segunda-feira, 10 de novembro de 2025

‘R$ 10 milhões no dia’; PF detalha como ‘mestre dos magos’ lavava dinheiro de venda de sentenças

Relatório da Operação Sisamnes mostra engrenagem que teria sido adotada por Andreson Gonçalves, o ‘mestre dos magos’, para branquear valores em larga escala de suposto esquema que chegou às portas do STJ envolvendo assessores de ministros; STJ diz que não comenta processos que correm no Supremo; Estadão pediu manifestação da defesa

Suspeito de encabeçar uma rede de venda de sentenças no Superior Tribunal de Justiça e em cortes estaduais, Andreson de Oliveira Gonçalves, apontado como o ‘lobista dos tribunais’, estruturou uma engenhosa cadeia de lavagem de dinheiro municiada de pelo menos 14 operadores diretos, baixa rastreabilidade e movimentações diárias que superaram R$ 10 milhões, segundo inquérito da Polícia Federal.

A reportagem do Estadão pediu reiteradamente manifestação da defesa de Andreson. O espaço está aberto.

Um dos operadores do esquema atribuído a Andreson o tratava como o ‘mestre dos magos’, em deferência a seu amplo domínio na ocultação de ativos arrecadados via corrupção.

Relatório no âmbito da Operação Sisamnes, ao qual o Estadão teve acesso, revela que o lobista, por meio de uma empresa de fachada de transporte de cargas, operou um “quadro de invisibilidade” que branqueou cifras milionárias por anos até ser alcançado pelos federais.

‘Mestre dos magos’ está em regime de prisão domiciliar em Primavera do Leste, em Mato Grosso, desde julho, com autorização do ministro Cristiano Zanin, relator da Sisamnes no Supremo Tribunal Federal.

Segundo a PF, Andreson arquitetou sofisticado método de lavagem de dinheiro com o auxílio de advogados, servidores do STJ, consultores jurídicos e outros lobistas. O grupo adotou dois “vetores preferenciais” para executar movimentações ilícitas, dizem os investigadores.

“Diferentemente de outros delitos em que o rastro financeiro tende a ser mais direto, aqui a lógica é certa: quanto mais elevado o cargo do agente público, mais sofisticados são os mecanismos criados para suprimir qualquer conexão entre a vantagem indevida e a decisão judicial”, destaca a PF no relatório subscrito pelo delegado Marco Bontempo, que atua na área mais sensível da PF, a que toca inquéritos de competências dos tribunais superiores.

Os federais afirmam que as “condições fundamentais” do esquema envolviam, primeiro, a “aparente legitimidade para movimentar quantias expressivas, justificadas pela subjetividade inerente ao valor de serviços jurídicos”, e, em seguida, a “capacidade de formalizar contratos que sustentam cifras milionárias sem despertar, de imediato, suspeitas nos sistemas de controle”.

“Sob essa roupagem, honorários advocatícios e ajustes consultivos funcionam como canais regulares de inserção de recursos ilícitos, conferindo aparência de legalidade ao preço da corrupção”, destaca o documento.

Os federais sublinham que a suposta engenharia criminosa estaria atrelada a uma “blindagem contratual” clássica de setores de alta liquidez, como o transporte de cargas - ramo escolhido por Andreson para emitir notas frias e dissimular um intenso fluxo de caixa para lavar as cifras vultosas adquiridas com a suposta venda de sentenças.

O documento aponta até suborno de autoridades como parte essencial do esquema de Andreson.

“O suborno pode ser materializado (e, muitas vezes, é) por vantagens indiretas, como o empréstimo ou custeio de hospedagens de luxo, o uso de aeronaves privadas, o financiamento de eventos e outras facilidades que, embora não configurem transferências monetárias ostensivas, equivalem a benefícios patrimoniais de caráter corruptivo”, afirma a PF.

“A assimilação dessa lógica, aliada ao conhecimento dos bastidores que sustentam o ‘jogo’, mostra-se indispensável para a correta interpretação dos elementos probatórios reunidos”, arremata o documento.

Passa no crédito, querida

A análise dos valores apresentados por Andreson junto à Receita Federal indica, segundo a PF, uma “discrepância significativa entre as receitas informadas e os valores movimentados a crédito pelo lobista em suas contas ao longo dos anos”.

Entre 2019 e 2023, período que a PF aponta como o auge da suposta farra de sentenças, a maior discrepância nas contas de Andreson ocorreu em 2021. Naquele ano, os créditos bancários superaram as receitas declaradas em mais de R$ 5,4 milhões, enquanto os débitos ultrapassaram as despesas em cerca de R$ 5,6 milhões.

Em alta

A mulher de Andreson, Mirian Ribeiro - apontada como braço direito do lobista em todas as engrenagens do esquema e também investigada na Operação Sisamnes - apresentou movimentações ainda mais alentadas em contas e cartões de crédito a partir de 2019.

Em 2023, os créditos bancários de Mirian excederam as receitas declaradas em mais de R$ 9,4 milhões, e, no ano anterior, os débitos superaram as despesas em cerca de R$ 19 milhões.

A análise da sobra financeira do período mostra que em 2022 a mulher de Andreson teve o maior saldo positivo, totalizando R$ 13,6 milhões - valor muito acima da média dos demais anos.

“Entre 2019 e 2021, as faturas do cartão de crédito em nome de Mirian Ribeiro apresentaram valores semelhantes, com uma média anual próxima a R$ 48,3 mil. Em 2022, o valor se multiplicou por 4,5 vezes, atingindo a marca de R$ 217 mil anuais. Em 2023, as faturas mais que dobraram novamente, chegando a R$ 533,5 mil”, retrata a PF sobre as movimentações de Mirian.

‘Aline Novo’

Com uma frota de 396 veículos avaliada em R$ 98 milhões, a empresa Florais Transporte Ltda, adquirida por Andreson em 2013, funcionava como núcleo financeiro do esquema e serviria como centro de “redistribuição” de propinas a magistrados, servidores, advogados e empresários envolvidos no suposto mercado de sentenças.

Em conversa de 8 de agosto de 2023 no WhatsApp com um contato identificado pela PF como ‘Aline Novo’, o ‘lobista dos tribunais’ se gaba das cifras branqueadas pela empresa.

“Eu recebo muito na conta da transportadora e lanço como STE de frete”, explicou Andreson.

“O movimento é violento”, seguiu o lobista.

“Pode mandar 10 milhões por dia que não faz diferença”, debochou Andreson.

Diálogo anexado pela PF entre Andreson de Oliveira e 'Aline Novo' Foto: Reprodução/Polícia Federal

A PF destaca que, entre 2014 e 2024, uma única conta bancária da empresa fantasma registrou créditos de R$ 72 milhões e débitos de R$ 73 milhões. Entre os movimentos mais suspeitos, os investigadores elencaram 216 depósitos em espécie que somaram R$ 1,2 milhão, o pagamento de 228 empréstimos que totalizaram R$ 3,2 milhões -“expediente típico de circulação artificial de valores” - e a compensação de 407 cheques no valor total de R$ 7,3 milhões, o que, segundo o relatório, indica um “padrão de pulverização financeira”.

O advogado Roberto Zampieri, também apontado como lobista e emblemático personagem do esquema, foi assassinado em dezembro de 2023 à porta de seu escritório em Cuiabá.

O rastreamento bancário mostra que Zampieri transferiu desde 2019 mais de R$ 7 milhões para a empresa de Andreson antes de ser executado por um pistoleiro de aluguel, em dezembro de 2023.

‘Zamp’, como era chamado por Andreson, realizou no mesmo período 642 saques em espécie, totalizando R$ 12,7 milhões. O advogado chegou a sacar na boca do caixa, em uma única ocasião, R$ 1 milhão, segundo a PF.

A opulenta lavagem articulada pelo lobista ocorria em três etapas principais, de acordo com a investigação. Na primeira, após a emissão das notas frias, “os valores ilícitos eram inseridos nas contas da transportadora por meio de transferências bancárias aparentemente regulares, apresentadas como pagamento por serviços supostamente prestados”, diz o documento.

Em seguida, a transportadora atuava como “núcleo de dissimulação”, redistribuindo os recursos para contas de pessoas que intermediavam a venda de sentenças ou para empresas de fachada indicadas pelo “agente público corrupto”, como classificou a PF.

“Ao final do processo, os valores alcançam o destinatário e seus intermediários já revestidos de aparência lícita, aptos a serem aplicados na aquisição de bens, em investimentos ou na manutenção de elevado padrão de vida, com significativo grau de blindagem contra mecanismos de controle e fiscalização”, sinaliza a investigação.

Investigação aponta 'baixa rastreabilidade' e 'flexibilidade' como pilares centrais do esquema Foto: Reprodução/Polícia Federal

Elenco recheado

Os federais apuram o envolvimento de ao menos 14 operadores financeiros no esquema, entre contadores, doleiros e servidores do Superior Tribunal de Justiça.

O inquérito Sisamnes pontua a atuação de Nilvan Marques Medrado, responsável técnico-contábil por quatro empresas controladas por Andreson, entre elas a Florais Transporte Ltda e a companhia de táxi aéreo do lobista, que operava uma frota de quatro aeronaves de pequeno porte avaliadas em R$ 16 milhões.

“A investigação apurou que Nilvan figura como contador de 152 pessoas jurídicas, das quais 126 estão sediadas no estado de Mato Grosso, sendo que aproximadamente 75% delas atuam no setor de transporte rodoviário de cargas, segmento fortemente associado às operações identificadas”, contextualiza a PF.

No STJ, Andreson mantinha ligação com Márcio José Toledo Pinto, servidor que atuou em gabinetes de ministros da Corte e foi exonerado em setembro após uma sindicância interna do tribunal. Ao lado da mulher - Vanessa Resende Gonçalves -, Márcio controlava a empresa de fachada Marvan Logística e Transporte, segundo a PF.

Empresa 'passou a desempenhar papel central no núcleo financeiro do esquema criminoso, atuando como principal conta de passagem para a inserção e redistribuição de valores ilícitos', diz investigação

Empresa 'passou a desempenhar papel central no núcleo financeiro do esquema criminoso, atuando como principal conta de passagem para a inserção e redistribuição de valores ilícitos', diz investigação Foto: Reprodução/Polícia Federal

Além de ter Nilvan Marques Medrado como contador, a Marvan era responsável por repasses milionários à companhia de Andreson que, segundo a PF, funcionava como núcleo financeiro do esquema.

“O quadro de transferências aponta que, entre maio de 2021 e dezembro de 2023, foram realizados mais de 40 lançamentos, muitos deles de grande vulto, como os repasses de R$ 250.000 em duplicidade no mesmo dia, além de transferências recorrentes de R$100.000, R$ 150.000 e R$ 200.000 ao longo de 2022 e 2023”, mostram os investigadores.

“Os elementos reunidos permitem concluir que a Marvan Logística foi instituída como empresa de fachada para dar suporte ao esquema de corrupção e lavagem de capitais, funcionando como elo entre as transferências provenientes da Florais Transportes e o núcleo familiar do servidor Márcio”, arremata a PF.

Andreson mantinha ligação com Márcio José Toledo Pinto, servidor que atuou em gabinetes de ministros da Corte e foi exonerado em setembro Foto: Reprodução/Polícia Federal

‘Encomenda’

A entrega das remessas em espécie para servidores do STJ teria ocorrido dentro da própria Corte, até em gabinetes de ministros, segundo sugere troca de mensagens entre Andreson e Zampieri em 9 de setembro de 2023.

“Vim conversar com um chefe de gabinete do ministro. Tive que vir de carro para trazer uma encomenda para ele. Te ligo daqui a pouco”, enviou Zampieri ao lobista, no que a PF acredita ser uma entrega de valores em espécie.

Saques em espécie eram corriqueiros na engrenagem nutrida por Andreson e Mirian Ribeiro, diz a PF Foto: Reprodução/Polícia Federal

A investigação ainda não identificou quem teria recebido os supostos malotes das mãos de Zampieri dentro das dependências do STJ.

As suspeitas da PF, contudo, recaem sobre Rodrigo Falcão, ex-chefe de gabinete do ministro Og Fernandes.

O magistrado não é investigado. Og informou, por meio de sua assessoria, que “não tem conhecimento desses novos fatos” e reforçou que, “respeitando o direito ao contraditório, quem cometer ato ilícito deve assumir as consequências legais cabíveis”.

Trilha do dinheiro

Centralizada na empresa de fachada controlada por Andreson, a atuação dos operadores financeiros seguia quatro funções principais, segundo a investigação: promover a dispersão dos valores ilícitos por meio de diferentes expedientes, como saques em espécie com entrega direta a terceiros, pagamento de boletos e financiamentos, custeio e empréstimos de cartões de crédito, além da quitação de despesas pessoais e repasses a empresas.

A cartilha criminosa, descrita pela PF como “deliberada e consciente”, compôs “uma teia empresarial artificialmente construída para fragmentar a movimentação e dificultar a reconstrução da trilha do dinheiro”, apontam os federais.

‘Mestre dos magos’

Um aliado próximo de Andreson era o operador Diego Cavalcante Gomes, diz o inquérito. Entre 2018 e 2024, ele movimentou R$ 60,2 milhões - destaque para 520 saques na boca do caixa, que totalizaram R$ 9 milhões. A maioria das operações foi realizada em agências bancárias de Brasília, frisa a PF.

Operador financeiro do esquema, Diego Cavalcante Gomes, movimentou R$ 60,2 milhões em seis anos Foto: Reprodução/Polícia Federal

“Os elementos demonstram que Diego desempenhou papel essencial como operador, recebendo valores da Florais Transportes e executando a etapa crucial de ocultação/dissimulação por meio de saques fracionados, em linha com a tipologia clássica de lavagem de capitais”, anotam os investigadores.

Salvo no celular de Andreson como ‘Diogo Brasília’, o operador demonstrou “familiaridade e rotina” com as transações ilícitas envolvendo o lobista. Em diálogo de 13 de julho de 2023, Diogo se refere a Andreson como “mestre”.

“Amigo, boa tarde. Ainda está de pé?, questionou Diego Cavalcante que, em seguida, enviou dados bancários.

“Desculpa. Esqueci. Já mando fazer”, respondeu Andreson, prestes a enviar R$ 25 mil para a conta de Diego.

“Muito obrigado, mestre dos magos. Na terça eu já te passo”, respondeu o operador.

Suposto operador demonstrou “familiaridade” com as transações ilícitas, diz PF Foto: Reprodução/Polícia Federal

Para além de emitir ordens de repasses, Andreson também recorria a uma conta de passagem para viabilizar o branqueamento dos ativos. Essa função, segundo a PF, cabia a Daniela Barbosa Schutz. Ela gerenciava uma agência de viagens fantasma a serviço do esquema criminoso, diz o inquérito.

A quebra de sigilo bancário de Daniela mostra que a suposta operadora recebeu R$ 4 milhões da empresa de Andreson e outros R$ 200 mil transferidos diretamente por Mirian Ribeiro, a mulher do lobista.

Investigação aponta que empresa de Andreson fazia transferências vultosas para contas de Daniela Foto: Reprodução/Polícia Federal

“O volume e a frequência dessas operações afastam a hipótese de relação comercial legítima entre uma transportadora de cargas e uma agência de turismo, reforçando que Daniela foi utilizada para absorver e redistribuir recursos ilícitos do grupo”, crava a investigação.

“Destaca-se, ainda, que parte relevante dessas operações envolveu a quitação de faturas de cartão de crédito em montantes expressivos, expediente recorrentemente empregado para converter recursos ilícitos em padrão artificial de consumo e, posteriormente, reintegrá-los ao circuito econômico formal”, segue o documento.

Durante busca e apreensão na agência de turismo de Daniela, a PF encontrou diversas faturas de cartão de crédito com valores expressivos, algumas com pagamento antecipado acima do valor devido. Segundo o relatório, essa prática gerava créditos robustos para a fatura seguinte, criando um saldo positivo que poderia ser usado em benefício de terceiros.

A investigação aponta que a Florais Transportes fazia transferências para as contas de Daniela. Ela aplicava os recursos em créditos antecipados.

Depois, o cartão já quitado ou com saldo pré-carregado era repassado a Andreson, que entregava o ‘presente’ ao agente público corrupto, permitindo o uso do limite sem deixar rastros que o ligassem diretamente ao núcleo pagador, diz o inquérito da PF.

Saldo positivo dos cartões poderia ser usado em benefício dos 'agentes públicos corruptos', aponta investigação Foto: Reprodução/Polícia Federal

“Esse arranjo configura um mecanismo indireto de pagamento de propina, cuja sofisticação reside justamente na dificuldade de rastrear o beneficiário real: formalmente, as despesas aparecem como realizadas em nome de Daniela, mas, na prática, o usufruto se dá por parte do agente público”, diz a investigação.

Os ‘brindes’ patrocinados por Andreson a quem colaborasse com seu esquema de venda de sentenças não se limitavam a faturas gordas de crédito ou mesmo transferências vultosas que pingavam direto na conta do beneficiário.

Fórmula 1

Os ‘clientes’ do lobista, informa a PF, também tinham acesso a regalias, como mostrou um pagamento feito por Daniela à empresa MC Brazil Motorsport Holdings S.A., no valor de R$ 33.962,50, referente a ingressos para o Grande Prêmio de Fórmula 1 de São Paulo em 2024.

“Esse achado indica a possível utilização de recursos ilícitos para movimentações financeiras indiretas, aqui evidenciada pelo possível custeio de despesas luxuosas, por meio de liquidação de boletos. Trata-se de conduta que se enquadra na fase de integração da lavagem de dinheiro, em que valores de origem ilícita são reinseridos no circuito econômico sob a aparência de consumo legítimo”, aponta a PF.

Os federais também apuram se Daimler Alberto de Campos, ex-chefe de gabinete da ministra do Superior Tribunal de Justiça, Isabel Gallotti, adotou o mesmo tipo de “simulação de liquidez” usado por Daniela através de cartões de crédito.

“Embora não se descarte a hipótese de automatismos bancários, a frequência e a semelhança em relação a pagamentos vultosos reforçam a suspeita de que tanto Daniela quanto Daimler tenham sido utilizados como plataformas de movimentação indireta do esquema, cada qual por meio de uma engrenagem distinta, mas convergente na lógica de dissimulação patrimonial”, destaca a PF.

Gallotti não é investigada pelos federais e informou, por sua assessoria, que “desconhece o conteúdo da investigação, porque tramita em sigilo, e que seu gabinete está à disposição para auxiliar, no que seja necessário, a fim de que sejam cabalmente apurados os fatos ocorridos e responsabilizados todos os envolvidos”.

A defesa de Daimler, conduzida pelo advogado Bernardo Fenelon, afirma que o nome dele foi ‘utilizado de maneira espúria para gerar uma influência fictícia’ (leia abaixo a íntegra da nota de Fenelon).

‘Tem fácil aí?’

As recentes diligências da Operação Sisamnes também identificaram um ‘agente duplo’ no esquema encabeçado por Andreson, que além de lavar dinheiro para o lobista, intermediava informações privilegiadas de dentro do STJ. O operador João Batista da Silva recebeu repasses diretos da Florais Transportes em valores considerados “expressivos e incompatíveis com sua renda declarada”, segundo a PF. Entre 2019 e 2024, sua conta bancária registrou 345 créditos da empresa de Andreson, que totalizaram R$ 3 milhões.

João Batista teria assumido dupla função no esquema criminoso, afirma PF Foto: Reprodução/Polícia Federal

“Dentre esses créditos, chama atenção o volume de transferências individuais de maior valor”, detalha a investigação. Apenas entre as operações iguais ou superiores a R$ 40 mil, o rastreamento identificou diversos repasses consecutivos, incluindo transferências de R$ 100 mil, R$ 76 mil, R$ 70 mil R$ 60 mil e R$ 52.560.

“Esse padrão revela tanto a utilização do fracionamento (smurfing) quanto de saques próximos ao limite legal de comunicação obrigatória, expediente clássico de lavagem de capitais por numerário”, ressalta a PF.

A análise da nuvem do celular de Andreson revelou que Batista também enviava documentos judiciais para o lobista meses antes da divulgação oficial nos sistemas do STJ.

Em diálogo extraído pelos federais, Batista encaminha três anexos sigilosos que tramitavam no gabinete da ministra Gallotti em julho de 2023.

“João, você tem fácil aí aqueles 3 anexos?”, perguntou Andreson no dia 7 daquele mês.

“Um momento”, pediu Batista, que encaminhou em seguida um ‘pacote’ de decisões sigilosas da ministra.


Investigação aponta que Batista encaminhava documentos judiciais para Andreson meses antes da divulgação oficial pelo STJ Foto: Reprodução/Polícia Federal

Saca e distribui

A investigação também revelou que Mizael Soares Passos seria o encarregado de sacar e repartir os valores ilícitos, “reforçando a engrenagem de lavagem de capitais estruturada por Andreson”, afirma a PF.

A quebra de sigilo bancário aponta que Mizael recebeu R$ 306 mil da Florais Táxi Aéreo, empresa de fachada ligada a Andreson que oferecia serviços de aviação fictícios.

Mizael Soares teria realizado centenas de saques em espécie e repartido os valores ilícitos entre os envolvidos no esquema, diz PF Foto: Reprodução/Polícia Federal

A PF suspeita que ele atuava como mais uma “conta de passagem” no esquema - Mizael movimentou cerca de R$ 1 milhão em 173 operações de saque.

A boletagem artificial também era corriqueira na engrenagem nutrida por Andreson e Mirian Ribeiro, diz a PF.

A prática visa ocultar o patrimônio real do criminoso, que movimenta valores ilícitos através de boletos sem lastro comercial efetivo, assinalam os investigadores.

“Nessa sistemática, pessoas físicas ou jurídicas vinculadas ao núcleo pagador e ou a estruturas de fachada emitem boletos aparentemente regulares, que são quitados com recursos de origem suspeita, frequentemente em espécie ou por transferências entre contas controladas pelo mesmo grupo, de modo a conferir aparência de licitude às entradas e saídas financeiras”, argumenta a investigação.

O funcionamento da boletagem dependia dos serviços de Danúbia Dayane Albanezi, funcionária vinculada ao escritório de Zampieri.

“Veja e depois apaga!”, enviou Danúbia no WhatsApp para Zampieri após confirmar a emissão dos boletos frios.

Funcionária do escritório de Zampieri, Danúbia era responsável pela boletagem artificial do esquema, afirma PF Foto: Reprodução/Polícia Federal

COM A PALAVRA, A DEFESA DE DAIMLER ALBERTO DE CAMPOS

“A apuração demonstra claramente que não existe nenhum vínculo entre nosso cliente e os fatos sob investigação. Aqueles que mantiveram relação com grupo investigado, inclusive, já foram punidos e demitidos pelo próprio Tribunal.

O seu nome (assim como o de outras autoridades) foi utilizado de maneira espúria para gerar uma influência fictícia. Isso se comprova nitidamente neste último relatório da investigação: os contatos telefônicos salvos com o nome “Daimler”, na verdade, pertencem a terceiros que ele desconhece absolutamente."

Bernardo Fenelon, advogado

COM A PALAVRA, A DEFESA DE ANDRESON GONÇALVES

A reportagem do Estadão pediu reiteradamente manifestação da defesa de Andreson Gonçalves. O espaço está aberto.

COM A PALAVRA, OS DEMAIS CITADOS

A reportagem do Estadão busca contato com as defesas de outros citados na investigação. O espaço está aberto para manifestação (rayssa.motta@estadao.com; fausto.macedo@estadao.com; felipe.paula@estadao.com).

Rayssa Motta, Felipe  de Paula e Marcelo Godoy, Jornalistas, fizeram a apuração. Publicado originalmente no blog do Fausto Macedo n'O Estado de S. Paulo, em 10.11.25

A burocracia como negócio

Os oligopólios notariais são a mais próspera anomalia do Brasil: feudos travestidos de função pública, que prometem segurança jurídica, mas entregam privilégios, custos abusivos e atraso

Em 25 dos 27 Estados brasileiros, o ofício mais bem pago não é o de empresário, médico ou jogador de futebol. É o de tabelião – nos outros dois, é o de juiz ou procurador. Como radiografou uma reportagem do Estadão, uma casta de delegatários investidos de “fé pública” subverte há séculos uma função estatal em “mina de ouro vitalícia”. Ganha-se mais autenticando assinaturas do que dirigindo empresas ou salvando vidas. É o retrato do patrimonialismo: a burocracia como negócio.

O cartel cartorial é uma anomalia que sobreviveu à República, à industrialização e à revolução digital. Enquanto países modernos digitalizaram seus registros e integraram cadastros, o Brasil cultiva uma distopia de balcões, carimbos e taxas. Criados para dar segurança jurídica, os cartórios consolidaram um ecossistema de privilégios blindado pelas corporações de juízes e procuradores, que levam parte do butim. Um microcosmo do clientelismo, onde a função é pública, e os lucros, privados.

Em média, os tabeliães faturam R$ 156 mil mensais, e alguns mais de meio milhão. A receita anual dos cartórios – mais de R$ 30 bilhões – supera o orçamento somado de programas como o Farmácia Popular, o Mais Médicos e a merenda de todas as crianças da rede pública. Um enclave rentista sem concorrência cimentado por lei – verdadeiros feudos de arrecadação.

O mantra da “segurança jurídica” dá verniz a um Leviatã notarial que sobrevive de rituais anacrônicos. Em pleno século 21, o cidadão ainda precisa reconhecer firma, autenticar cópias e peregrinar de guichê em guichê para provar que é quem diz ser – eternamente cativo de uma burocracia bizantina que transforma o tempo em tributo e condena o País a ser um dos mais lerdos e caros do planeta para abrir empresas, registrar propriedades e executar contratos.

A distorção é, a um tempo, moral e econômica. Segundo a Câmara Brasileira da Indústria da Construção, a burocracia cartorial encarece a casa própria em até 12% – uma taxa informal sobre o direito de morar. As taxas formais variam grotescamente – o protesto de uma dívida pode custar R$ 69 no Ceará e R$ 4 mil no Piauí. Essa máquina de produzir desigualdades e asfixiar a produtividade não é acidente: é produto do lobby do carimbo e do balcão que bloqueia toda tentativa de simplificação, padronização ou transparência.

O contraste internacional é humilhante. Na Suécia, registros civis e fiscais são totalmente digitais e gratuitos. Portugal privatizou o notariado, mas fixou tarifas e limitou ganhos. Na França, os notários são oficiais nomeados pelo Estado, com tabela nacional e controle público. Até a Estônia permite abrir empresas em minutos, com total rastreabilidade digital. Já o Brasil conserva capitanias hereditárias sustentadas por selos, carimbos e taxas do século 19.

Não se trata de destruir a fé pública, mas de modernizá-la. O País precisa de um novo pacto cartorial, guiado por eficiência, transparência e concorrência. Isso implica consumar a digitalização dos registros públicos; fixar um teto remuneratório vinculado ao serviço público; padronizar e publicar os emolumentos sob autoridade independente; e permitir concorrência territorial e fé pública compartilhada com instituições certificadas, como já ocorre em Portugal. E, sobretudo, quebrar a simbiose entre burocracia, Justiça e política que perpetua essa reserva de mercado oligárquica.

Nenhum país que aspire à modernidade pode tolerar um despotismo capilarizado que transforma o ato de registrar uma escritura em privilégio de casta. A digitalização e a competição não ameaçam a segurança jurídica – apenas retiram dos carimbos o monopólio da confiança. É hora de devolver ao cidadão o tempo e o dinheiro sequestrados por uma elite extrativista.

Desburocratizar os cartórios é mais do que uma reforma administrativa: é um gesto civilizacional. É libertar o Brasil do cativeiro do papel, dos labirintos de formulários e dos rituais de submissão ao balcão. Nenhuma democracia decente transforma o selo público em fortuna privada. A República começa quando a assinatura deixa de ser negócio – e volta a ser um ato de fé na lei, não no tabelião.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 10.11.25

Brasil pode ter 1 milhão de assassinos nas ruas; entenda

Violência mina confiança, base do crescimento econômico no longo prazo


Suzane von Richtofen e os irmãos Cravinhos na época do assassinato Foto: Agliberto Lima/Estadão

Tenho um desafio para ser usado em processos seletivos. É dessas perguntas que ninguém sabe a resposta, mas que é feita para ver como os candidatos raciocinam. A pergunta é: quantos assassinos soltos existem no Brasil?

Todos já saíram do regime fechado. Quantos outros? Para saber quantos homicidas estão nas ruas, a quantidade de homicídios é um bom ponto de partida. Considerando apenas os assassinatos deste século, seriam 1,2 milhão.

Pelos dados do governo federal, o número de presos em regime fechado é bem menor, cerca de 360 mil. Para que não nos acusem de sermos viesados, vamos arredondar os homicídios para baixo, a 1 milhão, e arredondar os presos para cima, a 500 mil.

A diferença entre a quantidade de assassinatos e a quantidade de pessoas presas seria de 500 mil, mas esse é um número ainda muito simplista. Em primeiro lugar, porque há pessoas presas que podem não ser assassinas. Diante da falta de bons dados, o candidato teria que fazer estimativas aí.

Em segundo lugar, porque a relação entre homicídios e homicidas não é simples. Há crimes com mais de um assassino, como Suzane e os Cravinhos. E há assassinos com mais de um crime, como o Maníaco do Parque ou os próprios reincidentes do sistema, como aquele sujeito no Sul que concretou a própria mãe, foi condenado e logo solto, e então colocou a namorada esquartejada em uma mala.

Estimar o número de assassinos livres no Brasil precisa levar em consideração também que é comum que assassinos sejam eles próprios vítimas de assassinatos, como em guerras de facções. Há, ademais, os que podem ter morrido de causas naturais ao longo do tempo. De outra parte, é raríssimo que assassinos do trânsito fiquem na cadeia.

Independentemente das contas que você faça, a resposta será assustadora. A conclusão seria de que o Brasil tem 300 mil, 500 mil ou até mais de 1 milhão de assassinos soltos (com probabilidade alta para este último).

Esbarramos com quantos ao longo de nossas vidas?

Como normalizamos isso? O Presidente do Banco Central falou outro dia sobre o aumento da violência. Disse que não é algo que ele inclui nas projeções da autoridade monetária, mas destacou que a confiança é a base do sucesso da economia, e esse capital social é ameaçado pela guerra entre facções. “É com certeza uma tendência preocupante, também de uma perspectiva econômica no longo prazo”, disse Erik Thedéen, do Riksbank, preocupado com o crescimento da violência na Suécia.

Pedro Fernando Nery, o autor deste texto, é Professor de economia do IDP (Instituto de Direito Público) Autor do livro "Extremos - Um Mapa para Entender as Desigualdades no Brasil". Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 10.11.25

sábado, 8 de novembro de 2025

CPI do Crime Organizado deve também mirar políticos e 'andar superior', diz presidente de comissão

Colegiado deve prestar serviço à população, afirma senador Fabiano Contarato (PT-ES)

Para parlamentar, é possível conciliar defesa de direitos humanos e combate firme a delitos

Fabiano Contarato, 59, Senador pelo Espírito Santo, fez carreira na área de segurança pública. Foi delegado da Polícia Civil, diretor-geral do Detran-ES e corregedor-geral da Secretaria de Estado de Controle e Transparência. É mestre em sociologia política pela Universidade Vila Velha e professor de direito penal.

O presidente da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) do Crime Organizado, Fabiano Contarato (PT-ES), afirma que o colegiado deve mirar políticos e o "andar superior" que estimulam o avanço do crime organizado no país.

Ao defender uma apuração que alcance a corrupção também dentro das instituições, diz que a CPI precisa apresentar soluções concretas e não se transformar em palanque político às vésperas das eleições de 2026.

Contarato, que é filiado ao PT e foi delegado de polícia, afirma que o partido tem passado por um processo de reflexão sobre segurança pública. Ele defende que é possível conciliar a defesa dos direitos humanos com o combate firme ao crime organizado.

Sobre o presidente Lula (PT), que falou em matança ao se referir à operação no Rio de Janeiro que deixou 121 mortos, inclunindo quatro policiais, o senador diz que o petista expressou preocupação com o alto número, mas ponderou que é preciso cautela antes de qualquer julgamento.

A CPI foi instalada nesta terça-feira (4) e terá como relator o senador Alessandro Vieira (MDB-SE). O senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS) será o vice-presidente.

O que esperar da CPI?

O crime organizado tem várias frentes que podem ser exploradas: espaço territorial, que envolve milícia, facção, tráfico de entorpecentes, aspecto econômico. Se você olhar para os aspectos da corrupção, também há a possibilidade até mesmo do envolvimento de políticos. Eu acho que a CPI tem que prestar um serviço à população. Tanto eu, quanto senador Alessandro Vieira [relator], temos perfil mais técnico [delegado], de ser mais pragmático, mais objetivo. Então, eu espero que ela aponte soluções.

Como evitar que a CPI vire palanque político às vésperas das eleições de 2026?

Não estou querendo falar porque eu estou no Senado, mas o perfil é mais, vamos dizer, mais respeitoso. Então, eu acho que esse tipo de comportamento tem como você impedir, parar e falar 'olha, isso não é o objeto da CPI, nós não podemos perder tempo com relação a isso'. Então, eu acho que tudo depende da forma como você vai conduzir. É claro que vai ter discurso, vai ter senador que vai estar lá para fazer recorte para a rede ou para falar do partido, do governo. Mas eu tenho consciência tranquila de que estarei ali para tentar contribuir e evitar.

E importante mencionar que eu sou progressista, mas eu não confundo ser progressista com ser permissivo com quem comete crime, principalmente crime organizado, principalmente organização criminosa, principalmente com lavagem de dinheiro, com corrupção, com envolvimento de pessoas de elevado poder aquisitivo. Eu acho que dá para conciliar as duas coisas. Passou da hora de a gente entender, principalmente o campo progressista, que debater segurança pública não é uma pauta exclusiva da direita, é uma pauta de todos nós.

A oposição apresentou requerimento para ouvir membros de facções. O sr. pretende colocar isso em votação?

Pautar é prerrogativa e poder discricionário da presidência. Eu vou ter toda cautela. Eu vou seguir o plano de trabalho. Isso [ouvir membro de facções] não está sendo debatido no desenrolar desta CPI. Eu tenho que pegar efetivamente a mão estendida dessas organizações criminosas, não só quem está lá na ponta ou quem já foi preso. Quer dizer que isso não vai acontecer lá no futuro? Eu não sei, mas não sei qual é a relevância para chamar. Isso nem sequer está no radar da comissão.

O que o sr. achou da declaração do presidente Lula ao classificar a situação no Rio como matança?

Eu acho que o Congresso tem que debater de forma mais responsável o tema da segurança pública. Esse assunto não pode ser exclusivamente da direita, eu faço parte da Comissão de Segurança Pública do Senado e estavam aumentando lá a pena do estelionato para 19 anos de reclusão.

Eu falei assim: "Olha, a pena do homicídio é de 6 a 20. O estelionato é praticado sem violência e sem grave ameaça à pessoa. Como fica a proporcionalidade?". Eu acho que falta o envolvimento de todos os partidos, independentemente de coloração partidária, para tratar do assunto com mais responsabilidade.

Como membro do PT, o que o sr. acha do discurso do partido sobre segurança pública?

Eu acho que está havendo uma reflexão do partido. Eu acho que ele está repensando esses valores, esse tema.

O que o sr. achou da declaração do presidente Lula ao classificar a situação no Rio como matança?

Eu acho que a reflexão do presidente é de preocupação, ele é um chefe de Estado. Eu sempre falo, eu sou delegado, o policial tem que ser visto como garantidor de direitos, e não como violador de direitos. Talvez ele não tenha sido feliz na colocação quando fez esse pré-julgamento. Eu, sinceramente, não sei quais foram as circunstâncias de como aquela operação se desencadeou naquele contexto que resultou nessa quantidade de óbitos.

Só quem está lá efetivamente é quem sabe. Imagine você entrando lá e sendo recebido por pessoas fortemente armadas. E isso deve ser aprofundado e apurado no inquérito policial, que vai ter a participação da Defensoria, do Ministério Público.

Mas eu não posso, aí a fala é minha, partir da premissa de já determinar que houve uma execução sumária. Eu prefiro esperar, pela cautela e pela prudência, que seja apurado. E, aí sim, se for apurado que houve pessoas ali que não reagiram e ainda assim houve execução, aí tem que se atribuir responsabilidade penal, civil e administrativa para qualquer pessoa que assim tenha praticado.

Como foi a operação na sua avaliação?

O objetivo era prender o Doca, o segundo no Comando Vermelho. Ele não foi preso. Foi restituída a pacificação para a comunidade? Houve a ocupação social ali pelo poder público? Nós tivemos um saldo de 121 mortos. O resultado, para mim, é mais uma operação que resultou em óbitos de policiais e também de civis.

Qual o legado o sr. espera que a CPI deixe?

O que a gente pode dar é uma resposta eficiente de mudança naquilo que seja de competência do Poder Legislativo. No aspecto da responsabilidade, buscar essa união entre União, estados e municípios, para que eles possam trabalhar em um sistema de cooperação mútua. Agora, não tem como falar que a comissão vai apurar a omissão ou o comportamento do governador A, B ou C. Ela tem que fazer esse diagnóstico, tem que ser propositiva, tem que apresentar projeto de lei, legislar, aprovar as leis e fazer esse trabalho de buscar uma interação entre os poderes.

Eu espero que a gente alcance, por exemplo, o andar superior também de quem, de qualquer forma, tenha concorrido para estimular o crime organizado, seja em facções, seja em milícias, lavagem de dinheiro, corrupção, não importa. Esse tema é tão complexo porque ele envolve também a corrupção dentro dos âmbitos das instituições.

Entrevista concedida a Raquel Lopes para a Folha de S. Paulo (edição impressa). Publicada originalmente em 07.11.25.

'Primeiro, conquistamos Manhattan'

Promessas de novo prefeito configuram programa tão ousado quanto arriscado

Mamdani não pode candidatar-se a presidente, mas lançou desafio a Trump

O prefeito eleito de Nova York, Zohran Mamdani, em uma entrevista coletiva após sua vitória - Kylie Cooper - 5.nov.25/Reuters

"Condenaram-me a vinte anos de tédio/ por tentar mudar o sistema por dentro/ Estou chegando agora, estou chegando para recompensá-los/ Primeiro, conquistamos Manhattan, depois conquistamos Berlim". O compositor Leonard Cohen escreveu o verso em 1987, para uma canção que definiu como tributo a "nossos terroristas, Jesus, Freud, Marx, Einstein". Zohran Mamdani nasceria apenas quatro anos depois, mas seu triunfo em Nova York parece a muitos uma confirmação: só o radicalismo salva.

Trump colheu derrotas em série na terça passada, um reflexo da queda livre de sua aprovação desde a posse (de +18% a -1% entre brancos, de -8% a – 37% entre hispânicos e de -37% a -76% entre negros). As vitórias democratas na Virginia e em Nova Jersey inscrevem-se na equação das pesquisas. Nova York, porém, descortinou a opção estratégica que divide os democratas: Cuomo, o pragmatismo centrista, ou Mamdani, o giro à esquerda. Interpreta-se, febrilmente, o resultado como lição.

Homem fala em púlpito com placa azul que diz 'A NEW ERA for NEW YORK CITY'. Microfones estão posicionados à frente, e fundo mostra relevo arquitetônico.

Um ano atrás, Trump obteve na cidade a maior votação de um candidato presidencial republicano desde 1988, alcançando 30% dos votos. Às vésperas da eleição municipal, o presidente abandonou o candidato de seu partido para endossar Cuomo, contra o "lunático esquerdista" Mamdani.

Numa leitura superficial, pretendia ajudar a eleger o "mal menor". Uma segunda leitura sugere manobra mais sofisticada: como seu apoio é visto como kriptonita pela maioria dos eleitores democratas, a intenção seria incinerar o centrista a fim de exibir o rosto de Mamdani como a face do conjunto do Partido Democrata.

Mamdani descreve-se como um "democrata socialista". Em 2020, no rastro dos protestos de rua contra o assassinato de George Floyd, qualificou a polícia de Nova York como "racista, anti-queer e uma ameaça à segurança pública", clamando pelo "desfinanciamento" do departamento policial municipal. De lá para cá, desculpou-se e assegurou que repudia aquelas opiniões. Os democratas, centristas ou esquerdistas, concluíram corretamente que suas políticas identitárias fracassaram, traçando a via do retorno de Trump à Casa Branca. Mas o consenso termina aí.

O populismo nacionalista e reacionário de Trump recuperou uma classe trabalhadora desprezada pela "nova esquerda" pós-marxista. Bernie Sanders, o pretendente democrata batido por Hillary Clinton, não se cansa de propor a restauração da "velha esquerda": a luta por direitos sociais e econômicos. A campanha de Mamdani, embalada pelo colorido dos filmes de Bollywood e impulsionada por bandos de jovens engajados nas redes sociais, ofereceu uma embalagem contemporânea a um conceito antigo: populismo econômico.

Congelamento dos aluguéis de um milhão de apartamentos, gratuidade nos transportes e creches municipais, mercados públicos subsidiados –as promessas configuram um programa tão ousado quanto arriscado. Seus custos, Mamdani não escondeu, serão cobertos por forte elevação de impostos. À memória de não poucos democratas terá emergido a imagem de Jeremy Corbyn, o socialista britânico que encantou o Partido Trabalhista até levá-lo, em 2019, à mais humilhante derrota eleitoral desde 1935.

Mamdani não pode candidatar-se a presidente, mas lançou o desafio a Trump: "aumente o volume do som". Manhattan, primeiro, depois os EUA. A esquerda democrata dobra sua aposta.

Demétrio Magnoli, o autor deste texto é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP. Publicado originalmente pela Folha de S.Paulo, em 07.11.25 

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Primeira Turma do STF tem maioria para rejeitar recurso de Bolsonaro: o que acontece agora?

Moraes, o relator do caso na 1ª Turma do STF, é quem vai definir onde Bolsonaro ficará preso

Bolsonaro ao retornar à prisão domiciliar, depois de ser internado em um hospital para cirurgia, em setembro (Crédito: Reuters)

Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria para rejeitar o recurso apresentado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro contra sua condenação por tentativa de golpe de Estado, a 27 anos e três meses de prisão em regime fechado.

O julgamento, realizado no plenário virtual, começou nesta sexta-feira (7/11) e os ministros têm até a sexta-feira da próxima semana (14/11) para apresentar seus votos.

Primeiro a se manifestar, o relator do processo, Alexandre de Moares, votou pela rejeição do recurso e foi acompanhado integralmente por Flávio Dino e Cristiano Zanin.

Só falta se manifestar a ministra Cármen Lúcia. Único a votar pela absolvição de Bolsonaro em setembro, o ministro Luiz Fux solicitou sua transferência para a Segunda Turma e, por isso, não participa desse julgamento.

A expectativa de juristas é que o pedido da defesa será rejeitado por unanimidade, tornando mais próximo o início do cumprimento de sua pena.

Esse primeiro recurso apresentado é chamado de embargos de declaração, que serve para esclarecer possíveis erros, omissões e contradições do julgamento.

Moraes, porém, considerou que o recurso não buscou sanar esses problemas, mas contestar o mérito da condenação.

"Não merecem guarida os aclaratórios que, a pretexto de sanar omissões da decisão embargada, reproduzem mero inconformismo com o desfecho do julgamento", diz o voto.

"O acórdão condenatório demonstrou que Jair Messias Bolsonaro atuou, dolosamente, para estruturar um projeto golpista e de ruptura das instituições democráticas", diz ainda Moraes.

Moares, Dino e Zanin também votaram contra os recursos de outros seis condenados no processo: Alexandre Ramagem, Almir Garnier, Anderson Torres, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e Walter Braga Netto.

Mesmo que a Primeira Turma acompanhe Moraes e rejeite o recurso, ainda não é possível saber quando Bolsonaro começará a cumprir sua pena, já que a defesa deve tentar apresentar novos recursos.

Juristas ouvidos pela BBC News Brasil projetam diferentes cenários.

Para o ex-defensor público federal Caio Paiva, é possível que a Primeira Turma determine o cumprimento imediato da pena, assim que rejeitar esse primeiro recurso.

Segundo ele, isso pode ocorrer se os ministros avaliarem que os embargos de declaração não têm consistência e buscaram apenas atrasar o início da punição.

Coordenador do CEI, uma plataforma de cursos jurídicos, ele faz um acompanhamento sistemático de decisões dos ministros do STF e afirma que a Corte tem sido pouco paciente com recursos considerados "protelatórios".

Após ler o recurso de Bolsonaro, Paiva avalia que a defesa repetiu argumentos já rejeitados pela Corte ao longo do processo.

"O STF tem jurisprudência reiterada no sentido de não admitir os embargos [recursos] para rediscutir o mérito do caso penal ou para revelar mero inconformismo com o desfecho do julgamento", disse à reportagem.

"Em casos como esse, o STF tem o costume de reconhecer que houve abuso no direito de recorrer, determina que se certifique o trânsito em julgado e, portanto, a pena pode ser imediatamente executada. Me parece que é o que será feito nesse caso", continuou.

Em seu voto, porém, Moraes não se manifestou pela imediata execução da prisão.

Já o criminalista Gustavo Badaró, professor de Direito Processual Penal da USP, acredita que a Corte vai esperar eventuais novos recursos de Bolsonaro antes de determinar o cumprimento da pena.

"Já teve casos em que o Tribunal considerou que os embargos eram protelatórios e determinou o início do cumprimento da pena, independentemente de julgamento de interposição de outros embargos, mas isso normalmente ocorre quando são embargos de declaração nos embargos de declaração, ou terceiro embargos de declaração. No primeiro, já declarar isso, acho estranho", afirma Badaró.

Além de possíveis novos embargos de declaração, a defesa ainda deve tentar apresentar embargos infringentes, que servem para questionar decisões tomadas sem unanimidade, mas é provável que o Supremo rejeite esse recurso sem nem analisar seu conteúdo.

A jurisprudência atual da Corte estabelece que apenas decisões das Turmas que tenham ao menos dois votos divergentes podem ser contestadas por embargos infringentes. E, no caso de Bolsonaro, o placar ficou em 4 votos a 1 por sua condenação.

Atualmente, o ex-presidente está preso preventivamente em sua casa em Brasília.

Quando houver o trânsito em julgado (esgotamento dos recursos), o ministro Alexandre de Moraes vai decidir se mantém a prisão domiciliar, devido aos problemas de saúde do condenado, ou se determina que Bolsonaro cumpra a pena em um presídio, numa cela especial, deferência reservada a ex-presidentes.

Outra possibilidade é que ele fique preso em uma sala da Superintendência da PF no Distrito Federal, como ocorreu com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que ficou 580 dias detido na Superintendência da PF em Curitiba, quando foi condenado na Operação Lava Jato. O petista foi solto em 2019, quando o STF mudou o entendimento sobre prisão após condenação em segunda instância. Depois, seu processo foi anulado pela Corte.

Na quinta-feira, Moraes decidiu não atender ao pedido do governo do Distrito Federal (GDF) para que fosse feita uma avaliação médica de Bolsonaro para determinar se ele teria condições de cumprir pena no sistema prisional do DF.

A principal prisão distrital é o Complexo Penitenciário da Papuda, onde outros políticos famosos já estiveram presos no passado, como o ex-ministro petista José Dirceu e Valdemar da Costa Neto, presidente do PL.

O GDF é governado por Ibanês Rocha (MDB), aliado de Bolsonaro. Ao rejeitar a solicitação, Moraes disse que ela não era pertinente ao processo. A expectativa é que o pedido de avaliação médica seja analisado pelo STF apenas após o esgotamento dos recursos, quando for decretado o cumprimento da pena.

"Considerando a ausência de pertinência, desentranhe-se a petição STF nº 158.408/2025 dos autos", diz a breve decisão do ministro.


O que diz o recurso apresentado por Bolsonaro?

Apoiadores de Bolsonaro protestaram por anistia, mas proposta perdeu força no Congresso (Crédito: Reuters)

No novo recurso, a defesa repete argumentos já apresentados ao longo do processo e questiona pontos da decisão que o condenou.

Os advogados argumentam, por exemplo, que o ex-presidente não pode ser considerado responsável pelos ataques de 8 de janeiro de 2023 porque centenas de pessoas que estavam no local no momento da invasão das sedes dos Três Poderes já foram condenadas por "dolo direto".

Dessa forma, sustenta a defesa, como a Corte entendeu que essas pessoas agiram com clara vontade de cometer crimes, Bolsonaro não poderia ser considerado culpado de suas ações.

Além disso, os advogados dizem que o ex-presidente estava fora do Brasil naquele dia e não deu qualquer ordem para a invasão.

"O acórdão [documento com a decisão da Corte pela condenação], dada a máxima vênia, esforça-se para colocar o Embargante como uma figura onipresente nos fatos narrados sem, contudo, demonstrar ações concretas e as provas correspondentes", afirmam os advogados nos embargos de declaração.

Moraes, no entanto, considerou não restar dúvidas da liderança do ex-presidente na tentativa de golpe. Ele destaca em seu voto a atuação dos condenados para dar respaldo e orientação aos acampamentos em frente a ações militares, como o que ficou por semanas em frente ao QG do Exército após a eleição de 2022, de onde partiram os manifestantes no 8 de janeiro.

"Ressalta-se, portanto, que a autoria delitiva de Jair Messias Bolsonaro ficou amplamente demonstrada com relação aos atos antidemocráticos praticados em 8/1/2023, tendo sido exaustivamente fundamentada por esta Suprema Corte, não havendo qualquer omissão e contradição no acórdão condenatório proferido por esta Suprema Corte", escreveu o ministro.

Em outro trecho, Moraes aponta a atuação de Bolsonaro ao contestar o resultado da eleição e buscar alternativas autoritárias a sua derrota para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

"Destaca-se, por exemplo, que mesmo após o recorrente ter recebido um aconselhamento jurídico do então Advogado-Geral da União confirmando a inexistência de qualquer fraude eleitoral, o embargante permaneceu atuando na consecução do objetivo golpista e prosseguiu na elaboração da minuta de decreto golpista e na tentativa de cooptação dos Comandantes das Forças Armadas", diz, em outro trecho.

No recurso rejeitado por Moraes, a defesa também volta a argumentar que não há provas de participação do ex-presidente em supostas ações executórias para o golpe de Estado, como o plano Punhal Verde e Amarelo, que previa o assassinato do então presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, e de Alexandre de Moraes, no final de 2022.

Segundo a acusação, esse plano foi impresso no Palácio do Planalto por Mario Fernandes, então secretário executivo da Secretaria-Geral da Presidência, e depois levado por ele ao Palácio da Alvorada, onde Bolsonaro estava.

Os advogados, por sua vez, dizem que não há prova de que os dois se reuniram no Alvorada e o então presidente recebeu e validou o plano.

"O registro de entrada no Palácio do Alvorada demonstra apenas e tão somente isso: a ida deste funcionário do governo, dentre tantos, ao Alvorada. O que, contudo, não se confunde e não é prova nem de que o ex-Presidente de fato tenha recebido o codenunciado e, muito menos, do teor de eventual conversa ou reunião", diz o recurso.

A defesa volta a dizer, também, que a condenação deve ser anulada por ter se baseado na colaboração premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. Para os advogados, a delação foi feita sob pressão e, por isso, é ilegal.

Outro argumento repetido pelos advogados no recurso é que a defesa de Bolsonaro foi cerceada devido à falta de prazo suficiente para analisar o grande volume de material produzido pela acusação.

Caso todos esses argumentos pela anulação da condenação sejam recusados, a defesa pede que a Primeira Turma reduza a pena estabelecida para Bolsonaro, argumentando que a Corte não fundamentou adequadamente o tamanho da punição fixada.

Todas as solicitações da defesa foram rejeitadas por Moraes.

O ex-defensor federal Caio Paiva chama atenção para o tamanho do recurso, com 85 páginas.

"Os embargos de declaração buscam apenas sanar obscuridade, dúvida, contradição ou omissão na decisão. A petição da defesa do ex-presidente Bolsonaro é bem fundamentada, mas o seu tamanho revela a fuga da essência dos embargos. Muito incomum uma petição de embargos declaratórios com essa extensão".

Na sua leitura, questões levantadas como cerceamento de defesa e contradições na delação de Mauro Cid "já foram debatidas à exaustão" no processo.

"Foram, sim, debatidas, embora não conforme a defesa gostaria", reforçou.

Alexandre de Moraes (Crédito,Reuters)

A condenação de Bolsonaro

Bolsonaro foi considerado pelo STF como líder de uma organização criminosa, com militares, policiais e aliados, que atuou para impedir a transição de poder após as eleições de 2022, vencidas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O ex-presidente foi declarado culpado de cinco crimes: organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça e deterioração de patrimônio tombado.

Além de Bolsonaro, os outros sete réus na ação penal também foram condenados: Alexandre Ramagem, Almir Garnier, Anderson Torres, Augusto Heleno, Mauro Cid, Paulo Sérgio Nogueira e Walter Braga Netto.

O único que não recorreu da condenação foi o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, que, por ter feito uma delação premiada no processo, foi condenado a dois anos de prisão em regime aberto. Sua defesa pediu que sua pena seja considerada extinta, por ele já ter cumprido dois anos e cinco meses em medidas restritivas de liberdade.

Para o procurador-geral da República, Paulo Gonet, a organização criminosa agiu em várias frentes desde 2021 para tentar executar o plano de ruptura, desde discursos públicos para descreditar o sistema eleitoral até supostas pressões sobre o Alto Comando das Forças Armadas para apoiar um decreto de cunho golpista — a chamada "minuta do golpe".

Gonet citou ainda na denúncia movimentos para tentar atrapalhar o andamento da eleição, citando os bloqueios da Polícia Rodoviária Federal (PRF) no dia da eleição em 2022, em especial em regiões com eleitores favoráveis ao adversário Lula.

A PGR destacou ainda os ataques de 8 de janeiro de 2023 como o ato final da tentativa golpista.

Ao fim do julgamento, o STF considerou haver provas suficientes das acusações da PGR e condenou os réus.

Mariana Schreiber, de Brasília - DF para a BBC News Brasil, em 07.11.25

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

'Aumente o volume': o discurso do futuro prefeito de NY que desafia Trump

Zohran Mamdani foi eleito prefeito de Nova York na noite de terça-feira (4/11), nas primeiras eleições de grande impacto do segundo mandato de Donald Trump.


Mamdani entrou na disputa no ano passado praticamente como uma figura desconhecida do público, com pouco dinheiro e sem apoio institucional do Partido Democrata.

Ele se tornará o prefeito mais jovem da cidade desde 1892, o primeiro muçulmano e o primeiro nascido na África.

Em discurso após a vitória, o prefeito eleito de Nova York provocou o atual presidente dos Estados Unidos:

"Donald Trump, eu sei que você está assistindo. Só tenho quatro palavras para você: Aumente o volume!", exclamou o presidente eleito, deixando claro que não hesitará em confrontar o presidente americano.

"Para chegar a qualquer um de nós, você terá que passar por cima de todos nós", prosseguiu.

"É assim que vamos parar não só Trump, mas é assim que vamos parar quem vier depois dele."

  • Anthony Zurcher
  • Role,Correspondente da BBC News na América do Norte, em 05.11.25

Bolsonaro na Papuda? Governo do DF pede avaliação médica do ex-presidente às vésperas de possível ordem de prisão

Outros seis réus condenados no mesmo processo de Bolsonaro também podem ter o cumprimento de pena decretado em breve, inclusive três ex-generais do Exército que foram ministros no governo Bolsonaro: Augusto Heleno, Walter Braga Netto, e Paulo Sérgio Nogueira.

Bolsonaro voltou à prisão domiciliar em sua residência em Brasília horas depois de ser internado em um hospital privado para cirurgia. (Crédito, EPA/Shutterstock)

O governo do Distrito Federal (GDF) solicitou ao Supremo Tribunal Federal (STF) que seja feita uma avaliação médica do ex-presidente Jair Bolsonaro para determinar se ele teria condições de cumprir pena no sistema prisional do DF.

A principal prisão distrital é o Complexo Penitenciário da Papuda, onde outros políticos famosos já estiveram presos no passado, como o ex-ministro petista José Dirceu e Valdemar da Costa Neto, presidente do PL, partido de Bolsonaro.

O pedido foi feito dois dias antes de a Primeira Turma do STF começar a julgar um recurso apresentado pelo ex-presidente contra sua condenação a 27 anos e três meses de prisão por tentativa de golpe de Estado.

Quem vai decidir se autoriza a avaliação médica é o ministro Alexandre de Moraes, relator do processo criminal que resultou na condenação de Bolsonaro.

Atualmente, o ex-presidente está preso preventivamente em sua casa em Brasília.

Ainda não está claro quando será determinado o início do cumprimento da pena, o que poderia levá-lo à Papuda. Considerando a forma como a Corte julga recursos criminais, pode ser que a Primeira Turma já determine a prisão após rejeitar esse primeiro recurso da defesa. Outro cenário possível é que a Corte dê espaço para novo recurso, antes de determinar o trânsito em julgado do processo.

Outros seis réus condenados no mesmo processo de Bolsonaro também podem ter o cumprimento de pena decretado em breve, inclusive três ex-generais do Exército que foram ministros no governo Bolsonaro: Augusto Heleno, Walter Braga Netto, e Paulo Sérgio Nogueira.

A iminência das prisões é citada no pedido do GDF para a avaliação médica do ex-presidente.

"Considerado a proximidade do julgamento dos recursos da Ação Penal nº 2668, o que leva a possibilidade de um ou mais réus serem recolhidos no Sistema Penitenciário do Distrito Federal, solicitando que o apenado JAIR MESSIAS BOLSONARO seja submetido à avaliação médica pela equipe especializada, a fim de que seja realizada avaliação de seu quadro clínico e a sua compatibilidade com a assistência médica e nutricional disponibilizada nos estabelecimentos prisionais desta Capital da República", diz o pedido da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Distrito Federal.

O GDF é governado por Ibanês Rocha (MDB), aliado de Bolsonaro.

Quando houver o trânsito em julgado (esgotamento dos recursos), o ministro Alexandre de Moraes vai decidir se mantém a prisão domiciliar, devido aos problemas de saúde do condenado, ou se determina que Bolsonaro cumpra a pena em um presídio, numa cela especial, deferência reservada a ex-presidentes.

Atualmente, ele está preso preventivamente em sua casa em Brasília. No pedido de avaliação médica, o GDF cita já ser de conhecimento público que o condenado "foi submetido a cirurgias na região abdominal".

A Secretaria de Estado de Administração Penitenciária argumenta ainda que, durante a prisão domiciliar do ex-presidente, ele vem recebendo avaliações médicas em casa e precisou de internação hospitalar em setembro.

"A solicitação revela-se oportuna, uma vez que, durante o monitoramento presencial do réu, verificou-se que, em algumas oportunidades, foram realizadas avaliações médicas presenciais no próprio local de monitoramento, evitando-se o deslocamento para escoltas emergenciais".

"Registra-se, ainda, que, em 16/09/2025, foi necessária a realização de escolta emergencial de Jair Messias Bolsonaro ao Hospital DF Star, onde o monitorado permaneceu internado durante a noite".

O recurso que será julgado pelo STF

O recurso apresentado pela defesa de Bolsonaro argumenta que há omissões, erros e contradições no processo que o condenou, como falta de provas de sua atuação criminosa e cerceamento da defesa.

O julgamento do recurso será realizado no plenário virtual da Primeira Turma a partir de 7 de novembro, e os ministros terão até o dia 14 de novembro para apresentar seus votos.

Único a votar pela absolvição de Bolsonaro no julgamento realizado em setembro, o ministro Luiz Fux solicitou sua transferência para a Segunda Turma e, por isso, não julgará o recurso.

O cenário mais provável é que Alexandre de Moraes, Flávio Dino, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin rejeitem o pedido do ex-presidente para rever sua condenação.

No entanto, mesmo que essa previsão se confirme, ainda não é possível saber quando Bolsonaro começará a cumprir sua pena de 27 anos e três meses de prisão em regime fechado. Isso porque a defesa deve tentar apresentar novos recursos.

O primeiro recurso apresentado por Bolsonaro é do tipo embargos de declaração, que serve para esclarecer possíveis erros, omissões e contradições do julgamento.

A defesa ainda deve tentar apresentar embargos infringentes, que servem para questionar decisões tomadas sem unanimidade, mas é provável que o Supremo rejeite esse recurso sem nem analisar seu conteúdo.

A jurisprudência atual da Corte estabelece que apenas decisões das Turmas que tenham ao menos dois votos divergentes podem ser contestadas por embargos infringentes. E, no caso de Bolsonaro, o placar ficou em 4 votos a 1 por sua condenação.

Outra opção da defesa é apresentar novos embargos de declaração, a depender de como a Primeira Turma decidirá sobre os primeiros embargos.

A Corte, porém, pode avaliar que esses recursos têm caráter apenas protelatório, ou seja, de tentar adiar o início do cumprimento da pena. Nesse cenário, a Turma pode rejeitar novos recursos e determinar o trânsito em julgado (esgotamento dos recursos) do caso, o que daria início a execução da pena do ex-presidente.

Os argumentos da defesa de Bolsonaro

Apoiadores de Bolsonaro protestaram por anistia, mas proposta perdeu força no Congresso (Reuters)

No novo recurso, a defesa repete argumentos já apresentados ao longo do processo e questiona pontos da decisão que o condenou.

Os advogados argumentam, por exemplo, que o ex-presidente não pode ser considerado responsável pelos ataques de 8 de janeiro de 2023 porque centenas de pessoas que estavam no local no momento da invasão das sedes dos Três Poderes já foram condenadas por "dolo direto".

Dessa forma, sustenta a defesa, como a Corte entendeu que essas pessoas agiram com clara vontade de cometer crimes, Bolsonaro não poderia ser considerado culpado de suas ações.

Além disso, os advogados dizem que o ex-presidente estava fora do Brasil naquele dia e não deu qualquer ordem para a invasão.

"O acórdão [documento com a decisão da Corte pela condenação], dada a máxima vênia, esforça-se para colocar o Embargante como uma figura onipresente nos fatos narrados sem, contudo, demonstrar ações concretas e as provas correspondentes", afirmam os advogados nos embargos de declaração.

A defesa também volta a argumentar que não há provas de participação do ex-presidente em supostas ações executórias para o golpe de Estado, como o plano Punhal Verde e Amarelo, que previa o assassinato do então presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, e de Alexandre de Moraes, no final de 2022.

Segundo a acusação, esse plano foi impresso no Palácio do Planalto por Mario Fernandes, então secretário executivo da Secretaria-Geral da Presidência, e depois levado por ele ao Palácio da Alvorada, onde Bolsonaro estava.

Os advogados, por sua vez, dizem que não há prova de que os dois se reuniram no Alvorada e o então presidente recebeu e validou o plano.

"O registro de entrada no Palácio do Alvorada demonstra apenas e tão somente isso: a ida deste funcionário do governo, dentre tantos, ao Alvorada. O que, contudo, não se confunde e não é prova nem de que o ex-Presidente de fato tenha recebido o codenunciado e, muito menos, do teor de eventual conversa ou reunião", diz o recurso.

A defesa volta a dizer, também, que a condenação deve ser anulada por ter se baseado na colaboração premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. Para os advogados, a delação foi feita sob pressão e, por isso, é ilegal.

Outro argumento repetido pelos advogados no recurso é que a defesa de Bolsonaro foi cerceada devido à falta de prazo suficiente para analisar o grande volume de material produzido pela acusação.

Caso todos esses argumentos pela anulação da condenação sejam recusados, a defesa pede que a Primeira Turma reduza a pena estabelecida para Bolsonaro, argumentando que a Corte não fundamentou adequadamente o tamanho da punição fixada.

Moraes é quem vai definir onde Bolsonaro ficará presos, caso recursos sejam rejeitados (Reuters)

Bolsonaro foi considerado pelo STF como líder de uma organização criminosa, com militares, policiais e aliados, que atuou para impedir a transição de poder após as eleições de 2022, vencidas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O ex-presidente foi declarado culpado de cinco crimes: organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça e deterioração de patrimônio tombado.

Além de Bolsonaro, os outros sete réus na ação penal também foram condenados: Alexandre Ramagem; Almir Garnier; Anderson Torres; Augusto Heleno; Mauro Cid; Paulo Sérgio Nogueira; e Walter Braga Netto.

Para o procurador-geral da República, Paulo Gonet, a organização criminosa agiu em várias frentes desde 2021 para tentar executar o plano de ruptura, desde discursos públicos para descreditar o sistema eleitoral até supostas pressões sobre o Alto Comando das Forças Armadas para apoiar um decreto de cunho golpista — a chamada "minuta do golpe".

Gonet citou ainda na denúncia movimentos para tentar atrapalhar o andamento da eleição, citando os bloqueios da Polícia Rodoviária Federal (PRF) no dia da eleição em 2022, em especial em regiões com eleitores favoráveis ao adversário Lula.

A PGR destacou ainda os ataques de 8 de janeiro de 2023 como o ato final da tentativa golpista.

Ao fim do julgamento, o STF considerou haver provas suficientes das acusações da PGR e condenou os réus.

  • Mariana Schreiber
  • Role,Da BBC News Brasil em Brasília, em 05.11.25

  • Role,Da BBC News Brasil em BrasíliaMariana Schreiber, de Brasília - DF para a BBC News Brasil, em 05.11.25

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

‘Nenhum bandido importante no Brasil mora em uma favela’, diz especialista em segurança pública

Ricardo Balestreri, que tem atuação federal e estadual na área, critica lógica de combate em operação contra o crime organizado e alerta que facções estão cada vez mais ricas e infiltradas nas instituições

Ricardo Balestreri: ex-secretário nacional de segurança pública — Foto: Leandro Santana/Agência Pará

Ex-secretário nacional de Segurança Pública, e com atuação também nessa área nos governos dos estados de Goiás e do Pará, Ricardo Balestreri reconhece que as facções criminosas exercem “poder tirânico” sobre largas porções do território do Rio e que “não se pode permitir o domínio desses bandidos, exercido com armas longas”, que foram apreendidas na operação — 91 fuzis foram tirados das mãos dos criminosos pelas forças de segurança.

Para o pesquisador, porém, o poder público vem se escorando somente numa lógica de combate, sem dar sequência a iniciativas que poderiam levar à retomada efetiva de territórios.

Balestreri, que é coordenador do núcleo de Urbanismo Social e Segurança Pública do Insper, enfatiza que combater o crime organizado “apenas na favela é enganar a população” — segundo ele, a operação Carbono Oculto mostrou arrecadação bilionária em setores formais da economia. A seguir os principais trechos da entrevista.

O governo do Rio costuma argumentar que as operações ostensivas são necessárias para “cortar capim”, isto é, frear periodicamente o avanço do crime organizado. Esse argumento se sustenta em uma operação como a de anteontem?

Combater o crime dessa maneira desinteligente é como bater em massa de bolo: ela só vai crescer cada vez mais. O discurso do poder público é de que “é melhor isso do que não fazer nada”, que não pode “ficar de braços cruzados”, mas eles na verdade não estão fazendo nada, exceto espetáculo. A única consequência é o pânico na população humilde e trabalhadora. E isso não é culpa da polícia. Ela acaba sendo usada por maus gestores, que inclusive expõem as vidas dos próprios policiais.

Eu lamento que os policiais, muitos deles sem expertise, sejam mergulhados nessa dinâmica de guerra, em operações mal planejadas. Algumas pessoas se irritam quando digo isso, mas o domínio territorial do crime, embora lembre uma guerra, não é uma situação de guerra. O problema de abordar segurança com a lógica da guerra é que reduz essas mortes a meros “danos colaterais”. E mesmo assim, se o poder público ainda pudesse dizer que “pragmaticamente o sacrifício foi necessário”… Mas não pode, porque são milhares de operações grandes, e o Rio está cada vez pior.

Operações como esta do Rio ajudam de alguma forma a punir integrantes do crime organizado?

Tivemos uma operação recente, a Carbono Oculto (do governo federal, em parceria com o governo de São Paulo), que teve apreensões e não deu nenhum tiro. Todo criminoso tem que ser punido. Os bandidos que dominam as favelas do Rio exercem um poder tirânico e maltratam a população empobrecida no seu dia a dia. Eles precisam ser combatidos, mas é preciso estar atento às consequências sociais, econômicas, aos serviços públicos, e até ao turismo que essas operações causam.

O número de mortos, superando até o de episódios como o massacre do Carandiru, se explica pela força das facções ou pelo tipo de abordagem das forças de segurança nesse episódio?

O crime está cada vez mais armado, mais rico, mais infiltrado nas instituições. E todos esses mais de cem bandidos abatidos, supondo que sejam todos bandidos, amanhã estarão repostos no crime por outros jovens de 14, 15, 16 anos. O que explica esse número de mortos é uma busca frenética e não razoável por causar impacto na opinião pública. Não estou amaciando para bandido, defendo inclusive que as penas para faccionados sejam agravadas, mas o fato é que combater o crime só na favela é enganar a população.

De que maneira?

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública publicou uma pesquisa recente sobre o que é conhecido da receita anual do crime organizado no Brasil: mais de R$ 140 bilhões desde 2022, ou R$ 30 bilhões por ano. A maior parte disso estava no mercado de combustíveis, com R$ 60 bilhões. Afirmo com convicção que nenhum bandido realmente importante no Brasil mora em uma favela, com esse nível de arrecadação. A população mostra um cansaço legítimo com a falta de segurança, mas o governo deveria se guiar pela sobriedade, e não pela busca do impacto ou por cortinas de fumaça.

O Rio já ensaiou tentativas para retomar territórios no longo prazo, como as UPPs do governo Cabral, que fracassaram, e mais recentemente o Cidade Integrada, iniciado em 2022 e que até agora não vingou. O que deveria ser feito em paralelo ou em alternativa à ostensividade policial?

Se o crime penetra na favela, é porque o Estado de Direito se retirou. A experiência das UPPs, em seu início, foi um breve sopro de inteligência em meio a três ou quatro décadas de políticas desastrosas. A polícia entrou corretamente, mas sozinha. E o modelo cresceu sem ter condições de funcionamento. As políticas de segurança precisam de escala, mas com sobriedade. Em geral, as iniciativas não se sustentam quando são feitas de forma apressada para mostrar algo à opinião pública às vésperas de eleições.

O discurso de combate à criminalidade a qualquer custo vem pautando eleições em vários países da América Latina, como El Salvador e Equador. No Brasil, ele também está mais forte hoje?

Aqui a rotina de megaoperações vem desde a década de 1990, e vejo que muita gente segue propagando essa ideia, que mexe com emoções desordenadas, mas compreensíveis, da população. É uma ilusão. O caso de El Salvador é sintomático de que a falta de solução para o crime organizado não se explica por falta de brutalidade. Houve um clamor popular para resolver um problema antigo, e o atual presidente, Nayib Bukele, propôs a fórmula de instituir um regime sem direito ao contraditório, de certa forma “vender a alma” da democracia em prol da segurança. Mas o que se vê hoje, e que foi relatado em documentos do governo dos EUA, é que o governo de Bukele mantém negociações por baixo dos panos com o crime organizado, sem a população saber.

Entrevista concedida a Bernardo Mello Franco publicada originalmente pelo O GLOBO, em 30.10.25

Três razões pelas quais o catolicismo está voltando à moda

A combinação de jovens, baby boomers e tecnologia confere à prática da fé um novo significado público.

Leão XIV, na quarta-feira, na Praça de São Pedro, em Roma. (Guglielmo Mangiapane - REUTERS)

Apesar das estatísticas indicarem uma tendência contrária há anos, é muito provável que a Espanha esteja começando a registrar um ressurgimento significativo da prática do catolicismo. Isso é mais do que um mero renascimento estético e público; é um movimento silencioso, porém profundo. Três fatores, entre outros, convergem para tornar isso possível: a chegada das gerações Baby Boomer e X em idades em que estudos sociológicos demonstram o aumento da religiosidade; uma revolução tecnológica que — com suas vantagens e desvantagens — multiplica o acesso à educação, à oração e à comunidade; e uma juventude que, paradoxalmente, por praticamente não ter tido contato prévio com o catolicismo, se aproxima dele sem preconceitos e com genuína curiosidade.

As grandes gerações nascidas entre o final da década de 1950 e a década de 1970 — os baby boomers e o início da Geração X — estão entrando em uma fase da vida em que questões sobre o sentido da existência e a necessidade de comunidade ganham maior importância. De acordo com o Pew Research Center, na maioria dos países, as pessoas mais velhas são mais religiosas e a prática religiosa tende a aumentar com a idade. Por exemplo, nos Estados Unidos, a idade mediana dos cristãos chegou a 55 anos em 2024, e a frequência a cultos religiosos aumenta significativamente após os 60 anos. Na Espanha, onde a geração dos baby boomers é particularmente numerosa, esse fenômeno já pode ser observado em um aumento visível na participação paroquial, no voluntariado e em uma vida litúrgica mais ativa, que inclui o renascimento de práticas devocionais que haviam caído em desuso nas últimas décadas. De uma perspectiva puramente matemática, isso não é apenas uma questão de idade, mas também de números absolutos. Muitas pessoas estão simultaneamente chegando a um momento crucial em suas vidas, no qual um senso de transcendência volta a ser relevante.

O segundo grande motor de mudança é a tecnologia. Nos últimos anos, e especialmente desde a pandemia, a Igreja Católica passou por uma verdadeira transformação digital em todo o mundo. O que começou como uma necessidade emergencial — missas transmitidas pelo YouTube, grupos de oração no Zoom, catequese via WhatsApp — tornou-se uma forma estável de presença pastoral. Hoje, qualquer católico, em qualquer idioma, pode acessar homilias, retiros, formação teológica e acompanhamento espiritual pelo celular. O exemplo paradigmático é, sem dúvida, o aplicativo Hallow, criado nos EUA e disponível em mais de 150 países. Em poucos anos, alcançou 14 milhões de usuários cadastrados e registrou mais de um bilhão de downloads de seu conteúdo. Na Espanha — seguindo os passos de seus pares americanos, que estão vários anos à frente — numerosos bispos e padres embarcaram com sucesso no que se conhece como evangelização digital . No entanto, esse progresso apresenta um desafio sem precedentes: o risco de os pastores atenderem às necessidades individuais. Em outras palavras, a abundância de opções online permite que os fiéis escolham padres, bispos ou comunidades de acordo com suas preferências ideológicas ou estéticas, alterando assim a ordem hierárquica estabelecida. No entanto, os defensores desse modelo argumentam que ele facilita o alcance de públicos muito diversos, desde os idosos que não podem se deslocar até os jovens que descobrem a fé por meio do TikTok, Spotify ou YouTube.

O terceiro fator é precisamente uma juventude sem ideias preconcebidas sobre o catolicismo. Num país onde uma grande parte dos jovens com menos de 30 anos não recebeu instrução religiosa significativa, o catolicismo é apresentado como algo quase exótico. De acordo com o Pew Research Center, nos EUA apenas 45% dos jovens entre os 18 e os 29 anos identificam-se como cristãos, e na Europa o número é ainda menor; mas esta falta de autoconhecimento está a ser vista como uma oportunidade por uma parte significativa da Igreja. Por não terem crescido sob um catolicismo socialmente obrigatório, muitos jovens aproximam-se da Igreja sem qualquer aversão prévia, atraídos pelo testemunho pessoal, pelo silêncio da oração numa época ruidosa ou pela sua mensagem ética.

A tudo isso se soma a influência cultural de um renovado interesse pela espiritualidade. Na última década, filmes, séries e documentários com temas católicos têm sido muito bem recebidos, trazendo de volta ao debate público questões sobre Deus sob diversas perspectivas, sejam elas favoráveis ​​ou contrárias. " Sundays" é apenas o exemplo mais recente de títulos como " The Two Popes" , "The Young Pope" , "Jesus of Nazareth" , "The Chosen" , "Conclave " e " Free ".

Nesse contexto, a Espanha encontra-se numa posição singular. A sociedade é inequivocamente laica — segundo o Pew Research Center, apenas 23% dos europeus consideram a religião “muito importante” em suas vidas —, mas as condições sociológicas, tecnológicas e culturais favorecem a possibilidade de um crescimento real da religiosidade na esfera pública. Não é por acaso que dioceses com forte presença digital ou pastoral adulta estejam registrando um aumento nas conversões, nos cursos de formação e na participação comunitária. A maturidade demográfica como base sólida, a tecnologia como rede de disseminação e uma renovação juvenil comprometida apontam para uma mudança no discurso público sobre o catolicismo nos próximos anos.

Jorge Marirrodriga, jornalista, para o EL PAÍS, em 30.10.25