sexta-feira, 17 de outubro de 2025

É urgente retomar território crescente em poder do crime

Quase um em cinco brasileiros diz conviver com organizações criminosas em sua vizinhança, revela pesquisa

Domínio: Facção criminosa dita suas regras em muro de Barra Mansa, no interior do estado do Rio — Foto: Gabriel de Paiva/Agência O Globo

O domínio de vastas extensões do território brasileiro por facções criminosas e milícias tem se agravado. Praticamente um em cinco brasileiros (19%) diz conviver com o crime em sua vizinhança, segundo pesquisa Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). São ao menos 28,5 milhões de cidadãos expostos ao crime organizado. No levantamento anterior, do ano passado, eram 23 milhões, ou 14% da população. Os dados refletem, no entender de Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do FBSP, a ampliação e o controle de territórios e mercados pelas facções.

A presença dos grupos criminosos é mais sentida em cidades com mais de 500 mil habitantes, capitais e municípios do Nordeste. O crime, diz a pesquisa, cerca tanto os moradores de baixa renda (19%) quanto os de renda mais alta (18%). Mais de um quarto (27%) da população dessas áreas afirma conhecer cemitérios clandestinos, onde são sepultados mortos que não aparecem nas estatísticas oficiais.

A pesquisa traduz a maior angústia que aflige os brasileiros. O cenário se revela em saraivadas de tiros nas guerras entre quadrilhas, na interdição de vias importantes em decorrência da violência, no fechamento constante de escolas e unidades de saúde, na cobrança de taxas ilegais, no medo que impõe mudanças de comportamento, restringindo o direito de ir e vir.

Os métodos usados até agora não têm dado resultado contra o crime organizado, a despeito dos altos investimentos em segurança. Não dão conta de facções cuja atuação ultrapassa a divisa dos estados e as fronteiras do país. Só serão combatidas com engajamento do governo federal e ação conjunta e coordenada de todas as forças da lei.

Organizações criminosas: Levantamento do GLOBO mostra que Brasil tem 64 facções em atuação no país

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança, que tramita no Congresso, é um primeiro passo no rumo certo. Ela amplia a participação do governo federal no combate a facções e milícias, aumenta as atribuições das polícias Federal e Rodoviária Federal, reforça o financiamento, unifica bases de dados e propõe ações integradas sob coordenação federal. A oportunidade não pode ser desperdiçada. Divergências com os estados, que temem interferência de Brasília, não podem travar projeto tão relevante. Parlamentares podem até aperfeiçoar o texto, como quer o relator, deputado Mendonça Filho (União-PE), ao vetar a progressão de regime para líderes de facções. Mas sua essência precisa ser mantida.

É fundamental também que o governo acelere o pacote antimáfia, que ganhou relevância após a operação que expôs a infiltração do crime no mercado formal, usando postos de gasolina e instituições financeiras para lavar dinheiro. As ações previstas incluem aumento de penas e atualização da legislação para tornar mais célere a investigação de organizações criminosas.

É urgente que essas propostas avancem. A situação é crítica — e se agrava a cada dia. Um levantamento do GLOBO mostrou que o Brasil tem pelo menos 64 facções criminosas espalhadas pelas 27 unidades da Federação. Cada vez mais, elas se infiltram em atividades formais. A população está assustada. A preocupação do brasileiro com segurança pública tem crescido e se consolidou como a maior de todas, bem à frente de economia e saúde, revela a última pesquisa Quaest. Quanto mais tempo governo e Congresso levarem para agir, mais difícil será retomar os territórios do crime.

Editorial d'O GLOBO, em 16.10.25

Lula sobe no salto e rebaixa a Presidência

Ao classificar o Congresso como de ‘baixo nível’, o presidente afronta a legitimidade das urnas e sobrepõe seu interesse eleitoral ao interesse público e à institucionalidade do cargo que ocupa


Hugo Motta foi vaiado por apoiadores de Lula, mas exaltou o presidente como 'o que mais fez pela educação do Brasil' / Foto Mariana Ramos - Câmara dos Deputados.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltou a confundir sua posição de chefe de Estado e de governo com a de líder de facção política. Ao afirmar, diante do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), que o Congresso “nunca teve o baixo nível como tem agora” e que a “extrema direita que se elegeu em 2022 é o que existe de pior”, Lula não só cometeu uma descortesia institucional, como afrontou o princípio basilar da democracia representativa: o respeito à legitimidade das urnas.

O discurso foi proferido em ambiente confortável, um evento pelo Dia dos Professores no Rio de Janeiro, diante de uma plateia simpática ao presidente da República e ao PT. Lá, à vontade entre apoiadores históricos, Lula fez o que sabe fazer melhor: transformar um ato oficial em palanque eleitoral. O antagonismo com o Congresso certamente será uma das linhas de sua campanha pela reeleição em 2026. O discurso maniqueísta está pronto: de um lado, o “povo”, que Lula diz representar; de outro, as “elites”, encarnadas nas instituições que impõem limites ao seu voluntarismo ou simplesmente não seguem a cartilha petista.

Com seus erros e acertos, o Congresso é a expressão da pluralidade social e política do País. Seus 513 deputados e 81 senadores foram eleitos pelo voto popular e gozam da mesmíssima legitimidade da qual está investido o sr. presidente da República. Nesse sentido, o Congresso não é “bom” nem “ruim” por natureza; apenas é o que é, reflexo das escolhas dos eleitores. Portanto, ao desqualificá-lo em bloco, Lula desrespeita não apenas os parlamentares que não comungam de sua ideologia, mas também os milhões de brasileiros que os elegeram.

É natural que Lula discorde de posições assumidas por parte do Congresso, sobretudo da Câmara, que, sob nova direção, tem imposto derrotas ao governo e aprovado medidas de autoproteção que soam escandalosas à opinião pública. A aprovação da chamada PEC da Blindagem, que levou milhares de cidadãos às ruas em protesto no dia 21 de setembro, é exemplo disso. Mas discordar é uma coisa, desqualificar é outra. Cabe ao chefe do Executivo se portar com a serenidade e o senso de responsabilidade que seu cargo exige, e não fomentar o descrédito em uma instituição quando esta contraria seus desejos ou não se alinha às suas visões de mundo.

A descortesia de Lula com Hugo Motta, a quem atribuiu erroneamente a presidência do Congresso – cargo que pertence ao senador Davi Alcolumbre (União-AP) –, é mais do que uma “gafe”. É um sintoma da soberba de quem parece ter se deixado inebriar pela retomada da popularidade e pela conveniência política de ter os bolsonaristas, que sofrem alta rejeição, como adversários preferenciais. A imposição de sanções políticas e econômicas ao Brasil pelos EUA tem sido explorada por Lula como a oportunidade perfeita para voltar à retórica do confronto: ele, o líder do “Brasil soberano”, contra as forças do atraso que conspiram contra o País – as quais o presidente, genericamente, empacota como “extrema direita”.

Ocupadíssimo com a campanha eleitoral, o presidente parece ter esquecido que tem um país para governar. E, para isso, não pode prescindir do Congresso. Lula governa em um regime presidencialista multipartidário, que ele conhece bem como poucos. Não é possível aprovar reformas, avançar em políticas públicas nem ao menos fingir buscar a estabilidade fiscal sem construir pontes com as forças políticas presentes no Legislativo – de todos os matizes.

O discurso do confronto institucional, além de irresponsável, isola o governo em um momento em que a economia clama por cooperação entre os Três Poderes. A agenda de equilíbrio fiscal, a reforma administrativa e a segurança pública, entre outras pautas prioritárias para o País, exigem pactos que, por óbvio, não virão dos insultos. Ao subir no salto e atacar genericamente o Congresso, Lula não enfraquece seus adversários políticos – rebaixa a própria Presidência da República.

É sintomático que Lula tenha escolhido um palanque cercado por apoiadores para expressar seu desrespeito por um Poder. Surdo pelos aplausos fáceis, deu vazão à empáfia de quem já se vê reeleito e, portanto, pode prescindir de alianças. Azar do País.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 17.10.25

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

PF identifica três núcleos em esquema de venda de sentenças judiciais no STJ

Servidores e assessores internos do STJ “exerciam papel estratégico, introduzindo alterações em minutas e promovendo ajustes em despachos e decisões, criando condições objetivas para a manipulação de resultados”.

Fachada do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília — Foto: Pablo Jacob/Agência O Globo

As investigações da Polícia Federal envolvendo um esquema de venda de sentenças judiciais no Superior Tribunal de Justiça (STJ) apontaram a existência de três núcleos atuando por anos na Corte e recorrendo a uma série de artimanhas, como o uso de mensagens cifradas e o uso de aparelhos telefônicos de fachada, em nome de terceiros, para tentar ocultar a engrenagem criminosa.

A informação consta de um relatório parcial da PF anexado aos autos do inquérito sigiloso que que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), sob a relatoria do ministro Cristiano Zanin, e mira uma rede de lobistas, advogados, empresários e ex-servidores de gabinetes dos ministros Og Fernandes, Isabel Gallotti e Nancy Andrighi. Os ministros não são investigados.

Segundo a apuração, um primeiro núcleo seria o dos agentes públicos vinculados a gabinetes de ministros do STJ, como Daimler Alberto de Campos e Rodrigo Falcão, ex-chefes de gabinete de Gallotti e Og, que seriam responsáveis pelo vazamento de informações sensíveis e antecipação de minutas.

Um segundo núcleo era o dos advogados e lobistas, como Andreson de Oliveira Gonçalves, pivô das investigações, que eram incumbidos de captar clientes interessados em decisões favoráveis. E por fim, o grupo dos empresários e agentes econômicos, sobretudo ligados ao agronegócio, beneficiários diretos das manipulações de decisões judiciais, que concentravam em processos sobre falência de empresas do setor.

“À medida que as análises avançaram, o material probatório trouxe a revelação de um cenário muito mais amplo e complexo do que o inicialmente esperado, apontando robustos indícios da existência de uma rede criminosa sistêmica, composta por múltiplos operadores, camadas de atuação e fluxos financeiros sofisticados, refutando, assim, a ideia de fenômeno criminal isolado ou de uma relação pontual dos envolvidos”, aponta a PF.

Mensagens cifradas

Para tentar esconder as pistas do esquema criminoso, a PF constatou que os investigados salvavam contatos do esquema com “designações genéricas”, como "pedreiro", "piscineiro", "veterinária "ou "advogado", para tentar dar uma “aparência trivial a conversas estratégicas do grupo” e mascarar a identidade dos interlocutores.

“Assim, diálogos que, à primeira vista, pareciam triviais, assumiam significados relevantes no contexto da investigação. Expressões como ‘a obra está pronta’ correspondiam a uma minuta finalizada; ‘faltam os retoques do patrão’ indicavam a necessidade de assinatura pelo magistrado; ‘orçamento’ era utilizado para se referir a valores ajustados”, aponta o relatório.

A investigação sobre os servidores do STJ começou quando a Polícia Federal apreendeu uma série de mensagens no celular do advogado Roberto Zampieri, morto com 10 tiros dentro do próprio carro, em frente ao próprio escritório, em dezembro de 2023.

Ao longo da apuração, os investigadores identificaram registros de negociações de venda de sentenças judiciais, envolvendo a citação a gabinetes do STJ.

De acordo com a PF, o esquema envolvia a atuação de advogados que recorriam a intermediários com bom trânsito nos gabinetes que “movimentavam valores milionários apenas pela promessa de influenciar o resultado dos julgamentos”. De outro lado, servidores e assessores internos do STJ “exerciam papel estratégico, introduzindo alterações em minutas e promovendo ajustes em despachos e decisões, criando condições objetivas para a manipulação de resultados”.

A nuvem do lobista

No aparelho celular de Andreson, por exemplo, foi encontrada uma lista de processos sob a relatoria de Gallotti, com anotações sobre o andamento dos casos, acompanhadas da expressão “voto pronto e enviado para vc”, o que, para a PF, indica uma espécie de “controle paralelo das atividades jurisdicionais”.

“Os dados extraídos da nuvem de Andreson, além de confirmarem sua condição de articulador das manipulações judiciais, revelaram novos elementos de relevância probatória. Entre eles, destacam-se os contatos mantidos com servidores, chefes de gabinete e Magistrados, as tratativas financeiras e a concessão de empréstimos de aeronaves para uso particular de autoridades, bem como indícios de influência em indicações de magistrados para cargos públicos”, diz a PF, frisando que o relatório não encerra a investigação, mas estabelece uma base para o avanço das diligências.

Procurada pelo blog, Gallotti disse que “desconhece o conteúdo da investigação, porque tramita em sigilo” e frisou “que seu gabinete está à disposição, para auxiliar, no que seja necessário, a fim de que sejam cabalmente apurados os fatos ocorridos e responsabilizados todos os envolvidos”.

Já o gabinete de Nancy Andrighi afirmou que os processos de responsabilização “se encontram em andamento, a fim de que os fatos sejam devidamente esclarecidos e os responsáveis punidos de forma exemplar”.

A defesa de Anderson, por sua vez, informou que irá aguardar o relatório final da PF para se pronunciar.

O ministro Og Fernandes não havia respondido ao blog até a publicação desta reportagem.

Rafael Moraes Moura, Jornalista, de Brasília - DF originalmente para O GLOBO, em 16.10.25

Governo Lula vive 'dia da marmota' com novo plano para salvar Correios

O único dado concreto é que a empresa precisará de um socorro de R$ 20 bilhões para não quebrar.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva — Foto: Andreas SOLARO/AFP

Já virou lugar-comum para quem acompanha o noticiário no Brasil dizer que vivemos mergulhados num recorrente Dia da Marmota. A expressão, para os não familiarizados, é uma referência ao filme “Feitiço do tempo”, com Bill Murray, em que o protagonista acorda toda manhã para viver o mesmo dia em que os mesmos fatos se repetem, mas só ele percebe. Há vários “Dias da Marmota” rolando no Brasil neste momento, mas poucos vêm de tão longe e são tão sintomáticos quanto o dos Correios.

A estatal divulgou ontem um plano de reestruturação com medidas genéricas, de corte de despesas, demissões e venda de ativos a renegociação de contratos com fornecedores para recuperar a competitividade. Não foi informado quantas demissões, qual a economia estimada, se haverá metas de eficiência ou em que prazo se daria a tal recuperação.

O único dado concreto é que a empresa precisará de um socorro de R$ 20 bilhões para não quebrar. Como o governo Lula briga neste momento com o Congresso por mais recursos, alegando dificuldades fiscais, fica feio dizer que enterrará uma bolada dessas numa estatal obsoleta e deficitária. Ficou combinado então que o empréstimo será feito por um consórcio de bancos, com garantia do Tesouro. Na prática, se os Correios derem o calote, o contribuinte pagará a conta. Não é dinheiro da União, mas é.

Considerando que esse já é o segundo plano de demissão voluntária desde o início do ano e que o empréstimo de R$ 20 bilhões já vem para cobrir outro de R$ 1,8 bilhão feito agora em junho, fica evidente que a reestruturação é cortina de fumaça para esconder um fato eloquente: os Correios são “insalváveis”. Ao longo das últimas décadas, suas funções mais relevantes foram as de cabide de emprego e foco de corrupção.

Para que fique clara a dimensão desse Dia da Marmota, foi ali que nasceu o primeiro escândalo de corrupção do primeiro mandato de Lula, lá em 2005, quando veio à tona um vídeo mostrando um apadrinhado do hoje bolsonarista Roberto Jefferson enfiando no bolso maços de dinheiro de propina recém-recebida. Pressionado, Jefferson revidou revelando o mensalão, e o resto é História.

Em 2010, a direção dos Correios, já franqueada por Lula e Dilma Rousseff ao PMDB, aplicou o dinheiro do fundo de pensão dos funcionários, o Postalis, em títulos da Venezuela e da Argentina e numa série de empreendimentos fraudulentos que se tornaram alvo de operações da Polícia Federal, com prisões e delações premiadas. O rombo, estimado em mais de R$ 15 bilhões, é pago até hoje pela estatal, por seus funcionários e pelos aposentados, que chegam a sofrer 80% de desconto no contracheque.

Depois do trauma, Michel Temer e Jair Bolsonaro incluíram os Correios no plano de privatizações e começaram a preparar a empresa para a venda, com planos de demissão voluntária, fechamento de agências, automatização e encerramento de operações deficitárias — exatamente o mesmo cardápio de agora.

Combinados com a explosão do comércio digital na pandemia, os ajustes fizeram a companhia passar a dar um lucro que chegou a R$ 2,3 bilhões em 2021. A partir de 2022 — ano eleitoral e o último da gestão Bolsonaro —, a coisa voltou a degringolar.

Ao assumir, Lula anunciou concurso para contratar mais 3,5 mil funcionários, botou quadros do PT para mandar na companhia e sepultou a ideia de privatização. Quem defende a decisão diz que os Correios preenchem uma função social porque vão aonde ninguém vai, como comunidades conflagradas pela violência ou muito longínquas, em que entregar encomendas não dá lucro. Por isso, dizem, são insubstituíveis.

É o mesmo argumento usado nos anos 1990 contra a privatização da telefonia. Naquela época, os celulares e a internet engatinhavam, mas era claro que estatais obsoletas e corruptas não teriam a menor condição de competir com a nova tecnologia. Hoje ninguém mais sente falta dos orelhões, das fichas, nem de receber herança em ações da Telebras, e o Brasil é um dos países do mundo com mais celulares per capita.

É graças a esses aparelhos que boa parte da população das periferias, das favelas e até dos ermos da Floresta Amazônica faz negócios, enviando e recebendo encomendas não só pelos Correios, mas também pelos mercados livres e amazons da vida.

A experiência já mostrou que, com regulação bem feita, é possível estimular a competição e evitar a exclusão social. Dá até para obrigar as companhias a criar um sistema eficiente de distribuição de CEPs para que nenhum brasileiro fique sem endereço formal. O que não dá é para continuar torrando dezenas de bilhões do meu, do seu, do nosso para manter uma operação claramente insustentável. Nem a marmota de Bill Murray merece isso.

Malu Gaspar, a autora deste artigo, é jornalista e escritora. Especialista em análises e informações exclusivas sobre política e economia, trabalha n'O GLOBO. Publicado originalmente em 16.10.26

Lula e as emendas presidenciais

Há que melhorar muito a representatividade política dos parlamentares

O caderno de Economia e Negócios deste jornal (O Estado de S. Paulo) estampou na sua primeira página no domingo passado, a manchete: Lula prevê “pacote de bondades” de R$ 100 bi, mas falta verba (Estadão, 12/10, B1). E completa: “Medidas previstas para ano eleitoral necessitam de manobras no Orçamento.”

Segundo a matéria, o pacote inclui a “ampliação da isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil por mês, aprovada na Câmara e ainda pendente no Senado, a distribuição de gás de cozinha de graça, isenção na conta de luz para 17 milhões de famílias e o pagamento de bolsas do Pé-de-Meia para estudantes do ensino médio”. Resolvi chamar estas propostas de emendas, pois guardam certa semelhança com as parlamentares, exceto na sua escala bem maior; correm no Parlamento e há essa preocupação comum com falta de verbas. Os dois tipos de emendas têm olho no ganho eleitoral.

O leitor que acompanha meus artigos sobre as emendas parlamentares sabe que as considero inconstitucionais, pois só conferem essas emendas a candidatos que já têm mandato, tratando-os com vantagem que não cabe aos sem mandatos, violando o princípio constitucional de que todos são iguais perante a lei, a eleitoral. O presidente, que busca a reeleição, tem o mesmo privilégio. Seria o caso de proibir a reeleição, uma ideia também recomendável por outras razões, como a perspectiva de gestão mais eficiente de quem exerça seu mandato sem reeleição.

Sobre a ampliação da isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil por mês, aprovada na Câmara e ainda pendente no Senado, vale lembrar que a parte que não foi aprovada na Câmara era a que tratava do seu financiamento. Sem sua aprovação, até onde sei, a lei seria prejudicada, pois, no site do Senado, vi que a Emenda Constitucional (EC) 128, de 2015, proíbe a legislação federal de criar despesas sem que haja previsão de fontes orçamentárias e financeiras ou transferência dos recursos necessários para a prestação do respectivo serviço público. Também no mesmo site, soube que as únicas despesas ressalvadas são as decorrentes do salário mínimo e as obrigações assumidas espontaneamente pelos entes federados.

Segundo Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado à época da aprovação da Emenda Constitucional 128, “trata-se de uma alteração constitucional da mais importância para os entes federativos, pois prestigia sua saúde orçamentária e fortalece a sua capacidade de financiamento de políticas públicas na medida em que impede que os entes tenham as suas finanças oneradas por criação de programas que não venham acompanhados das fontes de recursos necessários ao seu custeio”.

O fato é que a sociedade brasileira tem muito pouca noção do que se passa no Congresso, pois seus representantes, os parlamentares, eleitos em eleições proporcionais, com votos por toda a unidade federativa de onde vêm, o que cria uma dificuldade de o eleitor escolher um candidato, há centenas deles e, em geral, só aparecem perante o eleitor a cada quatro anos e depois somem. Chamo-os de candidatos-cometas. Vivi em países com voto distrital e percebi que é muito mais eficaz. São Paulo teria 70 distritos (o número de deputados do Estado no Congresso), cada um reunindo municípios com número de eleitores aproximadamente igual entre os distritos. Num distrito, cada partido político apresentaria seu candidato e seria mais fácil escolher um para votar durante os debates pré-eleitorais. O mais votado seria o representante do distrito, de todos os eleitores distritais, e não apenas dos que votaram nele. Com isso, ele teria de se relacionar e prestar contas a esses eleitores para reduzir o risco de não voltar no próximo pleito.

Já houve propostas de adoção do voto distrital pelo Congresso, mas sua probabilidade de aprovação é próxima a zero, pois, em sua maioria, os parlamentares atuais não seriam reeleitos no novo sistema. Mas acho que seria possível melhorar a representatividade do sistema atual mediante a adoção das seguintes providências: cada parlamentar teria um site na internet contendo sua foto e menção do partido político a que está associado, bem como seu Estado de origem. O site também daria acesso, inclusive para download, à ação legislativa do parlamentar (seus projetos de lei, e como votou nos projetos que foram ao plenário para essa finalidade, seus discursos, viagens e outras formas de atuação. Os interessados teriam acesso ao e-mail do parlamentar para perguntas, sugestões e questionamentos. Ou seja, o parlamentar estaria prestando contas do seu trabalho à sociedade, bem como dando o direito a seus eleitores e a outros interessados de elogiar, criticar e sugerir mais temas para a atuação do parlamentar. Tudo poderia ser feito dentro da estrutura atual do Congresso. Com as devidas adaptações, esses aspectos poderiam ser aplicados às assembleias legislativas estaduais e às câmaras municipais.

Roberto Macedo, o autor deste artigo, é Economista (UFMG, USP e Harvard). Consultor econômico e de ensino superior. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 16.10.25

A bancarrota dos Correios

A estatal precisa de empréstimo de R$ 20 bilhões para sobreviver, mas resultados ruins só serão revertidos com um radical corte de despesas, tipo de política de que o PT não pode nem ouvir falar

O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva está liderando negociações para viabilizar um empréstimo de R$ 20 bilhões para impedir a bancarrota dos Correios. Sem esses recursos, a empresa não terá condições de arcar com seus gastos neste ano e no ano que vem. A operação terá garantia da União, condição necessária para que os bancos privados aceitassem dividir com o Banco do Brasil e a Caixa o risco de financiar uma empresa que está praticamente quebrada.

Não se trata de exagero retórico. Os Correios tiveram um prejuízo de R$ 2,64 bilhões no segundo trimestre deste ano, quase cinco vezes maior que no mesmo período de 2024. A empresa acumula rombos desde 2022, mas a derrocada se agravou no ano passado, quando o prejuízo atingiu R$ 2,59 bilhões, e no primeiro semestre deste ano, quando alcançou R$ 4,37 bilhões.

Funcionário de carreira do Banco do Brasil, o novo presidente dos Correios, Emmanoel Schmidt Rondon, disse que o empréstimo dará condições para a empresa se reequilibrar e iniciar o ano de 2027 no azul. Tanto otimismo talvez se explique pelo fato de o executivo estar há pouco mais de 20 dias no cargo. Que o diga seu antecessor, o advogado Fabiano Silva dos Santos.

Em janeiro, ao lado da ministra da Gestão e da Inovação, Esther Dweck, Fabiano minimizou os problemas e assegurou que a empresa estava “em processo de franca recuperação”. A empresa, segundo ambos, foi sucateada pelo governo Jair Bolsonaro, mas havia retomado os investimentos para ampliar sua atuação e finalmente se tornar lucrativa. O caixa foi torrado, o plano não funcionou e o executivo caiu em julho, após admitir que os Correios precisariam de um socorro para se manter.

É conveniente atribuir os resultados ruins dos Correios à perda da exclusividade sobre a importação de remessas do exterior e à “taxação das blusinhas”, mas o problema é bem maior do que o governo está disposto a admitir. Tanto o avanço da concorrência quanto a queda nas importações de produtos chineses de pequeno valor eram previsíveis, e o correto teria sido ajustar as despesas para enfrentar esse cenário de redução de receitas.

Enquanto as receitas minguavam, seus gastos avançavam. Em 2024, os Correios se comprometeram a transferir R$ 7,6 bilhões para cobrir metade do rombo do fundo de pensão de seus funcionários, o Postalis. Boa parte disso se deve aos péssimos investimentos realizados pelo fundo entre 2011 e 2016, durante o governo de Dilma Rousseff.

Os Correios têm um custo fixo elevado, estimado entre R$ 20 bilhões e R$ 25 bilhões anuais. Com uma estrutura de mais de 80 mil empregados, dezenas de imóveis ociosos e com alto custo de manutenção e a obrigação constitucional de atender a todo o território nacional, a despeito do desinteresse crescente pelos serviços postais, a estatal tem perdido espaço para empresas privadas que atuam no ramo de encomendas. Ainda assim, no fim do ano passado, os Correios acharam que era um bom momento para realizar um concurso público para contratar mais funcionários.

O empréstimo de R$ 20 bilhões será usado para honrar dívidas com fornecedores, quitar um financiamento de R$ 1,8 bilhão contratado no primeiro semestre deste ano e que vence no ano que vem e financiar medidas de ajuste, entre elas um Programa de Demissões Voluntárias (PDV) e mudanças no plano de saúde. Até agora, não foram divulgadas metas de redução de despesas nem uma estimativa de obtenção de novas receitas.

São muitos os problemas dos Correios, e eles não serão enfrentados se o governo Lula não reconhecer que o desequilíbrio da empresa é grave. É até irônico, portanto, que Rondon tenha descartado a privatização nos planos do governo para a estatal – como se houvesse alguma companhia com interesse em comprá-la na situação em que ela está.

A paciência dos bancos tem limite. Um calote, se houver, recairá sobre o Tesouro Nacional e, em última instância, sobre os contribuintes. Resultados tão ruins só serão revertidos se houver um radical corte de despesas, o tipo de política de que administrações petistas não podem nem ouvir falar.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 16.10.25

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

PF vê padrão de organização criminosa em venda de decisões e suspeita de mais servidores do STJ

Ministros não são investigados e dizem que fatos devem ser esclarecidos e responsáveis, punidos. Relatório aponta suspeita de 'estrutura organizada voltada à manipulação de decisões judiciais'

Fachada do prédio do STJ (Superior Tribunal de Justiça), em Brasília - Pedro Ladeira - 28.mar.2023/Folhapress

A Polícia Federal suspeita que outros servidores do STJ (Superior Tribunal de Justiça), além de três já identificados, tenham participado de um esquema de venda e vazamento de decisões da corte e pretende ampliar as suas investigações para saber quem são essas pessoas.

Os indícios são apontados em relatório preliminar da operação Sisamnes, que investiga irregularidades cometidas em gabinetes do tribunal e menciona a reprodução de "padrões típicos de atuação de organizações criminosas".

Os três servidores já identificados trabalhavam com ministros da corte e estão entre os principais investigados da operação. A desconfiança da PF é que haja outros.

"O conjunto de diligências realizadas permitiu identificar, em tese, que o esquema não se restringia aos servidores Daimler, Márcio e Rodrigo Falcão e nem ao núcleo Andreson/Zampieri, mas integrava estrutura organizada voltada à manipulação de decisões judiciais, reproduzindo padrões típicos de atuação de organizações criminosas", afirma o relatório da PF obtido pela Folha.

O trecho se refere ao lobista Andreson de Oliveira Gonçalves, pivô das investigações, ao advogado Roberto Zampieri, que atuaria com ele, e aos servidores Daimler Alberto de Campos, que foi chefe de gabinete da ministra Isabel Gallotti; Márcio José Toledo Pinto, que trabalhou para a ministra e para outros integrantes da corte e foi exonerado após sindicância do STJ; e Rodrigo Falcão, que foi chefe de gabinete do ministro Og Fernandes.

No documento, são apontados indícios de que outras pessoas teriam compartilhado informações internas com Andreson. Essas suspeitas foram apontadas, sobretudo, em processos que estavam sob a relatoria de Gallotti.

A PF aponta que interlocutores do lobista demonstravam pleno conhecimento sobre a tramitação interna do gabinete da ministra, "antecipando informações a respeito de pautas e movimentações processuais antes mesmo de sua divulgação oficial".

"Os diálogos apontam que o envolvimento funcional não se restringia a Daimler, alcançando outros servidores vinculados ao gabinete", diz a polícia no relatório.

"Diante desses indícios, a investigação ampliará o foco para identificar eventuais outros servidores que possam ter participado das tratativas e da elaboração das minutas, mediante a análise detalhada dos possíveis sinais e códigos camuflados nas mensagens trocadas entre os interlocutores."

O relatório policial tem como principal linha de investigação suspeitas sobre ações que tramitaram nos gabinetes das ministras Gallotti (sete processos) e Nancy Andrighi (cinco processos) e também sobre vazamento de informações da Operação Faroeste, de relatoria do ministro Og Fernandes.

Marcio Toledo, que trabalhou com Gallotti, também passou pelo gabinete de Nancy e é o principal suspeito de vazamentos de informações e de ter relações próximas com Andreson.

Nenhum ministro da corte é investigado no inquérito, que está sob condução de Cristiano Zanin no STF (Supremo Tribunal Federal).

Procurada, a ministra Nancy Andrighi afirma, em nota do seu gabinete, que "já prestou informações à imprensa, no ano de 2024, sobre os processos" e que "os processos de responsabilização encontram-se em andamento, a fim de que os fatos sejam devidamente esclarecidos e os responsáveis punidos de forma exemplar".

A ministra Isabel Gallotti afirmou que "desconhece o conteúdo da investigação, porque tramita em sigilo, e que seu gabinete está à disposição, para auxiliar, no que seja necessário, a fim de que sejam cabalmente apurados os fatos ocorridos e responsabilizados todos os envolvidos".

Questionado se gostaria de se manifestar, o ministro Og Fernandes afirmou que, "respeitando o direito ao contraditório, quem cometer ato ilícito deve assumir as consequências legais cabíveis".

O advogado de Daimler, Bernardo Fenelon, afirmou que a investigação comprova a inocência de seu cliente, já que os contatos telefônicos salvos pelo grupo como sendo do servidor na realidade pertencem a outras pessoas, e que a sindicância interna do STJ afastou qualquer participação dele.

"A apuração mostra claramente que inexiste qualquer indício mínimo que vincule nosso cliente aos atos ilícitos sob investigação. Nenhuma mensagem, nenhum encontro e nenhuma transferência valores. Absolutamente nada", disse Fenelon.

A defesa de Falcão foi procurada, mas não se manifestou. A reportagem não localizou a de Marcio Toledo.

No relatório, são comparadas movimentações processuais e movimentações financeiras de suspeitos com trocas de mensagens do advogado Roberto Zampieri, assassinado no fim de 2023, e Andreson.

Além dos três auxiliares dos ministros que são alvos de inquérito, também são citadas outras pessoas ainda não identificadas ou que acessaram internamente os processos como possíveis alvos de futura investigação.

A análise da polícia faz ainda outras observações. Por exemplo, ao analisar o conteúdo de dados de nuvem de Andreson, a PF identificou que um contato salvo com o nome de Daimler não era o número do celular do chefe de gabinete, mas de um advogado.

A polícia diz que "a prática de salvar números telefônicos sob nomes de terceiros é expediente recorrente em contextos de ocultação e dissimulação de ilícitos, justamente para despistar eventual vinculação entre o interlocutor real e as comunicações mantidas".

No caso em questão, afirma a PF, os elementos indicavam que, embora a linha estivesse em nome de outra pessoa, "o controle prático do terminal e a condução das tratativas cabiam, em verdade, ao servidor Daimler, então chefe de gabinete da ministra Isabel Gallotti".

"Essa hipótese se robustece pelo teor das mensagens e pela correlação temporal com outros achados investigativos, que já vinham apontando Daimler como elo central no fluxo de informações e de valores em favor do grupo investigado."

No caso da suspeita de vazamento pelo ex-chefe de gabinete de Og Fernandes, a PF ainda não tem clareza se Falcão realmente teria vazado minutas para Andreson. Isso porque a polícia trabalha com a possibilidade de que uma decisão de Og que estava no celular do lobista era falsa.

A investigação ainda apura se foram repassadas outras informações relacionadas à Operação Faroeste.

Os dados obtidos na nuvem do celular de Andreson, diz a polícia, confirmam a sua condição de articulador de manipulações judiciais e também trazem novos elementos relevantes como provas.

"Entre eles, destacam-se os contatos mantidos com servidores, chefes de gabinete e magistrados", afirma o relatório.

Andreson está em prisão domiciliar em Primavera do Leste, no interior de Mato Grosso, desde julho. Zanin autorizou a prisão domiciliar após um parecer positivo da PGR (Procuradoria-Geral da República) pela saída do lobista de uma prisão federal em Brasília, devido ao seu estado de saúde. Sua defesa não tem comentado informações sobre a operação.

José Marques, jornalista, de Brasília - DF, originalmente, para a Folha de S. Paulo, em 14.10.25

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Todos os negócios do presidente: é assim que Trump fica muito mais rico na Casa Branca

A riqueza do presidente dos EUA se multiplicou em apenas alguns meses. Seu império familiar abrange desde imóveis até criptomoedas e gera inúmeros conflitos de interesse.

A tênue linha ética que Trump fecha

Em 1996, o jornalista Mark Singer foi contratado pela The New Yorker , revista onde trabalhou por 20 anos , para acompanhar Donald Trump por alguns meses e escrever um perfil detalhado do então empresário americano, com grande influência na mídia. Singer escreveu o que se tornaria um dos artigos lendários da revista : um retrato angular no qual concluiu que o magnata havia alcançado "o luxo supremo: uma existência livre do murmúrio perturbador de uma alma". Em 2005, ele republicou o artigo para um livro que compilava nove de seus melhores perfis dos últimos anos, e o The New York Times publicou uma resenha elogiosa. Trump decidiu enviar uma carta ao jornal, chamando Mark Singer de "perdedor" e acrescentando algumas outras sutilezas, uma publicidade que impulsionou as vendas do livro.

Com todo o sarcasmo do mundo, o repórter decidiu escrever a Trump para agradecê-lo e, como prova de sua gratidão, enviou-lhe um cheque de US$ 37,82. A empresa de Trump devolveu a carta alguns dias depois com um bilhete do então presidente insultando-o novamente. No entanto, um lançamento negativo de US$ 37,82 apareceu na conta bancária do jornalista. Trump havia descontado o cheque.

Há muitas histórias para descrever o gênio empreendedor de Donald Trump , mas nenhuma captura sua essência como esta: um amor febril, apaixonado e constante pelo dinheiro, transmitido de geração em geração. De Fred Trump — seu pai, um construtor de casas no Queens e no Brooklyn que costumava incentivar o filho a seguir uma carreira como esta: "Seja um matador"; "Você é um rei" — ao atual presidente, incluindo seus filhos, como Ivanka, com seus próprios negócios, ou Donald Jr. e Eric, administrando o império da família.

O gene já emergiu na próxima geração, e até mesmo uma das netas do presidente, Kai Trump, de 18 anos, começou a vender moletons com suas iniciais por US$ 130, com a inestimável promoção de fotografá-los nos gramados da Casa Branca, o enésimo potencial conflito de interesses deste governo. São roupas, alerta a jovem empreendedora em seu site, "feitas por trabalhadores americanos qualificados", caso alguém esteja procurando maliciosamente pelo selo " Made in China" .

Donald Trump não é o primeiro presidente dos EUA a chegar à Casa Branca vindo do mundo empresarial, mas certamente não há precedentes para alguém cuja fortuna tenha aumentado tanto durante sua presidência, em grande parte devido a críticas razoáveis ​​aos seus oponentes, auxiliadas pela mesma aura presidencial. Porque em meio ao barulho das guerras comerciais, às farsas sobre o uso de paracetamol em gestantes e — também — ao acordo de paz para Gaza, o conglomerado Trump está ganhando dinheiro, dinheiro pessoal, aos montes.

Uma versão 2.0

O Trump de seu primeiro mandato (2017-2021) foi o conhecido magnata imobiliário, dono de hotéis, resorts, clubes de golfe e edifícios residenciais em todo o mundo, que gerava receita colocando sua marca Trump em inúmeros produtos e não se opunha a ganhar alguns dólares com livros ou televisão. Trump 2.0 é muito mais diversificado: além de um crescente portfólio imobiliário, ele administra sua própria rede social, a Truth Social, de propriedade do Trump Media & Technology Group, e um novo e próspero negócio de criptoativos, com sua memecoin , uma criptomoeda recém-cunhada que é altamente volátil e não tem valor subjacente. Ele lançou $TRUMP em janeiro passado, dois dias antes de assumir o cargo, e durante esse período atingiu um valor de mercado de US$ 40.000, pelo menos no papel.

Quanto cresceu a fortuna de Trump desde que se tornou presidente do governo mais poderoso do mundo ? De quantos dólares estamos falando? De acordo com dados da Forbes desta semana, entre 2024 e 2025, a riqueza do empresário-presidente saltou de US$ 2,3 bilhões para US$ 7,2 bilhões, um salto amplamente atribuído às suas novas atividades. O New York Times, por outro lado, estimou em julho passado que o valor absoluto era de cerca de US$ 10 bilhões, embora grande parte desse montante estivesse localizado em ativos ilíquidos (ou seja, difíceis de converter em dinheiro). E o Bloomberg Billionaires Index, o maior banco de dados financeiro do mundo, estimou neste verão que sua riqueza mais que dobrou durante sua administração, para US$ 6,4 bilhões.

Uma vista do Trump Hotel em Las Vegas, Nevada, em uma imagem tirada em 3 de julho. / Crédito:DANIEL SLIM (AFP / GETTY IMAGES)

Não é possível determinar os números exatos porque, em primeiro lugar, nem todos os negócios de Trump estão listados em bolsas de valores e, em segundo lugar, a maior parte de seus ativos permanece em imóveis e é compartilhada com familiares e parceiros. Quanto à maré de milhões que circula por meio de criptoativos, muitos estão completamente vinculados à sua marca pessoal, dificultando uma estimativa independente de seu valor. Outras receitas vêm de licenças de livros ou outros produtos. Há um problema adicional: Trump foi acusado de inflar o valor de seus ativos em mais de uma ocasião para obter mais linhas de crédito, algo que chegou a ser levado à justiça, embora ele tenha sido absolvido.

O que é palpável em relação à sua primeira presidência, em termos de dinheiro vivo, é que a máquina entrou em overdrive. Quando chegou à Casa Branca, anunciou que se desfaria da gestão de suas empresas e as colocaria sob um fundo fiduciário, o que significa que seriam administradas por outra pessoa. Foi o que Jimmy Carter fez, por exemplo, com sua empresa agrícola, mas com uma diferença fundamental: Carter a colocou nas mãos de um independente, e o conglomerado de Trump é liderado por Donald Jr., o principal gerente, e seu irmão, Eric, que, claro, têm contato constante com o pai. Eles também o ajudam a espalhar a mensagem política MAGA (Make America Great Again) pelo mundo e a inaugurar novos edifícios com ele.

Como aponta um advogado especializado em governança e ética, que prefere permanecer anônimo devido ao seu emprego atual em uma empresa privada: " Para evitar quaisquer acusações de má conduta, o que ele deveria ter feito era se desfazer de todos os seus negócios nos Estados Unidos e no exterior, mas isso não vai acontecer. Na verdade, ele está se expandindo tanto nacional quanto internacionalmente." Seus filhos sempre afirmaram que estiveram envolvidos no mundo dos negócios e investimentos a vida toda, que não são novatos procurando ganhar dinheiro do zero no aconchego do Salão Oval e que não faria sentido para eles abandonarem suas carreiras empresariais agora.

Os negócios originais dos Trump, imóveis de luxo, propriedades residenciais, hotéis, campos de golfe e outros edifícios comerciais ou clubes controlados pela Organização Trump, oferecem a imagem mais simbólica dessa mistura de poder político avassalador com os negócios habituais de seus filhos . Por exemplo, no final de julho, Trump fez uma viagem supostamente privada aos seus campos de golfe na Escócia, um refúgio que usou para se encontrar com o primeiro-ministro britânico Keir Starmer e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. Como toque final, ele inaugurou um novo campo de golfe com seus dois filhos, evento que também contou com a presença do primeiro-ministro escocês, John Swinney.

Entre campos de golfe, resorts e edifícios para diversos usos, Trump possui quase vinte grandes propriedades imobiliárias. A lista inclui estabelecimentos icônicos como o resort Mar-a-Lago, na Flórida, a Trump Tower na Quinta Avenida, em Nova York, e os campos de golfe mencionados na Escócia, entre outros. A Forbes os avaliou em cerca de US$ 2,5 bilhões, mas o valor, mais uma vez, está sujeito a inúmeras ressalvas. Por exemplo, o Gabinete do Procurador-Geral de Nova York observou que Trump comprou um campo de golfe em Jupiter, Flórida, por US$ 5 milhões e, menos de um ano depois, em sua declaração de imposto de renda de 2013, o avaliou em US$ 62 milhões.

Chegada dos petrodólares

Além do valor dos ativos em si, há a renda gerada anualmente por esses negócios, que também tem sido fonte de controvérsia tanto neste quanto no último mandato, já que a decisão de Trump de se hospedar em seus próprios hotéis e resorts nos Estados Unidos forçou sua comitiva de longa data a fazer o mesmo, usando dinheiro do contribuinte. Soma-se a isso o fato de que muitos milionários pagam para se filiar justamente a esses clubes para ter acesso ao presidente.

Uma enxurrada de petrodólares está sendo investida no setor imobiliário, com os descendentes do presidente impulsionando a atividade no Golfo Pérsico. O grupo fechou vários acordos multimilionários com a incorporadora saudita Dar Global, o mais recente de US$ 1 bilhão para desenvolver um projeto residencial e comercial em Jidá. A Trump Organization também fechou acordos de licenciamento com a Dar Global para outros projetos em Dubai, Omã, Catar e Riad. Vários desses acordos foram finalizados após as viagens do presidente à região.

Durante seu primeiro mandato, Trump prometeu não lançar novos projetos fora dos Estados Unidos para evitar suspeitas ou qualquer potência estrangeira que buscasse beneficiar seus negócios em troca de influência junto ao presidente. Agora, o conglomerado busca lucrar no exterior, embora evite realizar projetos com governos.

Além de questões éticas e de imagem, os processos que recebeu durante seu primeiro mandato foram rejeitados na Justiça. As leis de conflito de interesses dos EUA não se aplicam a presidentes da mesma forma que a outros funcionários públicos. Há uma disposição na Constituição que, desde o século XVIII, proíbe o presidente ou qualquer outro funcionário do governo de aceitar presentes ou doações de governos estrangeiros sem o consentimento expresso do Congresso, mas Trump desafiou essa disposição ao aceitar um jato Boeing 747 de luxo avaliado em US$ 400 milhões do Catar, que ele usará como avião presidencial, um novo Air Force One.

Embora os edifícios sejam o setor mais consolidado do portfólio de investimentos de Trump e aquele em que ele mais imprime sua marca pessoal (grandeza, luxo e seu nome em negrito), o universo das criptomoedas se tornou um império em questão de meses e merece um capítulo à parte. Se a mencionada memecoin $TRUMP estava sendo negociada a US$ 7,48 no mercado nesta sexta-feira, o valor total dessa moeda pode ser estimado em US$ 1,4 bilhão, de acordo com dados da Coinmarketcap, embora obviamente não seja propriedade do magnata.

Novos horizontes

Os Trumps operam nesse mercado volátil por meio da World Liberty Financial, uma plataforma fundada por seus filhos — incluindo o mais novo, Barron Trump, já rico aos 19 anos — juntamente com outros investidores como Steven Witkiff, Zac Folkman e Chase Herro, chamados pela imprensa americana de "criptopunks". A própria plataforma também lançou seu próprio token digital, $WLFI, que estava sendo negociado a US$ 0,17 na manhã de sexta-feira, representando um valor total de US$ 4,34 bilhões.

O mercado de criptomoedas está particularmente no centro das atenções da oposição democrata. O Fundo de Defensores da Democracia Estatal, uma plataforma de oposição, monitora de perto suas atividades no setor, justamente por coincidirem com uma abordagem abertamente "favorável às criptomoedas" em relação a esse tipo de ativo financeiro de alto risco e alta volatilidade. Segundo seus cálculos, em meados de março, esses ativos já representavam US$ 2,9 bilhões para Trump, 37% de toda a sua fortuna.

“Em vez de se desfazer de seus criptoativos para evitar potenciais conflitos de interesse, o presidente Trump parece ter se posicionado para maximizar seus benefícios, adotando um programa regulatório menos agressivo do que seus antecessores”, segundo Virginia Canter, chefe da prática anticorrupção do grupo. “A redução da supervisão nessa área pode comprometer a segurança nacional dos EUA”, afirmou ela em um comunicado.

A história do Trump Media & Technology Group também fala da genialidade irredutível do presidente dos Estados Unidos. Quando em janeiro de 2021, após o ataque ao Capitólio, o Twitter de Jack Dorsey (hoje X, de Elon Musk) decidiu suspender permanentemente a conta de Donald Trump, ele começou a trabalhar na ideia de lançar sua própria rede social para evitar o que considerava a censura do establishment. A Truth Social foi lançada em outubro daquele ano. A empresa, que está listada na bolsa, tem uma capitalização, nesta sexta-feira, de US$ 4,78 bilhões e, segundo dados de julho do The New York Times , Trump controlava 115 milhões de ações, o que hoje equivaleria a cerca de US$ 2 bilhões. No entanto, este é um tipo de ativo tão intimamente ligado à sua figura que é difícil ver se seu valor se sustentaria com um eventual desinvestimento pelo republicano.

Trump, como se sabe, acabou retornando ao que hoje é o X, de propriedade de Elon Musk. O relacionamento do presidente com o bilionário fundador da Tesla — embora ele já tenha deixado o governo — também atraiu uma enxurrada de críticas. Em uma impressionante mistura de negócios, política e governo, em março passado, Trump exibiu cinco veículos elétricos da marca diante da imprensa ao lado de Musk, em sinal de apoio ao empresário, que na época via as ações da empresa despencar em meio à tempestade política causada por seu cargo e sua missão: ele era responsável por enxugar a administração e demitir dezenas de milhares de funcionários públicos.

“Acho que ele foi tratado de forma muito injusta por um grupo muito pequeno de pessoas, e eu só quero que as pessoas saibam que ele não pode ser penalizado por ser um patriota, e ele é um grande patriota, e ele fez um trabalho incrível com a Tesla”, disse Trump na época, e logo depois anunciou sua intenção de comprar um de seus carros.

A primeira-dama Melania Trump ladeada pelos filhos do presidente, Eric e Ivanka (acima) e Tiffany e Donald Jr. (abaixo) em Ohio, EUA, em 2020. / Crédito: JIM WATSON (AFP/GETTY IMAGES)

Os negócios estão prosperando em torno da família Trump, não apenas por causa dos moletons que sua neta começou a vender. O marido de Ivanka, Jared Kushner, também empresário, foi fundamental, por exemplo, na megacompra da Electronic Arts, a empresa por trás dos jogos FIFA e The Sims, pela empresa americana de capital de risco Silver Lake e pelo fundo soberano da Arábia Saudita (Fundo de Investimento Público, PIF). De acordo com o The Wall Street Journal , o genro de Trump usou suas conexões na Arábia Saudita para ajudar no negócio. A Amazon, por outro lado, pagou US$ 40 milhões pelos direitos de um documentário sobre Melania Trump, uma das primeiras-damas mais discretas que os Estados Unidos já tiveram. Seu marido nunca foi avesso a audiovisuais; muito pelo contrário, algo que gerou uma renda suculenta e colocou seu rosto em milhões de lares americanos — um dos ingredientes de seu sucesso político — foi justamente o reality show The Apprentice, que ele apresentou.

E, enquanto isso, as vendas de produtos licenciados sob sua marca, desde os famosos bonés, diversas coleções de roupas (uma das mais recentes, intitulada "Golfo da América", em referência à renomeação do Golfo do México dessa forma) ou tênis, continuam gerando outras fontes de renda por meio de royalties .

A Organização Trump chama seu patriarca de "a própria definição de uma história de sucesso americana". "O arquétipo de um empresário e negociador sem igual". Uma de suas frases favoritas, que ele usa há décadas, está em destaque em seu site, embora seja difícil imaginar o significado que ela poderia assumir neste estranho 2025: "Se você tiver que pensar, pense grande".

Amanda Mars, a autora deste artigo, é Jornalista e correspondente de economia do EL PAÍS, onde trabalha desde 2006. Começou no escritório de Barcelona, ​​passou para a seção de Economia e foi correspondente em Nova York e Washington (2015-2022). Foi diretora do Cinco Días e vice-diretora da seção de economia do EL PAÍS. Anteriormente, trabalhou na La Gaceta de los Negocios e na agência Europa Press. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 11.10.25

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

É hora de repensar o papel do Supremo

Uma Corte menos sobrecarregada e mais fiel à sua natureza colegiada e vocação constitucional pode recuperar a confiança da sociedade e resgatar sua autoridade, o que faz bem à democracia

A aprovação do Projeto de Lei 3.640/2023 inspira uma reflexão mais ampla sobre um tema sensível, mas fundamental para o Brasil: a posição do Supremo Tribunal Federal (STF) no arranjo institucional do País.

O projeto em questão, aprovado em caráter terminativo pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, impõe restrições legais às decisões monocráticas, o que o regimento interno do STF já faz, e limita o rol de partidos com legitimidade para propor ações de controle concentrado de constitucionalidade, o que é inconstitucional à luz do art. 103, inciso VIII, da Lei Maior. Mas, a despeito desses problemas, o projeto reforça a necessidade de resgatar a natureza colegiada da Corte, expõe a banalização do acesso à mais alta instância do Poder Judiciário e mostra que há disposição política para discutir uma necessária reforma do Supremo.

A Constituição de 1988 atribuiu ao STF uma gama de competências que extrapola, e muito, o modelo de uma corte constitucional clássica. Além da função precípua de garantir que direitos constitucionais tenham eficácia, o Supremo, no Brasil, é uma instância recursal e um tribunal criminal para autoridades detentoras do chamado “foro privilegiado”. Essa acumulação de funções, compreensível no contexto da transição da ditadura militar para o regime democrático, gerou distorções ao longo do tempo que precisam ser enfrentadas com coragem e espírito republicano.

A realidade se impôs: o Supremo, sobrecarregado de processos e compelido a decidir sobre questões eminentemente políticas, passou a ser visto mais como um participante do jogo de poder político do que como um tribunal imparcial. Em maior ou menor grau, as crises institucionais ocorridas no País nos últimos 20 anos, muitas deflagradas pela excessiva judicialização da política, tiveram o STF como um dos protagonistas e, por isso, corroeram a confiança da sociedade na Corte. Ao se tornar uma arena de disputas partidárias e ao participar de embates entre o Executivo e o Legislativo – seja por imposição legal, seja por voluntarismo dos seus membros –, o STF se distanciou ainda mais do ideal de uma corte puramente constitucional como instituição vital para o Estado de Direito.

É preciso rediscutir um arranjo constitucional que, malgrado o acerto de sua concepção à época, já não se mostra apto a contribuir para a estabilidade institucional do País. E isso não significa enfraquecer materialmente o Supremo nem muito menos degradar sua legitimidade. Ao contrário: o que se pretende é fortalecê-lo. Restringir sua competência ao estrito controle de constitucionalidade, aliviando-o das funções de instância recursal e de tribunal criminal, implica fazer do Supremo uma corte constitucional em sentido pleno, um modelo já consagrado pela experiência em democracias bem mais consolidadas do que a brasileira. Questões infraconstitucionais, em particular as de matéria penal, poderiam ser facilmente deliberadas pelo Superior Tribunal de Justiça, que possui todas as condições de atuar como última instância em uma miríade de processos.

Evidentemente, essa não será uma discussão fácil no Congresso. Forças muito poderosas decerto serão mobilizadas para manter tudo rigorosamente como está, contratando novas crises. Ademais, os conhecidos inimigos da democracia farão de tudo para intoxicar o debate com suas mentiras e distorções da realidade para deslegitimar o STF como instituição garantidora da ordem constitucional democrática. Mas ser difícil não significa que seja impossível trabalhar para dotar o Brasil de uma Corte Suprema integralmente dedicada à análise de questões constitucionais, pairando acima, quase anônima, das tensões típicas dos embates políticos em qualquer sociedade livre. As grandes conquistas civilizatórias da sociedade brasileira sempre deram trabalho.

A Constituição de 1988 foi escrita sob o signo da redemocratização e respondeu muito bem ao momento histórico. Mas as circunstâncias mudaram. Hoje, repensar o papel do Supremo, com boa-fé e dentro das balizas democráticas, é tarefa indispensável para um futuro mais auspicioso para o País.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 12.10.25

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Por campanhas a pão e água

Comissão reserva R$ 6,3 bilhões para partidos gastarem no pleito de 2026. Proposta vai na contramão do interesse público e deveria ser revista


Plenário da Câmara dos Deputados. / Pedro Ladeira, FolhaPress.

A cada par de anos a história se repete. Parlamentares discutem o tamanho do fundo eleitoral destinado aos partidos políticos para as campanhas do próximo pleito, o montante é considerado acintosamente alto por segmentos da sociedade civil, a imprensa publica editoriais e colunas contra a proposta, que mesmo assim acaba passando.

Para as eleições de 2026, a Comissão Mista de Orçamento reservou R$ 4,9 bilhões para o Fundo Especial de Financiamento de Campanha, que se somariam ao R$ 1,4 bilhão do Fundo Partidário (distribuído anualmente às agremiações), perfazendo um total de R$ 6,3 bilhões.

Para a conta ficar completa, deveria incluir os gastos tributários (desconto no IR) em que o poder público incorre a título de ressarcimento a emissoras de rádio e TV pelo tempo utilizado no horário eleitoral obrigatório. Estamos falando de mais algumas centenas de milhões de reais.

Não sou contra o financiamento público de campanha. Ele me parece melhor que a situação anterior, na qual as campanhas eram bancadas principalmente por doações de empresas, o que tornava os políticos eleitos ultrassensíveis aos interesses de quem os financiava.

Daí não se segue que as verbas pagas aos partidos precisem ser exorbitantes, generosas e nem mesmo confortáveis. Ao contrário, não vejo mal algum em que as campanhas sejam extremamente modestas, para não dizer franciscanas.

Há atividades em que o valor do investimento afeta a qualidade do produto. Pense num prédio construído com materiais muito vagabundos. Ele pode até ruir. Mas esse não é o caso de eleições. Não importa quanto se invista em campanhas, serão eleitos sempre o mesmo número de governantes e parlamentares —e não há nenhum indício de que gastando mais obtemos melhores representantes.

Mais, como a quase totalidade das verbas vêm do fundo eleitoral, uma redução uniforme dos montantes pouco afeta a disputa.

Se os parlamentares fossem movidos pelo interesse público, fariam as campanhas passar a pão e água. Ou seja, não vai acontecer.

Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, é Jornalista, foi editor de Opinião da Folha de S. Paulo. É autor de "Pensando Bem…" Publicado originalmente na FSP, em 07.10.25

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

É imperioso lembrar que violar prerrogativas do advogado é crime

A advocacia é função essencial à administração da Justiça, como estabelece a Constituição em seu artigo 133. O advogado não é mero participante do processo judicial, mas, o protagonista da defesa e da cidadania. Sua atuação assegura que o contraditório e a ampla defesa, cláusulas pétreas da ordem constitucional, se tornem realidade. 

No entanto, ainda hoje, em pleno Estado Democrático de Direito, multiplicam-se episódios de desrespeito às prerrogativas profissionais, frequentemente protagonizados por autoridades que, paradoxalmente, deveriam zelar pela observância da lei.

É imperioso lembrar que violar prerrogativas do advogado é crime. O Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei Federal nº 8.906/94), em seu artigo 7º- B, introduzido após uma longa luta institucional de 15 anos, dispõe: “Constitui crime a violação de direito ou prerrogativa do advogado, estabelecido nos incisos II, III, IV e V do caput do art. 7º desta Lei, punível com detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa”.

Esse dispositivo é fruto de uma batalha que iniciamos em 2004, quando presidi pela primeira vez a OAB-SP. Levamos a proposta de Criminalização das Violações de nossas Prerrogativas Profissionais à Reunião do Colégio de Presidentes das seccionais da OAB de todo o Brasil, que aconteceu em Curitiba. Aprovada a proposta por unanimidade, teve início a luta que travamos durante os nove anos que presidi a OAB-SP e por mais seis anos em que estive como Conselheiro Federal da OAB, dando lugar a uma conquista histórica para a advocacia e para a cidadania.

Apesar da vitória legislativa, que ocorreu pela Lei nº 13.869, de 2019 (Lei de Abuso de Autoridade), a qual alterou o Estatuto da Advocacia e entrou em vigor em janeiro de 2020, incluindo o artigo 7º- B, as violações e desrespeitos às nossas prerrogativas profissionais ainda persistem, e com muita frequência.

Advogados continuam a ser constrangidos em audiências, têm negado acesso a autos, sofrem restrições arbitrárias no contato com clientes e, não raramente, são intimidados em delegacias de polícia, Tribunais de Justiça ou nas Comissões Parlamentares de Inquérito. Tais atos não atingem apenas a dignidade do profissional, mas acima de tudo, comprometem os direitos fundamentais da cidadania a uma defesa plena.

Recentemente temos visto colegas advogados, em pleno exercício profissional, notadamente em CPIs, tornarem-se alvos de chacotas, piadas e constrangimentos agressivos por parte de autoridades que não respeitam a lei e cometem, dessa forma, crime.

Não bastasse o nosso estatuto, no caso de CPIs, também a Lei nº 1.579/1952 (artigo 3º, §2º), bem como os Regimentos Internos da Câmara dos Deputados e do Senado, asseguram a qualquer depoente, seja ele investigado ou testemunha, o direito de ser acompanhado e assistido por advogado, inclusive em sessões sigilosas.

Spacca

A negativa de acompanhamento de advogado, viola não apenas a lei, mas o próprio equilíbrio das investigações parlamentares. Pior ainda, é quando assistimos a um simulacro de obediência à lei, quando a CPI autoriza o acompanhamento do advogado, mas impede sua assistência ao cliente ou o uso da palavra “pela ordem”, com um sonoro e agressivo “cala a boca”.

Esses direitos dos advogados, além da proteção legal, têm sido, reiteradamente, assegurados pelo Supremo Tribunal Federal, em diversos precedentes (HC 100.200/DF; HC 134.983/MC; MS 30.906/MC), firmando-se o entendimento de que o advogado pode comunicar-se reservadamente com seu cliente, sem restrições arbitrárias. Impedir esse contato é obstaculizar a própria defesa técnica, o que constitui grave afronta ao devido processo legal, além de um crime.

No Brasil vigora o princípio “nemo tenetur se detegere”, segundo o qual ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si mesmo. O STF consolidou essa proteção (HC 79.812/SP; HC 171.438/DF), reconhecendo que cabe ao advogado assegurar que seu cliente não seja coagido a falar contra si. Qualquer medida que impeça o exercício desse direito, configura abuso de autoridade e o crime de violação de prerrogativas.

Estatuto não pode ser letra morta

O advogado, no exercício da defesa técnica, não pode ser impedido ou limitado de forma ilegal e ilegítima em sua atuação. Qualquer restrição arbitrária é crime, ferindo o devido processo legal e comprometendo a legitimidade do Estado Democrático de Direito.

Diante dessas garantias legais à cidadania, é inadmissível que ainda se tolere a violação de prerrogativas de advogado. Quando ocorrer, há necessidade de uma reação institucional. As entidades representativas, em especial a OAB, têm o dever de agir processualmente, além do repúdio formal e do desagravo público. Embora esses gestos tenham valor simbólico, não são suficientes para conter as práticas reiteradas de desrespeito.

É tempo de aplicar a lei em toda sua extensão. O artigo 7º- B do Estatuto da Advocacia não pode permanecer letra morta.

Autoridades que violam prerrogativas precisam ser responsabilizadas civil e criminalmente. Quando essas autoridades forem processadas criminalmente e estiverem no banco dos réus, precisarão contratar um advogado para se defender. Talvez assim compreendam a gravidade de seus atos ilegais e passem a entender o nosso papel. Essa experiência é pedagógica e ajuda a ensinar aos violadores de nossas prerrogativas que esses direitos profissionais não são privilégios, mas garantias institucionais da própria cidadania.

Também não nos esqueçamos de que eventuais ações indenizatórias contra autoridades, na esfera civil, garante-lhes o direito de regresso contra o Estado, mas a obrigação de indenizar decorrente de condenação penal, vai direto no bolso do violador das prerrogativas, para satisfazer o dano provocado com seu ato ilegal e criminoso.

O respeito às prerrogativas profissionais do advogado não depende da boa vontade de autoridades, uma vez que se trata de imposição legal e constitucional. Ignorá-las, além de crime, é atentar contra o próprio sistema de Justiça.

Por isso, não podemos admitir que a conquista histórica da tipificação penal da violação de prerrogativas seja esvaziada pela inércia. É hora de ação firme para que a OAB e as demais entidades classistas façam uso da arma que conquistamos, processando criminalmente os violadores de nossas prerrogativas e reafirmando, na prática, que o advogado precisa ser respeitado para que a cidadania também o seja.

O fortalecimento da advocacia é o fortalecimento da cidadania e, por consequência, da própria democracia. Em defesa da cidadania e da advocacia, é hora de reagir. Convoco a advocacia brasileira, pela OAB e por nossas entidades classistas, a processar criminalmente as autoridades violadoras de nossas prerrogativas.

Sem o respeito ao advogado e às nossas prerrogativas profissionais, não há contraditório, não há ampla defesa e, portanto, jamais haverá Justiça!

Luiz Flávio Borges D’Urso, o autor deste artigo, é advogado criminalista, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, pós-doutor pela Faculdade de Direito de Castilla-LaMancha (Espanha), presidente da OAB-SP por três gestões (2004/2012), presidente de honra da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim), presidente da Academia Brasileira de Direito Criminal (ABDCRIM), vice-presidente da Associação Comercial de SP (ACSP) e conselheiro da Federação das Indústrias de SP (Fiesp). Publicado originalmente no Consultor Jurídico, em 05.10.25

sábado, 4 de outubro de 2025

Uma agenda para o Supremo

É péssimo para um país ter a Justiça sob suspeição. Estou entre os que acreditam que o Supremo Tribunal Federal (STF) teve um papel essencial para salvar a democracia em 2022 – e, como cidadão e democrata, reconheço e sou grato por isso.

Não é preciso, porém, ser um bolsonarista de carteirinha para perceber que nosso Supremo assumiu um protagonismo na vida do País que, em algum momento, seria recomendável que diminuísse no futuro.

Nesse contexto, o que se segue é uma sugestão de pontos que, qualquer que seja o vencedor na eleição de 2026, pode ser conveniente adotar entre 2027 e 2030:

1) Encerramento do Inquérito 4.781, base de todo um conjunto de ações empreendidas pelo Supremo, frequentemente na pessoa do ministro Alexandre de Moraes. Creio que a visão de que esse inquérito precisa ter um desfecho é compartilhada por boa parte da sociedade;

2) Acordo informal com quem ocupar o Executivo para o STF perder protagonismo na mídia. Parte da animosidade que existe em setores da sociedade em relação ao Supremo decorre do fato de muitos dos seus juízes estarem todas as semanas na mídia. Há ocasiões em que o STF é chamado a ocupar o centro do palco, como no caso das ameaças à democracia.

Que depois não se queixem se nas pesquisas a confiança na Justiça continuar baixa, mas em 2027 os juízes do Supremo deveriam contribuir para uma maior calmaria institucional, “saindo à francesa”;

3) Indicação de juízes com ampla aceitação. Entre 1. ºdejan ei rode 2027 e 31 dezembro de 2030, três juízes do STF farão 75 anos. Sem deixar de reconhecer os méritos dos indicados, o fato é que as últimas quatro indicações ao Supremo foram marcadas porcarac terísticas específicas:Bol sonar o indicou um juiz como argumento de“poder tomar uma tubaína com ele” e outro por ser evangélico; e Lula indicou seu advogado pessoal e seu ministro da Justiça. Seria bom que as próximas indicações sejam vistas como “neutras”, no terre noda política; e

4) Mudança de procedimentos. Há uma agenda nesse campo, que abrange desde a adoção de um código de conduta acerca do que um juiz do STF pode ou não fazer, até o combate aos privilégios (penduricalhos y ot rasco sitas más ), combate esse que, para ter maiores chances de prosperar, o Supremo deveria liderar.

A agenda é vasta. Pode não ocorrer nada disso, mas, nesse caso, quedepoisos interessados não se queixem se nas pesquisas a confiança na Justiça continuar baixa, se parte da população considerar que vivemos num país extrem amente injusto e se uma proporção importante do eleitorado opinar que vivemos sob uma “ditadura da toga”. 

Fabio Giambiagi, o autor deste artigo, é economista e escritor. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 03.10.25

Sistema disfuncional

O presidencialismo sem freios e contrapesos redundou num sistema de irresponsabilidade, gerador de conflitos entre Poderes

Como se fosse uma selfie

A instabilidade política é um mal crônico da República. No Império, a Constituição estatuía o Poder Moderador, exclusivo do imperador, para velar pela manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos demais Poderes.

Com a República, desaparece o órgão estabilizador, que Rui Barbosa e Pedro Lessa entendiam ter sido substituído pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Isso graças à circunstância de que com a República, pelos Decretos n.º 510/90 e 848/90 e pela Constituição de 1891, atribuiu-se ao STF a competência para declarar lei ou ato do Executivo inconstitucional, podendo limitar os desvios dos demais Poderes. Outro instrumento de controle estava no habeas corpus para debelar ofensa a qualquer direito individual.

Deodoro da Fonseca, eleito em fevereiro de 1891, renuncia em novembro do mesmo ano. Pela Constituição, a vacância na primeira metade do mandato importava em nova eleição, com o que não concordou Floriano Peixoto, o vice. Generais e membros da sociedade contestaram esse abuso, tendo então Floriano, em abril de 1892, decretado o estado de sítio por 72 horas e prendido militares e civis, como José do Patrocínio e Olavo Bilac. Passadas as 72 horas, mantinham-se as prisões.

Rui Barbosa impetrou habeas corpus, em vista da cessação do estado de sítio, mas Floriano pressionou o STF, com a escusa de se tratar de questão política e indeferida a ordem.

Todavia, em 1893, em habeas corpus impetrado em favor dos revoltosos do navio Júpiter, concedida a ordem, o ministro da Guerra enviou ao presidente do Supremo, José Higino, ofício no qual expressava ser a decisão ofensiva à ordem pública. O ministro José Higino respondeu: “Não cabe ao Poder Executivo dar instruções ou determinar a jurisprudência”.

Esta interferência direta do comandante do Exército no campo jurisdicional da Suprema Corte repete-se em duas outras oportunidades: em 20 de outubro de 1965, o STF concedeu habeas corpus a Miguel Arraes, recebendo críticas de militares. O presidente do STF, então, em entrevista a jornal, afirmou ser tempo de os militares se compenetrarem, de não serem tutores da Nação. O general Costa e Silva, ministro da Guerra, no dia seguinte, classificou a posição do Supremo como histórica agressão às Forças Armadas. Em uma semana, editava-se o Ato Institucional n.º 2, aumentando o número de ministros do STF de 11 para 15, construindo uma maioria de apoiadores do regime militar.

Nas vésperas do julgamento do habeas corpus em favor de Lula, em 2018, novamente o então chefe do Exército, general Villas Bôas, se intromete para afirmar em tom de ameaça ser contra a impunidade.

A aposentadoria forçada de ministros do STF marca a História. Getúlio, em 1931, chefe do governo provisório, afastou compulsoriamente seis ministros. O mesmo se deu durante o regime militar em 1968, pelo Ato Institucional n.º 5, com a aposentadoria compulsória dos ministros Vitor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva e Hermes Lima.

O STF, que Rui Barbosa contava ser o estabilizador, por poder frear os abusos, foi, em vista disso, sempre afrontado, com várias estratégias.

Tentou-se reiteradamente caracterizar na 1.ª República atos de abuso de poder como questão política inapreciável pelo Judiciário. O decreto instituidor do governo provisório, em seu artigo 5.º, excluía de apreciação judicial os atos do Executivo. A Constituição outorgada de 1937 isentava do crivo judicial os atos praticados em estado de emergência, vigorante ao longo de toda a ditadura getuliana. Igualmente, nos Atos Institucionais n.º 1 e n.º 5, vedava-se o controle jurisdicional dos atos praticados com base nesses diplomas.

Outra estratégia consistiu em transformar o Supremo em órgão subordinado ao Legislativo. Na Constituição de 1937, artigo 96, parágrafo único, o Congresso poderia, para salvaguardar o interesse público, anular decisão do STF.

Propostas de deputados do PT ou do PL buscam nulificar decisões do STF. Por exemplo: 1) Proposta de Emenda Constitucional do deputado Fonteles (PT) permite ao STF criar súmula, por decisão de quatro quintos dos seus membros, mas que só terá força vinculante se tal efeito for outorgado pelo Congresso Nacional por maioria absoluta; e 2) proposta do deputado Domingos Savio (PL) autoriza ao Congresso Nacional sustar, por maioria absoluta, decisão do STF, não unânime, transitada em julgado, por extrapolar “limites constitucionais”.

Em ataques ao Supremo, Jair Bolsonaro e acólitos pretendem que o Senado casse ministros. Já disse Rui Barbosa, em discurso no Instituto dos Advogados Brasileiros, que é a mais grave das afrontas à Constituição o presidente ou o Congresso Nacional se converterem em instância julgadora da mais alta Corte, por discordar de suas decisões.

Em suma, o presidencialismo sem freios e contrapesos redundou num sistema de irresponsabilidade, gerador de conflitos entre Poderes, no qual o Legislativo se transforma em órgão extorsionário em busca de vantagens.

O sistema político é disfuncional, levando também a excessos da parte do STF. Só uma revisão geral permitirá a superação do mal crônico.

Miguel Reale Júnior, o autor deste artigo, é Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 04.10.25

Seus amigos estão sugando sua energia? Três caminhos para lidar com 'vampiros sociais'

Você sente que alguém suga a sua energia?

Não se trata de um ser sobrenatural que se alimenta de sangue: os chamados "vampiros de energia" são amigos que parecem drenar sua disposição quando você passa tempo com eles.

Essas pessoas podem se queixar constantemente, falar apenas sobre si mesmas e demonstrar pouco ou nenhum interesse em você ou na sua vida.

Então, como identificá-las?

Sinais comuns incluem uma necessidade excessiva de atenção e segurança, segundo a psicóloga e autora Suzy Reading.

Esses amigos também podem afetar seu humor de forma gradual, por meio de elogios disfarçados ou cobrando que você esteja sempre animado, não permitindo que você expresse como realmente está se sentindo.

A escritora e jornalista Radhika Sanghani diz que a maneira como você se sente após encontrar esse tipo de pessoa costuma ser o sinal mais claro.

"Saí de situações assim pensando: isso não está funcionando, estou realmente exausta, e consigo perceber que o problema é delas, não meu."

Se você enfrenta esse tipo de situação, aqui estão três formas de lidar com ela.

1. Diga a eles como eles fazem você se sentir

Muitas pessoas podem não perceber como o comportamento delas te afeta.

Pode acabar sendo uma conversa estranha, mas falar abertamente e dizer como se sente pode ser muito eficaz.

"Há muitos exemplos de pessoas que receberam esse tipo de feedback e ficaram horrorizadas. Elas não tinham ideia do impacto que seu comportamento tinha sobre os outros", afirma Reading.

Esse tipo de honestidade pode ajudar a preservar uma amizade.

Sanghani sugere uma abordagem do tipo: "Quando estamos juntos, sinto que não há muito espaço para mim. Não me sinto ouvida. E não estou sendo perguntada também."

Se forem amigos de verdade, ouvirão o que você diz e não ignorarão.

"Se eles imediatamente negam ou ficam na defensiva, isso mostra que não são pessoas que quero na minha vida", diz Sanghani.

2. Estabeleça limites claros

Se o seu amigo não demonstra vontade de mudar o comportamento e vocês não conseguem se afastar, é importante estabelecer limites claros para se proteger.

Isso pode incluir reduzir o tempo que passam juntos ou definir regras para quando estiverem juntos.

"Seja claro sobre o que é aceitável e o que não é", sugere Reading.

Para exemplificar, Reading diz: "Você pode dizer 'não vamos mais enviar mensagens intermináveis' ou 'não vamos falar sobre nossas emoções'", diz Reading.

Mudar as atividades que fazem juntos também pode ajudar. Se normalmente saem para comer e conversar ou tomam café com frequência, experimente uma atividade diferente.

"Por que não saem para caminhar juntos? Ou fazer exercícios juntos, para que suas necessidades ainda sejam atendidas? Isso reduz a tendência da outra pessoa de dominar tudo", recomenda Reading.

3. Esteja preparado para terminar a amizade

Preste atenção em como você se sente depois de encontrar um amigo.

"Se você teve um encontro social, pense: foi positivo, deu +2? Você saiu se sentindo melhor? Ou foi neutro, zero? Ou negativo, –2, em que a pessoa está drenando sua energia?"

Você pode ter uma tolerância diferente em relação a outra pessoa, por isso é importante confiar no próprio julgamento sobre quando começar a reduzir o tempo com alguém.

E, se a situação parecer irreparável, Sanghani diz que não é preciso ter medo de encerrar ou dar um tempo na relação.

"Em algumas situações, se for fácil, eu simplesmente me afasto, especialmente se for alguém que acabei de conhecer."

Emily Holt, originalmente, de Londres (UK) para a BBC News, em 04.10.25

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Quarenta anos de democracia

Este sistema político tão arejado quanto flexível tem raízes na administração do 31.º presidente da República, José Sarney

Sarney, ainda como Vice de Tancredo, sobe a rampa do Palácio do Planalto

Como um ponto cego na História, chama a atenção que o aniversário de 40 anos do governo do presidente José Sarney, iniciado em 23 de abril de 1985, não seja lembrado com o reconhecimento merecido. Se hoje o Brasil persiste no ciclo mais amplo e contínuo das liberdades democráticas de sua história, usufruindo de equilíbrio institucional, autonomia e alternância nos Poderes republicanos, garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, acesso irrestrito à Justiça, livre associação partidária e de manifestação do pensamento, entre vários outros pilares do regime democrático, esse sistema político tão arejado quanto flexível tem raízes na administração do 31.º presidente da República.

Levado ao cargo pela morte prematura do presidente eleito Tancredo Neves, Sarney enfrentou resistências à direita e à esquerda por ser o vice que herdaria o governo fruto de uma coligação do MDB e de dissidentes do PDS, partido do regime militar a que ele pertencera. Mas era não só político de longo curso, como um homem de cultura – e logo criou um ministério específico para essa área, entregando-o a um intelectual da estatura de Celso Furtado, um dos maiores intérpretes do Brasil. Caso único de presidente que escreveu romances, como O Dono do Mar, elogiado por Darcy Ribeiro (“não imaginava José Sarney um romancista poderoso”), fez do Estado mecenas das artes com a Lei Sarney, depois chamada de Rouanet. Ainda hoje, aos 95 anos, vai a reuniões da Academia Brasileira de Letras – dividindo a condição de presidente-imortal apenas com Getúlio Vargas.

Com visão de estadista, compreendeu que após duas décadas de regime militar, a sociedade civil carecia de liberdade institucional para se reorganizar e pacificar num pacto republicano que incluísse as diversas forças políticas que tradicionalmente oscilaram entre a disputa e a cooperação na formação social brasileira – associando-se nos movimentos de ruptura como o combate aos holandeses no Nordeste, a Independência, a Abolição, a República e a Revolução de 30. Conservador, surpreendeu ao promover a liberdade partidária, legalizando agremiações que se arrastavam na clandestinidade, a começar dos partidos comunistas, cujos dirigentes pela primeira vez foram recebidos com cerimônia no Palácio do Planalto.

Em seu governo foi concedido o direito de voto aos analfabetos e aos maiores de 16 anos. Em maio de 1985 foi aprovada a emenda constitucional restabelecendo as eleições diretas – primeiro passo para a transição para a democracia com uma nova Constituição. Convocou a Assembleia Constituinte que em 1988 legou a mais democrática Carta Magna de nossa história. Mas foi profeta ao advertir que o desencorajamento da produção contido na nova Carta poderia transformar o Brasil em “uma máquina emperrada”.

Recriando hiatos de política externa independente, restabeleceu relações diplomáticas com Cuba e aproximação com países africanos e asiáticos. Na ONU, defendeu uma nova ordem econômica mundial, insistindo em que muitos países não tinham meios de pagar suas astronômicas dívidas externas. Na vizinhança, esvaziou uma competição latente com a Argentina, brecando uma disputa nuclear entre os dois países e assinando com seu homólogo Raul Alfonsín a Declaração do Iguaçu, semente do Mercosul.

A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) contou com seu apoio. Em 1986, participou da 8.ª Conferência Nacional de Saúde, da qual surgiu o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (Suds), e determinou que a iniciativa fosse apoiada pelo governo. Daí surgiu o SUS, instituído pela Constituição em 1988.

Seu maior desafio foi o dragão da hiperinflação, língua de fogo que incinerava a economia e foi atenuada com o jeitinho brasileiro da indexação, a ponto de os dissídios coletivos contemplarem os trabalhadores com enormes reajustes salariais. Uma sucessão de planos (Cruzado, Cruzado II, Bresser e Verão) não obteve o efeito desejado, mas alguns indicadores econômicos do período foram satisfatórios. O Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 3,2%, em média, ao ano. O déficit primário de 2,58% do PIB em 1984 deu lugar a um superávit de 0,8% em 1989. A dívida externa, que exigiu penosas negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e até um ensaio de moratória, não subiu exponencialmente, mas aumentou 14%, passando de US$ 108 bilhões a US$ 123 bilhões, e hoje alcança US$ 364 bilhões.

Como era inerente a um período de redemocratização, quando a liberdade recém-conquistada propicia debates e críticas até então represados, o governo foi marcado por ruidosas manifestações de insatisfação, violentas críticas políticas e numerosas greves enfim permitidas. O barco de Sarney não navegou na bonança. Antes, cruzou mares revoltos, exigindo firmeza e serenidade do capitão ao leme, assegurando ao País que a velha e boa democracia estava de volta para garantir, como disse numa entrevista, que, se alguém batesse na casa do cidadão às seis horas da manhã, “ele teria absoluta tranquilidade de que era o leiteiro ou o padeiro, nunca a polícia”. •

Aldo Rebelo, o autor deste artigo, é Jornalista e Escritor. Foi Presidente da Fundação Ulisses Guimara~es em S. Paulo. Presidiu a Câmara dos Deputados. Foi Relator do Código Florestal, e, ainda - Ministro da Coordenação Politica e Coordenação Institucional; do Esporte, da Ciência, Tecnologia e Inovação; Secretário da Casa Civil do Governo de S. Paulo e de Relações Internacionais do Município de S. Paulo. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 30.09.25