto mandato como senador pelo MDB , em 2015, ele divide seu tempo entre a capital federal e São Luís (MA) escrevendo um livro sobre a necessidade de uma reforma do sistema eleitoral no país, baseado na experiência do primeiro civil a ocupar a Presidência da República após a redemocratização. No próximo sábado, completam-se quatro décadas da posse, data considerada um marco do fim da ditadura.

Em uma de suas raras entrevistas, ele critica a falta de liderança no Congresso, diz que Lula está governando num tempo difícil, defende aliança do MDB com o petista em 2026 e afirma que o Brasil precisa superar a polarização para trilhar o caminho da prosperidade. “A política de inimigos foi superada”, pontua.

O governo Lula tem enfrentado queda na popularidade, em especial pela alta nos preços dos alimentos. Seu governo também sofreu com a inflação. A que o senhor atribui a atual crise?

O presidente Lula fez excelentes governos. E a democracia possibilitou um operário no poder. Isso raramente acontece. Mas ninguém governa o tempo no qual se vai governar. Há tempos em que governamos na abundância, mas há tempos em que governamos na escassez. Lula não está nos governando num tempo de bonança, mas sim num tempo difícil, não só para o Brasil, mas de uma maneira internacional. Eu governei num tempo que a História se contorcia. Criamos as eleições diretas. Asseguramos direitos civis e os direitos humanos. Criamos uma Constituição.

O MDB esteve presente em todas as gestões petistas. Essa aliança deve ser renovada em 2026?

Não administro a convivência partidária e as alianças, mas sou o presidente de honra do MDB e vejo que sempre foi um partido difícil porque tem democracia interna. Ninguém domina o MDB. Não há dono do partido. Acho que o MDB deve apoiar (Lula), sim. Entre os candidatos que estão colocados, Lula ainda é o homem que tem a maior popularidade, a maior confiança do povo brasileiro.

O senhor concorreu pela última vez numa eleição aos 76 anos. Lula, se renovar o mandato, terá 81. O que o senhor acha de ele entrar na disputa com essa idade?

Só ele pode decidir. Quando deixei de ser candidato, muita gente no Amapá pedia que eu fosse candidato. Achei que não deveria. É melhor sair muito bem do que já velho.

O senhor vê carência de alternativas a Lula na esquerda?

Temos tido surpresas nas eleições. Tivemos uma grande surpresa com o Fernando Collor. Outra com o Bolsonaro. Ninguém podia ter imaginado que Bolsonaro, em algum momento, pudesse ser presidente. Não dá para avaliar o que pode acontecer.

É mais difícil governar hoje com o Congresso, que ganhou poder por meio das emendas, do que na sua época?

O Congresso mudou muito. Houve uma multiplicação dos partidos sem raízes históricas. Não estou querendo julgar, mas acho que naquele tempo seguíamos líderes partidários, pessoas com grande expressão nacional. Atualmente, há falta de liderança do Congresso. A pior coisa que os acontecimentos de 1964 produziram foi a extinção dos partidos, que eram uma formação de líderes. Sem partidos políticos fortes, não há democracia forte. A disciplina partidária democrática é aquela que tem democracia interna. E hoje nós verificamos que os partidos não têm democracia interna.

O novo presidente da Câmara, Hugo Motta, defende o debate sobre uma mudança no sistema do governo para o parlamentarismo. Como o senhor vê essa discussão?

A reforma política é a mais urgente de todas. Vejo que o parlamentarismo algum dia chegará no Brasil. Esse presidencialismo de coalizão leva a muitas acusações de corrupção, porque o presidente tem que aliciar, fazer maiorias e todos têm reivindicações que muitas vezes extrapolam o interesse público. Defendo o parlamentarismo mitigado, a exemplo do francês. Com voto distrital misto.

O Brasil comemora nesta semana 40 anos de redemocratização, que se iniciou com o seu governo. Qual é o principal aprendizado deste período?

Sem dúvida alguma foi a melhor transição democrática feita nos países da América. Conseguimos fazer uma transição sem hipotecas militares, como no Chile. Fizemos com que os militares voltassem aos quartéis e que se dedicassem a garantir as funções constitucionais da democracia do Brasil. Nesse período, o país constituiu uma democracia consolidada. Nesses 40 anos, não tivemos nenhum hiato. Este é o maior período democrático da história brasileira.

O ex-presidente José Sarney — Foto: Cristiano Mariz/Agência O Globo

O senhor acredita que em algum momento neste período a democracia no Brasil esteve sob risco?

Sim, viveu muitos riscos. Principalmente durante o período da transição. Houve muitas ameaças de retrocessos. Durante a Constituinte também.

Os atos de 8 de janeiro e a trama golpista no governo Bolsonaro denunciada pela Procuradoria-Geral da República foram o momento de maior tensão da nossa democracia?

Os fatos do 8 de janeiro foram uma pressão muito grande sobre a democracia. Mas vejo que criamos instituições fortes, capazes de aguentar dois impeachments e também esse episódio. Isso tudo ainda será devidamente apurado pela Justiça, ainda não se tem uma noção exata do que estava ocorrendo. Foi um fato grave, mas foi mais um momento da nossa democracia em que as Forças Armadas mostraram que elas estão aí para sustentar a Constituição, a democracia, a liberdade. A maioria dos militares foi contra. Aqueles que se meteram eram na maioria da reserva. A democracia prevaleceu.

Como o senhor avalia as discussões no Congresso de conceder anistia aos envolvidos nos atos golpistas do 8 de janeiro?

Isso tem que ser remetido ao Congresso. Não posso opinar sobre hipóteses.

Como é possível superar um cenário de maior polarização política?

O Brasil tem que superar isso porque casa dividida não prospera. A política se ideologizou muito nos últimos anos e não pode ser uma política de inimigos, e sim de adversários. A política de inimigos era a política do nazismo, do fascismo, do comunismo. O mundo superou isso no passado, chegamos a tempo de economia liberal e democracia plena.

O senhor foi opositor do ex-presidente Juscelino Kubitschek. Como contornou essa rivalidade?

Fui muito injusto com ele. Cheguei a pedir a ele que relevasse aquele tempo (Sarney era da UDN, partido de oposição ao governo JK) e as coisas que eu disse. Mas quando o Juscelino foi cassado (como senador), eu o recebi no Maranhão, dei a ele um almoço e chamei-o de presidente. Me escreveu uma carta muito elogiosa. A partir daí, tivemos um relacionamento estreito e ele dizia que eu era um amigo dele no ostracismo.

Ivan Martinez-Vargas, de Brasília - DF, originalmente para O Globo, em 09.03.25

STF não tem menor condição de reorganizar sistema político, diz Fernando Limongi

Ao lado de historiador, professor lança livro sobre Nova República, critica atuação do Supremo e diz que intelectuais deveriam respeitar o Congresso


O professor e cientista político Fernando Limongi, que lança livro sobre a Nova República, ao lado do historiador Leonardo Weller - Karime Xavier - 16.mai.23/Folhapress

A Nova República foi fundada na construção de consensos entre elites políticas. Esse traço pode ser visto como negativo ou positivo. Por um lado, tais negociações impediram soluções definitivas para desigualdades que marcam a sociedade brasileira; por outro, também evitaram que os conflitos descambassem em violência, produzindo estabilidade.

Esse é um dos eixos de "Democracia Negociada - Política Partidária no Brasil da Nova República", do historiador Leonardo Weller e do cientista político Fernando Limongi, ambos professores da FGV-SP.

Um homem está sentado em uma cadeira de balanço no jardim. Ele está inclinado para trás, com uma expressão relaxada. O fundo é composto por plantas verdes e flores, criando um ambiente natural e tranquilo.

No livro, os dois retornam à lenta transição iniciada no governo de Ernesto Geisel para mostrar como a ditadura se empenhou para que a direita continuasse a ter seu quinhão de poder na democracia —e, de fato, vários aliados do regime conseguiram se perpetuar. Os autores passam pelos embates na Constituinte e avançam por diversos governos, até chegar ao impeachment de Dilma Rousseff (PT), em 2016.

O resultado é uma síntese informativa sobre a história recente do país. A dupla defende que a democracia brasileira viveu seu auge entre o governo Itamar Franco e a gestão da petista —quando, à direita ou à esquerda, havia um consenso em defesa de avanços sociais.

Agora, bem, agora é tudo mais complicado, diz Limongi à Folha. Ele defende que não adianta espernear contra o conservadorismo da sociedade brasileira, diz que os intelectuais do país deveriam respeitar o Congresso como voz da sociedade e sustenta que o Supremo Tribunal Federal não tem capacidade para tutelar o sistema político.

Uma grande preocupação da ditadura é que, após a transição, a direita pudesse continuar no poder. E várias lideranças desse campo, de fato, conseguiram continuar na política. O sistema que nasce na Nova República tende ao conservadorismo ou esse traço é uma vocação do eleitor brasileiro?

Difícil dizer. Mas não há um viés institucional que provoque maior ou menor conservadorismo. Não há nenhum preceito, é o funcionamento da democracia. A democracia é intrinsecamente conservadora, o jogo democrático tende para o centro.

Você precisa negociar, você não consegue impor a sua vontade. Aqui, a pressão por reformas e mudança bate no Executivo —e a pressão por conservação também.

Há coisas que a maioria da população não quer. Ela pode ser mais conservadora em questões morais, culturais, e isso é uma coisa com a qual você tem que viver. Se você é um pouco mais moderninho, mas a maioria é conservadora, viva com isso. Você não pode impor sua visão, mas isso não quer dizer que a culpa seja das instituições.

Não podemos chegar a um acordo, por exemplo, sobre permitir ou não o aborto. Não há um meio termo. Ou pode ou não pode. Nosso sistema é majoritário e permite, pelo Congresso, que a sociedade seja ouvida. Há uma tendência nas análises no Brasil de desrespeitar o Legislativo como uma expressão da sociedade

Em que sentido?

Para fazer uma referência, por exemplo, ao presidente do STF, Luís Roberto Barroso, que falou que cabe ao Supremo empurrar uma agenda modernizadora… Quando a corte tentou avançar na questão do aborto, criou-se um problema. Tanto FHC quanto Lula queriam ter ido mais à frente nesse ponto, mas sentiram que a sociedade não queria porque o Congresso expressou isso, e precisaram moderar posições.

Aí vem o Supremo e dá a reação que deu. Parte dessa reação é: "Vocês não estão me ouvindo? Estamos dizendo que não é para fazer isso!". A sensibilidade dos políticos e a negociação deles precisa ser valorizada. Os intelectuais brasileiros menosprezam o Congresso o tempo inteiro.

A visão negativa do Legislativo e a identificação dele com o centrão, acho que isso é uma reação ideológica e desrespeitosa com as instituições representativas. É como se o Congresso não fosse legítimo. Respeite o resultado da eleição. Se não gostou, trabalhe para inverter. O Brasil é isso aí, um país mais conservador em valores.

Um dos seus pontos centrais é como a Nova República não foi capaz de romper com a herança da ditadura. As investigações sobre os atos golpistas —e, agora, a denúncia contra os envolvidos— sinaliza um rompimento dessa cultura de conciliação?

Um ponto ausente do livro é uma análise de como a Constituinte reforçou demais o poder tanto do Executivo quanto do Judiciário, representado no Supremo. Esse fortalecimento vem de uma desconfiança do Legislativo porque você acha que o Congresso vai ser necessariamente conservador. Essa ideia é vista como fato, vem desde os anos 1970, ou até antes.

No começo do sistema, como esses juízes do Supremo ainda vêm do regime militar, eles têm outra cabeça e não intervêm tanto. A partir da crise do mensalão e da derrubada da cláusula de barreira pelo Supremo, é o sinal de que o STF resolveu que vai tutelar o sistema político —e que a desconfiança não deve ser só quanto ao Legislativo, mas também quanto ao Executivo. Partindo de uma interpretação equivocada do que seria o tal presidencialismo de coalizão.

O Supremo não tem a menor condição de reorganizar o sistema político porque não sabe como o sistema funciona, tem ideias mirabolantes. Aí você tem uma expansão da ação do Supremo —e a ação contra o Bolsonaro é parte desse processo.

Não começa com o ex-presidente. Houve o momento em que o Supremo impediu Lula de ser candidato, sob a mesma racionalidade, de que o petista seria um perigo para a democracia. A Lava Jato é parte desse processo. Posso ser contra o Lula ou contra o Bolsonaro… Mas há uma intervenção deliberada, sequencial, do Judiciário para controlar o sistema político. E eu preferia que isso não acontecesse porque esses caras não são eleitos.

Vê um recuo do Judiciário como algo possível?

Não. Depois que saiu da garrafa, o gênio não volta. Precisaria de uma consciência de que esse poder é excessivo e milita contra a própria instituição, para que a própria instituição se contivesse. Mas pensar nisso é acreditar em fadas, em varinha mágica. Pode se restringir mais, diminuir essa expansão…

Mas há também um aumento do poder do Congresso, sobretudo desde o governo Michel Temer e em especial sobre o Orçamento, por meio das emendas. Esse é também um gênio já fora da garrafa?

Não acho que esse seja um gênio fora da garrafa, nem que a gente saiba quanto esse poder do Legislativo realmente aumentou, quanto ele pode ser reconfigurado etc. Não há nenhuma análise empírica sobre o poder dessas emendas, quem de fato as controla… Mas é um exagero pensar que todo o Congresso se beneficia delas. Quem se beneficia é um pequeno grupo.

Estão colocando limites, é mais difícil de voltar ao status quo, mas não quer dizer que o Executivo perdeu controle sobre o Orçamento. Perdeu sobre uma parcela pequena. Para um grupo de deputados? Sim. O que esse grupo está fazendo e quais as consequências para o sistema político? Ainda é uma incógnita.

O que sabemos de estudos do passado, antes deste momento de agora, é que emenda não dava tanta vantagem eleitoral quanto se achava. Emenda é parte desse folclore, dessa desconfiança de que o Congresso vai ser sempre uma baixaria.

Boa parte desse argumento anti-Legislativo se baseia numa suposição de que alguém sabe qual seria a distribuição ótima dos recursos das emendas. Quem tem essa informação? O planejador central? Os economistas neoliberais, que não pensam no sistema de informação necessário para ver quais localidades pedem recursos? Ou o editorialista da Folha? Parece que o editorialista sabe qual cidade precisa de mais dinheiro para o SUS.

O sistema representativo produz parte dessa informação. É preciso ouvir os deputados, não o burocrata dos ministérios da Saúde, da Educação. Há distorções que vêm disso, não é o melhor sistema? Ok, mas não é o pior. Há uma gritaria sobre isso que é demasiada.

Depois de 21 anos de ditadura militar, Tancredo Neves (PMDB) venceu Paulo Maluf (PDS) na disputa para a Presidência da República em votação no Colégio Eleitoral. A histórica vitória do político mineiro em 15 de janeiro de 1985 passou a ser considerada o ponto inicial da chamada Nova República, que agora completa quatro décadas. Não faltaram, porém, obstáculos nessa transição da ditadura para a democracia, a começar pela morte de Tancredo em 21 de abril daquele ano.

O cenário para 2026 aponta para mais uma disputa bipartidária, como tem sido a regra na Nova República?

Tem muito imponderável aí para fazer qualquer chute. Eleição majoritária, mesmo com dois turnos, tende a ter poucos candidatos. Mesmo que nominalmente haja muitos, os viáveis tendem a ser dois e meio —esse meio sendo a tal da terceira via. Se não chover canivete, vai dar isso. Ainda mais quando o presidente é candidato à reeleição, muito provavelmente ele está no segundo turno.

Temos muitos governadores em estados centrais completando seu segundo mandato. Para quem é ambicioso, em vez de ir para presidente, pode ir para governador. A incógnita é o Tarcísio de Freitas [Republicanos], governador de São Paulo. Depende da organização da direita, se Bolsonaro é candidato, se apoia o governador paulista… A outra é a saúde do Lula, dado o efeito Joe Biden.

Quando vocês dizem que a Nova República viveu um auge entre Itamar e Dilma, isso significa que estamos vivendo um declínio agora?

Antes havia maior moderação, uma agenda comum. Avanços em saúde, educação e proteção social eram consensos. Bolsonaro chacoalha esse consenso e diz que vai desfazer tudo o que foi feito depois da redemocratização. E Paulo Guedes diz que tudo o que cheira a Estado tem que sair.

Não fizeram nada disso. Fizeram muita bobagem, destruíram muita coisa, mas não reverteram. Quando se viram na necessidade de fazer campanha para a reeleição, o fizeram da forma mais irresponsável fiscalmente e politicamente possível. Fizeram o receituário do fiscal irresponsável e ampliação de gastos sociais.

Isso diz algo. Qualquer tentativa de reverter esse processo de maior atenção social não tem suporte político - eleitoral. E isso é bom.

Então, de um lado, talvez estejamos exagerando demais o conflito no plano cultural, moral, prestando muita atenção ao simbólico, sem perceber o que está na base. Por exemplo, no pacote fiscal que o ministro Fernando Haddad estava armando, todo o problema sempre foi onde cortar. E onde tem para cortar? Só gasto social. Aí é duro, o custo político é muito alto.

Outra questão é o manejo da vinculação entre política social e política salarial. Houve uma valorização real do salário mínimo, e isso impacta o maior gasto social, que é a Previdência. Haddad jogou como balão de ensaio desconectar as duas coisas, mas ninguém aceita, é perigoso porque o governo vai ter um incentivo para diminuir o pagamento da Previdência. E isso bate nas pessoas. Então, o governo atou as próprias mãos.

Dá uma falta de flexibilidade, mas o mundo é o que é. Não vamos ter um crescimento maravilhoso porque é assim que está funcionando a economia brasileira. É viver com isso aí. E vai ser esse Congresso. A sociedade brasileira é conservadora, não adianta gritar. É baixar as expectativas e não ficar gritando que está tudo errado, como um bando de palmeirenses malucos.

Democracia Negociada - Política Partidária no Brasil da Nova República

Preço R$ 61 (ebook R$ 43)Autoria Leonardo Weller e Fernando Papaterra LimongEditora FGV (256 págs.)

RAIO-X

Fernando Limongi, 67

Doutor em ciência política pela Universidade de Chicago, é professor titular aposentado de ciência política da USP. Atualmente dá aulas na Escola de Economia de São Paulo da FGV (Fundação Getúlio Vargas). É autor de livros como "Operação Impeachment - Dilma Rousseff e o Brasil da Lava Jato" (2023) e "Política Orçamentária no Presidencialismo de Coalizão" (2008), este em co-autoria com Argelina Figueiredo.

Mauricio Meireles, originalmente para a Folha de S. Paulo, edição impressa, em 07.03.25


Lula se refugia entre aduladores e reforça erros do governo

Presidente encara impopularidade com lentes do passado, recusa responsabilidade fiscal e se afasta de forças moderadas

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) - Adriano Machado - 29.jan.25/Reuters

Por uma mistura de falta de visão estratégica, apego a ideias obsoletas e má leitura do equilíbrio de forças na política, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) avança pela segunda metade de seu mandato sem um projeto claro sobre o que pretende fazer daqui para a frente. Na dúvida, ele vira à esquerda.

Na economia livrou-se dos últimos vestígios daquele verniz que vez ou outra o fazia prestigiar a agenda de mínima responsabilidade orçamentária proposta pelo seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad. A opção pela gastança, que sempre foi a preferida de Lula, agora está escancarada.

O presidente está à caça de "medidas" como liberações de créditos e recursos do FGTS que, de acordo com a sua cartilha primitiva de gestão pública, possam ajudá-lo a combater a impopularidade. Como decidiu torrar recursos no início da administração, as opções agora são restritas.

O custo de continuar pisando no acelerador também ficou difícil de enfrentar. Não dá para empurrar a conta para o mandato seguinte, um clássico na política, com a inflação à porta. Toda pressão extra no gasto federal vira carestia, toda heterodoxia populista impulsiona a cotação do dólar e as taxas de juros da praça.

Esse será o efeito de qualquer "atitude mais drástica", palavras de Lula, que o presidente vier a tomar para frear na marra a inflação da comida. A ida ao supermercado não deixará tão cedo de ser uma experiência desagradável para milhões de brasileiros.

Diante desse quadro desfavorável, o chefe do governo tem basicamente duas linhas de resposta.

A mais promissora, embora desconfortável para um líder vaidoso, passa pelo exercício da autocrítica e pela inculcação da necessidade de alterar a rota. Trata-se de se reaproximar das racionalidades econômica —que exige neste momento austeridade fiscal— e política —a aliança com as forças moderadas na sociedade e no Congresso.

A segunda vereda é a de reforçar o que já se provou um equívoco. Dar as costas à agenda do controle da dívida pública e encastelar-se entre forças sociais e políticas de ideias envelhecidas e pouca representatividade parlamentar foi a escolha de Lula.

Ele preferiu a familiaridade de assessores e aduladores que atribuem o declínio da popularidade à má comunicação do governo, e não à desconexão com o Brasil atual. Nomeou uma imoderada, Gleisi Hoffmann, para articular as pautas do governo no Legislativo e cogita nomear outro, Guilherme Boulos (PSOL), para o ministério.

Os titulares da Previdência e do Trabalho ainda não superaram o século 20 nas suas mentalidades. O mandatário continua achando que posar de pai dos pobres, de provedor-geral da nação, vai lhe render dividendos eleitorais.

Sem inspiração, sem projeto, sem tirocínio, sem nem sequer a sagacidade de outras passagens do maior líder da moderna esquerda brasileira, a terceira Presidência Luiz Inácio Lula da Silva corre grande risco de ser a pior.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 09.03.25 (editoriais@grupofolha.com.br)

Trump dobra a aposta no confronto

Presidente se compromete com ações drásticas, como a ofensiva tarifária e o alinhamento com Putin em relação à Ucrânia

Donald Trump, presidente dos EUA, discursa no Congresso, em Washington - Mandel Ngan - 4.mar.25/Pool via Reuters

Em 1987, quando era só um polêmico empreendedor, Donald Trump lançou um livro, escrito de fato pelo jornalista Tony Schwartz, chamado "A Arte do Negócio", sobre sua suposta genialidade empresarial.

A obra pode ser um guia para entender a mente do presidente americano, que suscita alarme com sua abordagem agressiva em temas como a ofensiva tarifária, a Guerra da Ucrânia ou o futuro da Faixa de Gaza.

Se está mantido o ideário negocial do Trump de quase 40 anos atrás, todas as ameaças seguem uma lógica: tumultuar o ambiente e assustar ao máximo o rival com exigências absurdas para, ao fim, arrancar concessões.

É uma leitura plausível dos acontecimentos, mas que não chega a ser tranquilizadora. Passados 45 dias de sua volta à Casa Branca, o republicano parece dobrar a aposta no confronto.

A começar pela guerra tarifária, que foi disparada contra os vizinhos México e Canadá e logo suspensa. Agora, as alíquotas de importação de 25% entraram em vigor, assim como os 20% aplicados sobre produtos chineses, o alvo real do equilíbrio comercial pretendido no discurso de Trump.

Ainda falta o teste da realidade para o argumento de que tal protecionismo vai gerar empregos, mas a ideia de que ele fará com que os EUA importem inflação está bastante consolidada. A medida acarreta juros mais altos, numa espiral de impactos no varejo doméstico e para consumidores de outros países, como o Brasil.

Dada a interconexão entre as maiores economias do mundo, EUA e China, a resultante dessa escalada tende a ser nefasta.

Na Europa, Trump ungiu Volodimir Zelenski como seu bode expiatório, armando uma espécie de emboscada ao vivo em encontro na Casa Branca. A partir dessa debacle histórica, com direito a bate-boca e expulsão do visitante, o americano suspendeu a ajuda militar à Ucrânia na sua luta contra Vladimir Putin.

Zelenski pediu perdão, mas parece improvável que o republicano vá deixar o alinhamento com o autocrata russo. Aqui, não seguiu o conselho central de seu livro: "A pior coisa que você pode fazer em uma negociação é parecer desesperado para fechá-la".

O embate azedou as relações entre Trump e a Europa, com a aliança militar Otan à frente. Governantes no continente correm a fazer contas para se rearmar, o que leva tempo e, ao fim, favorecerá empresas americanas.

Toda essa movimentação foi reafirmada no primeiro discurso do mandatário ao Congresso nesta gestão, com outros aspectos inquietantes. O anômalo ideário de enxugamento da máquina pública pelas mãos do bilionário Elon Musk foi aclamado, e Panamá e Groenlândia foram de novo ameaçados, assim como políticas ambientais e de diversidade.

Sem possibilidade de reeleição e em cenário muito mais favorável a ações drásticas do que no primeiro mandato, o Trump de 2025 confronta-se com o de 1987; resta saber qual prevalecerá.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 06.03.25 (editoriais@grupofolha.com.br)