sexta-feira, 25 de abril de 2025

Collor estava 'calmo' quando foi preso no Aeroporto de Maceió e aguarda em sala da PF transferência para Brasília

Ex-presidente foi detido por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do STF


Então senador, Fernando Collor discursa no plenário — Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado/04-05-2022

O ex-presidente Fernando Collor estava "calmo" quando foi preso nesta madrugada, segundo interlocutores, e aguarda em uma sala da Superintendência da Polícia Federal em Alagoas até o momento de ser transferido para Brasília. Ele foi detido por volta das 4h no aeroporto de Maceió, onde embarcaria para a capital federal com o intuito de se entregar às autoridades.

A detenção imediata foi determinada na noite de ontem pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), após se esgotarem os recursos no processo no qual ele foi condenado por participar de um esquema de corrupção.

Por que Fernando Collor foi preso?

Na noite de ontem, Moraes rejeitou o segundo recurso da defesa e determinou o cumprimento imediato da pena imposta a Collor. Ele foi condenado a oito anos e dez meses, em regime inicial fechado, por participação em uma esquema de corrupção na BR Distribuidora, descoberto pela Operação Lava-Jato.

Prisão de Collor destoa no contexto do desmonte da Lava Jato

Como funcionava o esquema de corrupção?

Na decisão, Moraes diz que Collor, com a ajuda dos empresários Luis Pereira Duarte de Amorim e Pedro Paulo Bergamaschi de Leoni Ramos, recebeu R$ 20 milhões para viabilizar irregularmente contratos da BR Distribuidora com a UTC Engenharia para a construção de bases de distribuição de combustíveis.

A vantagem foi dada em troca de apoio político para indicação e manutenção de diretores da estatal.

Após a decisão de Moraes, o plenário do STF deverá julgar se mantém a prisão de Collor. O presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, determinou a inclusão do processo em sessão virtual do plenário desta sexta-feira, com início previsto para 11h e término às 23h59.

'Quem será que entregou a BR Distribuidora?': Após Moraes decretar prisão de Collor, Moro associa caso ao PT

De Fiat Elba à prisão: Relembre acusações envolvendo Fernando Collor preso após decisão de Moraes

O STF já havia rejeitado recursos do ex-presidente (embargos de declaração) em que ele afirmava que a pena não seria correspondente ao voto médio apurado no Plenário. No novo recurso (embargos infringentes), a alegação é de que deveria prevalecer, em relação ao tamanho da pena (dosimetria), os votos vencidos dos ministros André Mendonça, Nunes Marques, Dias Toffoli e Gilmar Mendes.

"Quanto ao caráter protelatório do recurso, a defesa demonstrou que a maioria dos membros da Corte reconhece seu manifesto cabimento. Tais assuntos caberiam ao Plenário decidir, ao menos na sessão plenária extraordinária já designada para a data de amanhã", argumentou a defesa de Collor após a decisão de Moraes.

Na decisão, Moraes observou que este tipo de recurso só é cabível quando há, pelo menos, quatro votos absolutórios próprios, o que não ocorreu no caso, mesmo se forem considerados os delitos de maneira isolada. O ministro explicou que, em relação à dosimetria, o STF tem entendimento consolidado de que esse tipo de divergência não viabiliza a apresentação de embargos infringentes.

Moraes destacou que o STF tem autorizado o início imediato da execução da pena, independentemente de publicação da decisão, quando fica claro o caráter protelatório de recursos que visem apenas impedir o trânsito em julgado da condenação.

(Malu Gaspar: Prisão de Collor por ordem de Alexandre de Moraes reforça temor de aliados de Bolsonaro)

Político foi condenado por participação em esquema de corrupção: STF decide nesta sexta se mantém prisão 'imediata' do ex-presidente Fernando Collor

“A manifesta inadmissibilidade dos embargos, conforme a jurisprudência da Corte, revela o caráter meramente protelatório dos infringentes, autorizando a certificação do trânsito em julgado e o imediato cumprimento da decisão condenatória”, afirmou.

Na mesma decisão, o ministro rejeitou recursos dos demais condenados e determinou o início do cumprimento das da pena de Pedro Paulo Bergamaschi de Leoni Ramos, sentenciado a quatro anos e um mês de reclusão, em regime inicial semiaberto, e das penas restritivas de direitos impostas a Luís Pereira Duarte Amorim.

Patrik Camporez, de Brasília - DF para O Globo, em 25.04.25

Moraes rejeita recurso da defesa e manda prender o ex-presidente Collor

Pena de ex-presidente é de 8 anos e 10 meses de prisão, decorrente de decisão tomada nos desdobramentos da Operação Lava Jato

Em 2023, o STF condenou o ex-presidente a 8 anos e 10 meses de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes mandou prender o ex-presidente da República Fernando Collor após negar recurso da defesa que tentava protelar o início do cumprimento de pena. Collor foi condenado a oito anos e dez meses de prisão por corrupção na Operação Lava Jato.

Em nota, a defesa do ex-presidente afirmou que ele vai se entregar à Justiça para o cumprimento da decisão de Moraes. Também afirmou ele que recebeu a ordem de prisão com “surpresa e preocupação”. “Ressalta a defesa que não houve qualquer decisão sobre a demonstrada prescrição ocorrida após trânsito em julgado para a Procuradoria-Geral da República. Quanto ao caráter protelatório do recurso, a defesa demonstrou que a maioria dos membros da Corte reconhece seu manifesto cabimento. Tais assuntos caberiam ao plenário decidir”, disse a defesa de Collor. “De qualquer forma, o ex-presidente Fernando Collor irá se apresentar para cumprimento da decisão determinada pelo ministro Alexandre de Moraes, sem prejuízo das medidas judiciais previstas.”

Segundo a Polícia Federal, a ordem de prisão deve ser cumprida na manhã de hoje, mas o ex-presidente pode optar por se entregar antes.

Em maio de 2023, o STF condenou Collor por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Ele não foi preso de imediato porque a defesa ainda podia entrar com recursos. Como o processo transitou em julgado, Moraes mandou a pena ser cumprida imediatamente.

Na decisão, o ministro afirmou que Collor deve cumprir imediatamente a pena em regime fechado, além de pagar 90 dias-multa. Pelo crime de corrupção passiva, a pena é de quatro anos e quatro meses de prisão. Por lavagem de dinheiro, é de quatro anos e seis meses. O delito de associação criminosa teve a punibilidade extint

Moraes submeteu sua decisão para ser referendada pelo plenário do Supremo, que vai julgar o caso a partir das 11h de hoje. Antes disso, porém, o ministro disse que o ex-presidente já poderia ser detido.

INVESTIGAÇÃO. Collor foi declarado culpado pelo recebimento de R$ 20 milhões em propinas da UTC Engenharia em troca do direcionamento de contratos de BR Distribuidora. O ex-ministro Pedro Paulo de Leoni Ramos e o operador Luís Pereira Duarte de Amorim também foram condenados. A sentença determina que os três devem pagar solidariamente multa de R$ 20 milhões por danos morais coletivos.

Além de determinar a prisão, Moraes disse que Collor deve ser submetido a exames médicos para que a execução da pena comece a ser contabilizada. “A expedição de guia de recolhimento, devendo ser o réu submetido a exames médicos oficiais para o início da execução da pena, inclusive fazendo constar as observações clínicas indispensáveis ao adequado tratamento penitenciário”, diz a decisão.

IMPEACHMENT. Primeiro presidente que venceu uma eleição direta após a ditadura militar (1964-1985), em 1989, Collor ocupou o Planalto entre 1990 e 1992, quando, em decisão até então inédita, sofreu impeachment. Agora, ele se torna o terceiro dos sete presidentes que governaram o País desde a redemocratização a ser preso. Os outros foram Luiz Inácio Lula da Silva e Michel Temer.

Após sofrer o i mpeachment, Collor ficou inelegível por oito anos. Ele tentou ser prefeito de São Paulo em 2000, mas teve a candidatura barrada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Em 2006, o ex-presidente voltou à cena política ao ser eleito senador por Alagoas, e ocupou a cadeira até 2023.

Segundo a denúncia, os crimes que resultaram na prisão de Collor ocorreram enquanto ele esteve no Congresso. 

Publicada n'O Estado de S. Paulo, em 25.04.25 

A infame proposta de Trump para a Ucrânia

Exigir a capitulação da Ucrânia é uma abjeção moral e um brutal erro geopolítico: longe de garantir a paz, será só um incentivo para que a Rússia retome sua agressão com mais tranquilidade


Pela biografia de Donald Trump, sabe-se que ele genuinamente tem aversão a guerras e genuinamente superestima seus talentos como negociador. Na campanha, ele disse que a guerra na Ucrânia nunca teria acontecido se fosse presidente e prometeu acabar com a “guerra de Joe Biden” em um dia. Isso explica sua impaciência, em quase cem dias de mandato. Como genuíno populista, Trump está pronto a sacrificar os interesses de seu país em troca de uma satisfação imediata para si e seus eleitores. O acordo que ele está propondo para pôr fim à guerra – basicamente a capitulação do agredido e a recompensa ao agressor – não só seria moralmente abjeto, mas geopoliticamente contraproducente: longe de garantir uma paz duradoura, será só um incentivo para que no futuro o agressor retome suas agressões com mais confiança. Ou seja, a paz hoje seria conquistada ao custo de uma guerra maior e pior amanhã.

Seria paranoia conspiratória dizer em sentido não figurado e sem aspas que Trump é um “agente russo”, mas, de fato, ainda que involuntariamente, é o que vem sendo. Um ficcionista que tentasse imaginar o comportamento de um agente russo na Casa Branca dificilmente se sairia com algo melhor. Não faltam nem algumas “críticas” e “exigências” à Rússia, como faria um agente para não revelar seu disfarce. Mas, no conjunto da obra, o que ele fez só fortaleceu a posição de Vladimir Putin como nunca desde o começo da guerra.

Desde o início, o governo Trump descartou a entrada da Ucrânia na Otan ou a restauração integral de suas fronteiras. Depois, sugeriu a intenção de suspender as sanções à Rússia e votou contra resoluções na ONU críticas à Rússia. E uma das poucas exceções ao tarifaço de Trump foi, ora vejam, a Rússia de Putin.

Para a Rússia, afagos, para a Ucrânia, safanões: suspensões temporárias de assistência militar e cooperação de inteligência; a promessa de que não haveria novos envios de recursos; extorsão de direitos de exploração de recursos minerais; um ritual público de humilhação do presidente Volodmir Zelenski no Salão Oval; pressões para que ele reconheça ganhos territoriais de Putin.

O plano mais recente de Trump não chega a entregar tudo o que a Rússia quer, mas quase. Os territórios anexados desde 2022 não seriam reconhecidos e a Ucrânia não precisaria se desmilitarizar. Fora isso, Washington oferece o fim das sanções à Rússia, um cessar-fogo congelando as linhas atuais e o reconhecimento da Crimeia como território russo. Em troca, a Ucrânia não recebe praticamente nada, além de promessas vagas de segurança de Trump, que não valem nada.

É algo que Zelenski não pode aceitar, nem que quisesse. A sociedade ucraniana jamais toleraria essa decisão. A instabilidade social poria em risco a própria continuidade de seu governo. Putin sabe disso e possivelmente tem pressionado os americanos por essa concessão. Das duas, uma: ou a equipe de Trump não sabe, e isso expõe seu amadorismo, ou sabe, e isso expõe sua má-fé. Nesse último caso, essas exigências estariam sendo feitas para acusar Zelenski de intransigência, criando um pretexto para “lavar as mãos”, ou seja, abandonar a Ucrânia à sua própria sorte e normalizar as relações com Putin.

Foi exatamente o que Trump fez nos últimos dias. Enquanto ele só manifestou irritação com os ataques de Putin à Ucrânia, acusou Zelenski de obstruir a paz, lançando-lhe um ultimato: ou aceita todas as condições, ou os EUA lhes darão as costas.

O mais inacreditável é que legitimar a demanda russa pela Crimeia seria danoso aos interesses dos EUA, seja por degradar sua reputação, seja por encorajar outros agressores (como a China contra Taiwan), seja por alienar aliados como os europeus, seja por fomentar a divisão na sociedade americana. Os americanos estavam exaustos com 20 anos de guerra no Afeganistão, mas nunca perdoaram Biden pela retirada desastrosa que acabou entregando todas as posições ao Taleban. Muitos podem estar cansados ou desinteressados na guerra na Ucrânia, e todos sabem que Kiev terá de fazer concessões, mas não perdoarão Trump por trair um aliado e entregar de bandeja tudo o que Putin, um inimigo declarado de seu país, quer. •

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 25.04.25

Trump tropeça nos próprios erros em um governo sem adultos na sala

Seu objetivo é extrair o máximo de lealdade e inspirar o máximo de ódio, um alimentando o outro

O presidente dos EUA, Donald Trump, durante visita do premiê norueguês, Jonas Gahr Store, na Casa Branca Foto: Saul Loeb/AFP

Harold Macmillan, o primeiro-ministro britânico de meados do século XX, teria dito que o que os estadistas mais temiam eram “os eventos, meu caro, os eventos”. Infortúnios acontecem: um desastre natural, um ataque terrorista, uma crise internacional. Lideranças políticas são julgadas por sua habilidade ou incompetência ao lidar com o inesperado.

Felizmente, o governo Donald Trump ainda não teve tais infortúnios. Seu único infortúnio — e, portanto, o infortúnio de todos — é o próprio governo.

Muita coisa ficou óbvia novamente esta semana, graças a duas histórias que são, em sua essência, a mesma. Primeiro, houve a revelação de que Pete Hegseth, o secretário de Defesa, havia compartilhado detalhes sensíveis do ataque militar ao Iêmen com sua esposa, irmão e advogado pessoal em mais um grupo de bate-papo do Signal. Em seguida, veio um ensaio no Politico de um ex-assessor próximo de Hegseth, John Ullyot, descrevendo um “colapso total no Pentágono” — um colapso que incluiu a demissão de três dos principais funcionários do departamento. Donald Trump Jr. respondeu dizendo que Ullyot está “oficialmente exilado do nosso movimento” 

Para você

Em seguida, o mercado despencou e o dólar sofreu uma queda acentuada, graças aos ataques indecorosos e descontrolados do presidente Trump a Jerome Powell, o presidente do Fed. O pecado de Powell foi ter a audácia de descrever os prováveis efeitos das tarifas do presidente: ou seja, que elas farão os preços subir e o crescimento desacelerar. Isso deixou Trump furioso, com ameaças da Casa Branca de analisar se Powell pode ser demitido — um potencial ataque à independência do banco central digno dos piores dias econômicos da Argentina.

Ambos os casos envolvem a supervisão de adultos: a ausência dela no primeiro caso, a presença dela no segundo, e a forte preferência do presidente pela primeira alternativa. Por quê? Provavelmente pelo mesmo motivo que ditadores de meia-tigela elevam bajuladores incompetentes a altos cargos de segurança: eles são mais dependentes e menos ameaçadores. A última coisa que Trump quer no Pentágono é outro Jim Mattis, seguro de si o suficiente para estar disposto a renunciar por princípio.

O mesmo vale para outros departamentos do governo.

Um secretário de Estado adulto jamais teria permitido que seu departamento fosse destruído em suas primeiras semanas por um funcionário não oficial (Elon Musk) de um suposto departamento (DOGE) por funcionários adolescentes irresponsáveis com apelidos como “Big Balls” (Grandes Bolas). Mas Marco Rubio tem um apelido com um significado muito diferente: Pequeno Marco. Ele fará o que lhe mandarem até ser demitido, provavelmente (como um de seus antecessores, Rex Tillerson) por meio de uma publicação nas redes sociais.

Um procurador-geral adulto teria acatado rapidamente uma decisão da Suprema Corte de “facilitar” o retorno de Kilmar Armando Abrego Garcia, de El Salvador, que foi deportado por engano pelo governo em março e preso injustamente em seu país natal. Mas Pam Bondi preferiria servir seu chefe com lealdade, mas de forma tola, em vez de usar a inteligência e ter independência. Um dia, ela terá que escolher entre uma aquiescência humilhante a uma ordem judicial mais contundente ou uma batalha politicamente debilitante com o tribunal.

Uma equipe adulta de assessores econômicos teria dissuadido o presidente de anunciar e suspender tarifas repetidamente, mesmo que apenas para preservar sua credibilidade política, evitar incertezas comerciais e prevenir a previsível revolta dos mercados. E eles teriam se mostrado particularmente interessados em evitar uma guerra comercial total com Pequim, já que a capacidade da China de absorver e impor sofrimento econômico excede em muito a de Washington. Mas esta equipe, não. Seja por covardia ou arrogância, eles preferem correr o risco de um caos econômico global do que o de desagradar seu chefe.

Quanto a Trump, seu objetivo é extrair o máximo de lealdade e inspirar o máximo de ódio, um alimentando o outro. É um método de controle: quanto mais imprudente ele se torna, mais obriga seus asseclas a se humilharem para defendê-lo. Quanto mais o fazem, mais os oponentes de Trump se convencem de que a tirania está nascendo. Será ele outro Viktor Orban? Ou Mussolini? Cada vez que um crítico recorre a uma comparação exagerada (eu também já cometi esse erro), isso apenas enfraquece sua própria força moral e poder explicativo.

Trump é Trump. Vamos pensar nele em seus próprios termos.

Quando completou seu extraordinário retorno à política em novembro, o presidente estava no auge de seu poder político. Ele o erodiu a cada dia desde então. Com Matt Gaetz como sua primeira opção para procurador-geral. Com as disputas de confirmação desnecessariamente contundentes envolvendo a escolha absurda de Hegseth, Robert Kennedy Jr., Kash Patel e Tulsi Gabbard.

Com a transformação do Canadá em inimigo. Com a grotesca aproximação de J.D. Vance com a extrema direita alemã. Com o abuso de Volodmir Zelenski no Salão Oval. Com o regime tarifário desordenado. Com ameaças de conquista que antagonizam aliados históricos sem nenhum benefício plausível. Com prisões duvidosas e deportações ilegais que podem transformar indivíduos antipáticos em heróis. E agora com ameaças à ordem econômica básica que levaram o ouro a uma alta recorde, chegando a US$ 3.500 a onça, e empurram o Dow Jones no caminho de seu pior abril desde o final do governo Hoover.

Os democratas que se perguntam como se opor a Trump de forma mais eficaz podem considerar o seguinte. Parem com as comparações com ditadores. Recapitulem os fatos acima. Prometam normalidade e apresentem planos para recuperá-la. E lembrem-se de que, por mais maligno que ele seja, não há adversário melhor do que um presidente de cara no chão, tropeçando nos cadarços próprios desamarrados. 

Bret Stephens, o autor deste artigo, é colunista de opinião do 'The New York Times', escrevendo a respeito de política externa, política doméstica e questões culturais. Publicado no Brasil por O Estado de S. Paulo com tradução de Augusto Calil, em 24.04.25

terça-feira, 22 de abril de 2025

Um papa em movimento

Como um legítimo vicário de Cristo, Francisco foi um sinal de contradição para progressistas e conservadores. Vindo da periferia do mundo, ele levou a Igreja à periferia do mundo

Foto - reprodução de Euro News.

“Parece que meus irmãos cardeais foram quase aos confins da Terra” para dar um bispo a Roma, disse o papa Francisco do balcão da Basílica de São Pedro em seu discurso inaugural. Doze anos depois, ninguém se pergunta mais “Jorge quem?”. Mas quem pode dizer que entende plenamente o significado de seu pontificado?

A familiaridade e a simplicidade estavam lá desde o início, a começar pelo nome, o santo de Assis que conclamou os cristãos, em especial os clérigos, a imitar Jesus vivendo na pobreza e respeitando o mundo natural. Bergoglio recusou um aposento no Palácio Apostólico em favor de uma hospedaria do Vaticano, calçava sapatos simples e viajava num Fiat. “O carnaval acabou”, disse a um cerimonialista papal. Suas primeiras visitas foram a prisioneiros e refugiados. Espontâneo, sempre a caminho de pessoas às margens da sociedade, Francisco parecia ignorar as regras da lei em favor das regras do amor.

“Somos a imagem do Senhor, e Ele faz o bem e todos nós temos este mandamento em nosso coração: faça o bem, não faça o mal”, disse com sua simplicidade característica. “‘Mas eu não acredito, padre, eu sou ateu!’ Mas faça o bem: nós nos encontraremos lá”.

São traços que atraíram os que veem a Igreja como restritiva e legalista. Seu acolhimento aos homossexuais e imigrantes despertou a simpatia dos progressistas. Os conservadores se irritaram com um pontificado que parecia transformar a Igreja numa espécie de ONG humanitária. Mas, desconcertando ambos os lados, Francisco apelava incisivamente a temas incômodos à sensibilidade liberal, como a atividade demoníaca na vida humana ou o papel central da Virgem Maria na vida cristã.

Muitos viram nessa atitude uma espécie de populismo religioso, na esteira da tradição argentina. “Todo o ponto do peronismo é que não se pode fixá-lo”, disse o escritor irlandês Colm Toíbín. “Ser um peronista significa ser nada e tudo. Significa que você pode por vezes estar de acordo com as próprias coisas que em outras circunstâncias não é realmente a favor”. Mas, nas palavras de Francisco, trata-se de “abraçar a vida tal como ela vem”.

Quem esperava mudanças radicais em temas como as regras do celibato, sacerdócio das mulheres ou casamento homossexual sentiu-se frustrado. Mas a Igreja não é uma democracia e suas tradições e ensinamentos não estão sujeitos ao voto popular. Francisco, no entanto, submeteu essas e outras controvérsias ao debate. Antes dele, os sínodos eram pouco mais que eventos coreografados para ratificar a vontade do alto cardinalato.

Francisco foi um papa que pensou em termos de processos. Assim, ele incomodou tanto “aqueles que querem mudanças (e esperam decisões rápidas) quanto aqueles que, ao contrário, querem deixar tudo como está”, disse o teólogo e repórter do Vaticano Hendro Munsterman. “O profético e o cautelosamente duvidoso se juntam no papa Francisco.”

Francisco se foi com mais idade que Bento XVI tinha quando renunciou e que João Paulo II quando morreu. Num momento em que o mundo se fragmenta, “Francisco foi o primeiro papa verdadeiramente global”, disse o historiador da Igreja Massimo Faggioli. Foi o primeiro latino-americano e o primeiro não europeu desde o século 8.º. Foi o primeiro a visitar a Península Arábica, onde, num gesto simbólico com o grande imã do Cairo, falou dos muçulmanos como irmãos. Numa Igreja que definha na Europa e cresce na África e na Ásia, ele trouxe o olhar das periferias, tal como o cristianismo primitivo nasceu, das periferias do Império Romano. O Colégio de Cardeais que escolherá seu sucessor será muito diferente daquele que o elegeu, incluindo uma amplitude regional muito maior.

“Comecemos esta jornada, os bispos e o povo, esta jornada da Igreja de Roma, que preside em caridade todas as Igrejas numa jornada de fraternidade em amor, confiança mútua”, disse Francisco em seu discurso inaugural. “Rezemos todos uns pelos outros.” Que seu sucessor saiba conduzir a Igreja no espírito de humildade, simplicidade e abertura legado por Francisco.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 22.04.25

segunda-feira, 21 de abril de 2025

A democracia no divã

Índice da Democracia mostra que a recessão é severa. Mas, ao contrário das autocracias, o remédio para os males das democracias liberais está nelas mesmas: mais liberdade e representação

Manchetes do mundo destacaram 2024 como “o maior ano eleitoral da História”. Metade da população foi às urnas em 75 países. Mas, a julgar pelo Índice da Democracia da Economist Intelligence Unit, a celebração global da democracia poderia ser uma festa de despedida.

O Índice da Democracia avalia 167 países por cinco critérios – processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo, participação política, cultura política, e liberdades civis –, agrupando-os em quatro categorias: democracias plenas e falhas, e regimes híbridos e autoritários. Segundo o estudo mais recente, a democracia está em sua pior forma em duas décadas. O número de democracias diminuiu e o de autocracias aumentou. Os fatores que mais se deterioraram foram liberdades civis e processo eleitoral e pluralismo. Nos últimos anos, a degradação foi impulsionada sobretudo pelo avanço das autocracias e declínios na governança e no pluralismo.

O índice foca no problema: por que a democracia não está funcionando? Mas a questão em si é problemática: não está? À primeira vista, não. O alto índice de retaliação a incumbentes e apoio a insurgentes populistas exprime a irritação popular. Por outro lado, a marca distintiva das democracias é justamente a alternância de poder. As alternativas populistas, frequentemente apontadas como causa do mal-estar das democracias, também podem ser um sintoma. Os populistas podem ter as respostas erradas, mas a adesão popular sugere que estão fazendo as perguntas certas.

Com o perdão do clichê, essa situação de “copo meio cheio, meio vazio” é evidenciada por pesquisas globais que registram uma ampla adesão aos valores democráticos. Ou seja, as pessoas não estão frustradas com a democracia em si, e sim com seu funcionamento. Mas se a democracia não está funcionando, aparentemente há vastas reservas morais para fazê-la funcionar.

O modo de fazê-la funcionar depende da identificação dos problemas. A biópsia do índice evidencia uma história de “falhas” (de governos, partidos, políticos) e “déficits” (de igualdade, integridade, opções, ideias, cidadania). A restauração do vigor da democracia depende da reversão dessas falhas e déficits.

As causas da recessão são multidimensionais – geopolíticas, econômicas, políticas, culturais, sociais – e sua interação é complexa, mas todas apontam para uma solução, como o ponto de fuga de uma perspectiva: a representatividade. Em todos esses anos, a fé nos ideais democráticos se manteve. Mas o mundo mudou, e os canais de representação não acompanharam essas mudanças. Governos e partidos se alienaram dos cidadãos e não respondem aos seus anseios.

O problema das democracias é que estão funcionando pela metade. Quando as urnas punem incumbentes ou premiam líderes que se insurgem contra o status quo, funcionam como uma válvula de escape da insatisfação popular, mas não como um motor de sua satisfação.

“A resposta aos desafios enfrentados pela democracia representativa é não jogar o bebê com a água do banho. O desafio é renová-la e revigorá-la trazendo questões reais de volta à arena do debate público”, pondera o Índice da Democracia. “Isso significa ter uma verdadeira disputa sobre políticas públicas entre partidos em competição. E significa (re)construir relações entre os partidos e o eleitorado. A democracia é um trabalho duro – ela exige novas ideias, políticas claras, engajamento com os eleitores, vencer discussões com eles e mobilizá-los para criar uma maioria que possa vencer eleições.”

Não se pode subestimar a crise da democracia, tampouco sua resiliência. Há pouco mais de dois séculos só havia autocracias no mundo, e ninguém tinha direitos democráticos. Hoje metade das nações são democráticas e no ano passado 4 bilhões de pessoas foram às urnas. As democracias já tiveram sua morte decretada e sofreram recessões severas, notadamente no entreguerras e nos “anos de chumbo” da guerra fria. Mas, ao contrário das autocracias, só precisam buscar em si mesmas os remédios para seus males. É uma lei histórica: a agonia dos países autocráticos se cura com menos autocracia; a agonia das democracias liberais, com mais liberdade e representação.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 21.04.25

domingo, 20 de abril de 2025

Nunca temi tanto pelo futuro dos EUA

Se não mudar comportamento, Trump destruirá tudo o que torna o país forte, respeitado e próspero


Protestos contra Trump em Washington, DC

Tanta loucura acontece no governo Trump todos os dias que algumas coisas absolutamente estranhas, mas incrivelmente reveladoras, se perdem no ruído. Um exemplo recente foi a cena de 8 de abril na Casa Branca, na qual, em meio à sua acirrada guerra comercial, o presidente americano decidiu que era o momento perfeito para assinar um decreto destinado a impulsionar a mineração de carvão.

“Estamos trazendo de volta uma indústria que foi abandonada”, disse o presidente Donald Trump cercado por mineiros de carvão com capacetes, membros de uma força laboral que caiu de 70 mil trabalhadores para cerca de 40 mil na década recente, segundo noticiou a agência Reuters. “Vamos colocar os mineiros de volta ao trabalho.”

Para completar, Trump acrescentou sobre esses mineiros: “Se lhes déssemos uma cobertura na Quinta Avenida e um outro tipo de emprego eles ficariam infelizes. Eles querem extrair carvão, é isso o que eles amam fazer”.

É louvável que o presidente homenageie homens e mulheres que trabalham com as mãos. Mas escolher elogiar mineiros de carvão ao mesmo tempo que tenta zerar a geração de empregos em tecnologias limpas – em 2023, a indústria de energia eólica dos EUA empregava aproximadamente 130 mil trabalhadores, e a indústria de energia solar, 280 mil – sugere que Trump está preso a uma ideologia de direita que não reconhece os empregos nas indústrias verdes como trabalhos “reais”. De que forma isso fortaleceria os EUA?

FARSA. Esse governo Trump 2 não passa de uma farsa cruel. Trump concorreu a outro mandato não por saber minimamente como transformar os EUA para o século 21. Ele concorreu para ficar fora da cadeia e se vingar daqueles que, com evidências reais, tentaram responsabilizá-lo perante a lei. Duvido que ele já tenha passado cinco minutos estudando a força de trabalho do futuro.

Portanto, Trump retornou à Casa Branca com a cabeça ainda repleta de ideias dos anos 70. De volta ao poder, ele lançou uma guerra comercial sem aliados nem nenhuma preparação séria – razão pela qual ele altera suas tarifas quase que diariamente – e sem compreender a medida em que a economia global é atualmente um ecossistema complexo no qual produtos são montados a partir de componentes fabricados em vários países.

E então ele nomeia para travar essa guerra um secretário de Comércio que acredita que milhões de americanos estão mortos de vontade de substituir os trabalhadores chineses “que aparafusam pequenos parafusos para fabricar iPhones”.

CONFIANÇA. Mas essa farsa está prestes a afetar todos os americanos. Ao atacar os aliados americanos mais próximos – o Canadá, o México, o Japão, a Coreia do Sul e a União Europeia – e sua maior rival, a China, ao mesmo tempo deixando claro que favorece a Rússia em vez da Ucrânia e prefere indústrias de energia que destroem o meio ambiente a indústrias voltadas para o futuro, e o planeta que se dane, Trump está provocando uma grave perda de confiança global nos EUA.

O mundo percebe agora os EUA de Trump exatamente na forma que o país está se tornando: uma nação delinquente, liderada por um ditador impulsivo e desconectado em relação ao Estado de Direito e a outros princípios e valores constitucionais americanos.

E você sabe o que os aliados democráticos dos americanos fazem com Estados delinquentes? Liguemos alguns pontos.

RISCOS. Primeiro, eles deixam de comprar títulos do Tesouro como antes. Portanto, os EUA precisarão oferecer-lhes taxas de juros mais altas para que isso aconteça – o que afetará toda a economia americana, do financiamento de carros até o financiamento imobiliário, passando pelo custo dos serviços da dívida nacional, em detrimento de tudo mais.

“Será que as decisões espasmódicas e os impostos aduaneiros do presidente Trump estão fazendo com que os investidores do mundo se afastem do dólar e dos títulos do Tesouro dos EUA?”, questionou um editorial do Wall Street Journal, no dia 13, sob o título “Existe um novo prêmio de risco para os EUA?”.

É cedo demais para dizer, mas não para questionar, já que os rendimentos dos títulos continuam subindo e o dólar continua se enfraquecendo – sinais clássicos de uma perda de confiança que não precisa ser muito grande para surtir um impacto significativo sobre toda a nossa economia.

Outra coisa: os aliados vêm deixando de acreditar nas instituições americanas. O Financial Times noticiou no dia 14 que a União Europeia “está distribuindo telefones descartáveis e laptops básicos para alguns funcionários que viajam aos EUA para evitar o risco de espionagem, uma medida tradicionalmente reservada para viagens à China”. A UE deixou de acreditar no estado de direito nos EUA.

A terceira coisa que pessoas de outros países têm feito é dizer a si mesmas e aos seus filhos – e eu ouvi isso repetidamente na China poucas semanas atrás – que talvez não seja mais uma boa ideia estudar nos EUA. O motivo: acham que seus filhos e parentes poderão ser presos arbitrariamente e deportados para prisões salvadorenhas.

Isso é irreversível? Minha única certeza hoje é que, em algum lugar por aí, enquanto você lê este texto, existem indivíduos como o pai biológico de Steve Jobs, um sírio que veio para os EUA na década de 50 cursar um doutorado na Universidade de Wisconsin, alguém que planejava estudar nos EUA, mas que agora pensa em ir para o Canadá ou para a Europa.

Se o país encolheu tudo isso – sua capacidade de atrair os imigrantes mais enérgicos e empreendedores do mundo, o que o permitiu ser o centro mundial de inovação; o poder de atrair uma parcela desproporcional da poupança mundial, o que o permitiu viver além de suas possibilidades por décadas; e sua reputação de defensores do estado de direito – com o tempo veremos EUA menos prósperos, menos respeitados e cada vez mais isolados.

Mas espera aí, você pode dizer, a China também não continua extraindo carvão? Sim, continua, mas com um plano de longo prazo para eliminá-lo gradualmente e usar robôs para fazer o trabalho perigoso e prejudicial à saúde dos mineradores.

PLANEJAMENTO. E eis a questão. Enquanto Trump faz seu “planejamento” – divagando sobre qualquer assunto que lhe pareça uma boa política num determinado momento – a China planeja a longo prazo.

Em 2015, um ano antes de Trump virar presidente, o então primeiro-ministro chinês, Li Keqiang, revelou um plano de crescimento voltado para o futuro chamado “Made in China 2025”. O plano começou perguntando: qual será o motor de crescimento no século 21?

Pequim fez então enormes investimentos nos componentes desse motor para que as empresas chinesas fossem capazes de dominá-lo no país e no exterior. Estamos falando de energia limpa, baterias, veículos elétricos e autônomos, robôs, novos materiais, máquinas, ferramentas, drones, computação quântica e inteligência artificial.

O Nature Index mais recente mostra que a China se tornou “líder global em produção de pesquisa em bancos de dados em química, ciências da terra e ambientais e ciências físicas – e é o segundo em ciências biológicas e ciências da saúde”.

Isso significa que a China deixará os EUA para trás? Não. Pequim está cometendo um erro enorme se pensa que o restante do mundo vai deixar a China suprimir indefinidamente sua demanda interna por bens e serviços para que seu governo possa continuar subsidiando indústrias exportadoras e tentar fabricar tudo para o mundo inteiro, deixando os outros países esvaziados e dependentes. Pequim precisa reequilibrar sua economia, e Trump está certo em pressioná-la a fazêlo.

JOGADA. Mas a arrogância constante de Trump e sua imposição intermitente de tarifas não são uma estratégia – não quando se enfrenta a China no 10.º aniversário de sua política Made in China 2025. Se o secretário do Tesouro americano, Scott Bessent, realmente acredita no que declarou estupidamente, que Pequim está “jogando com um par de dois” apenas, então alguém por favor me avise quando for noite de pôquer na Casa Branca, porque eu gostaria de jogar. A China construiu um motor econômico que lhe dá opções.

A questão para Pequim – e para o restante do mundo – é: como a China usará todos os superávits que gerou? Investindo na construção de um Exército mais ameaçador? Em mais ferrovias de alta velocidade e rodovias de seis pistas para cidades que não precisam delas?

Ou em mais consumo e serviços domésticos ao mesmo tempo que se oferece para construir a próxima geração de fábricas e cadeias de fornecimento chinesas nos EUA e na Europa, com estruturas de propriedade 50-50? Nós precisamos encorajar a China a fazer as escolhas certas. Mas pelo menos a China tem opções.

Compare isso com as escolhas que Trump está fazendo. Trump está minando o sagrado estado de direito americano, afastando os aliados do país, enfraquecendo o valor do dólar e destruindo qualquer esperança de unidade nacional. Trump fez até os canadenses boicotarem Las Vegas porque eles não gostam de ouvir que logo os americanos serão donos de seu país.

Então, me diga, quem está jogando com um par de dois? Se não parar com seu comportamento delinquente, Trump destruirá tudo o que tornou os EUA fortes, respeitados e prósperos. Nunca em minha vida eu temi tanto pelo futuro dos EUA. •

Thomas L. Friedman, o autor deste artigo, é colunista do The New York Times e ganhador de três prêmios Pulitzer. Publicado pelo O Estado de S. Paulo, em 20.04.25, com tradução e Guilherme Russo. 

O insulto e a injúria no Salão Oval

Trump se junta a um autocrata centro-americano para desmoralizar o Judiciário dos EUA. A Suprema Corte tem evitado cair em provocações, mas precisará estabelecer um limite


Trump com Bukele no Salão Oval da Casa Branca

Os apetites autoritários de Donald Trump, combinados com sua concepção maximalista do Poder Executivo, estão submetendo o Estado de Direito nos EUA a um teste de estresse sem precedentes, que põe a Casa Branca em rota de colisão com a Suprema Corte. Ante os atritos do governo com o Judiciário, a Corte, com a prudência que lhe cabe, tem buscado garantir o devido processo legal, preservar as prerrogativas do Executivo e evitar uma crise constitucional.

Essa encruzilhada ficou evidente no caso de Kilmar Abrego Garcia, um salvadorenho residente nos EUA que foi deportado para uma prisão de segurança máxima em El Salvador sem qualquer processo legal. No dia 10 passado, a Corte sustentou unanimemente uma decisão da Justiça federal determinando que o governo “facilite” o retorno de Abrego Garcia. A resposta de Trump foi a mais cínica possível: em um teatro midiático armado no Salão Oval, calculado para tripudiar da Suprema Corte, Trump mostrou ao mundo que ignorará a sua decisão fingindo respeitá-la.

Com a presença de autoridades do alto escalão, Trump recebeu o presidente de El Salvador, o orgulhoso autocrata Nayib Bukele, para encenar um impasse conveniente, como se nenhum dos dois pudesse fazer nada sem abusar de seus poderes. “Cabe a El Salvador decidir”, disse a procuradora-geral dos EUA, Pam Bondi. “Se quiserem devolvê-lo, vamos facilitar, fornecendo um avião.” De sua parte, Bukele afetou escrúpulos: “Espero que não estejam sugerindo que eu contrabandeie um terrorista para os EUA”, disse aos repórteres referindo-se a Abrego Garcia, contra quem não há nenhuma acusação de terrorismo. O secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, recitou diligentemente seu papel na pantomima, advertindo que a relação entre dois países é uma questão de política externa, cuja condução cabe ao Poder Executivo e escapa à alçada do Judiciário. Como notou o articulista do Financial Times Edward Luce, “o drama no Salão Oval ofereceu uma lição cívica para o mundo: o governo dos EUA tem mais respeito por um homem forte estrangeiro do que por sua própria Suprema Corte”.

A farsa se prestou a normalizar dois precedentes assustadores e interligados. O primeiro é a ideia de que o governo pode prender pessoas à revelia da Justiça americana e encarcerá-las em algum Gulag improvisado mundo afora. Esse corolário foi expresso em uma declaração de três ministras da Suprema Corte: “As implicações da posição do governo” são “de que não só cidadãos estrangeiros, mas também cidadãos dos EUA podem ser detidos nas ruas, colocados à força em aviões e confinados em prisões estrangeiras sem oportunidade de reversão se a revisão judicial for ilegalmente negada antes da remoção”. E o voto prossegue: “A história não é estranha a tais regimes ilícitos, mas o sistema de leis desta nação foi projetado para impedir, e não viabilizar, a sua ascensão”.

O próprio Trump confirmou essa intenção: “Se for um criminoso nacional ( americano), para mim não há nenhum problema”, disse durante o encontro. “Os nacionais são os próximos. Você precisa construir mais uns cinco lugares”, disse a Bukele, referindo-se às prisões salvadorenhas, arrancando risos no Salão Oval.

O segundo precedente é o descumprimento de decisões judiciais, como parte do projeto de Trump de emular não só o Estado policial de Bukele, mas todo o seu maquinário autocrático: remover juízes, intimidar adversários políticos, solapar o devido processo legal e eventualmente os limites de mandatos presidenciais. “A acumulação de todos os Poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário, nas mesmas mãos”, já alertava um dos Pais Fundadores dos EUA, James Madison, “pode justamente ser designada como a própria definição de tirania”.

Uma colisão entre o Executivo e a Suprema Corte parece cada vez mais próxima. As políticas mais caras ao movimento Maga, das tarifas indiscriminadas à chantagem com os recursos do ensino superior, passando pelo desmonte da burocracia federal até a deportação de residentes estrangeiros por crimes de opinião ou mesmo sem qualquer acusação formal, ameaçam a divisão dos Poderes e direitos fundamentais. Até o momento, a Suprema Corte tem dado exemplos meritórios de autocontenção para evitar uma crise constitucional. Mas esse objetivo não pode ser mais importante que impedir a dilapidação da Constituição. •O insulto e a injúria no Salão Oval

Trump se junta a um autocrata centro-americano para desmoralizar o Judiciário dos EUA. A Suprema Corte tem evitado cair em provocações, mas precisará estabelecer um limite

Os apetites autoritários de Donald Trump, combinados com sua concepção maximalista do Poder Executivo, estão submetendo o Estado de Direito nos EUA a um teste de estresse sem precedentes, que põe a Casa Branca em rota de colisão com a Suprema Corte. Ante os atritos do governo com o Judiciário, a Corte, com a prudência que lhe cabe, tem buscado garantir o devido processo legal, preservar as prerrogativas do Executivo e evitar uma crise constitucional.

Essa encruzilhada ficou evidente no caso de Kilmar Abrego Garcia, um salvadorenho residente nos EUA que foi deportado para uma prisão de segurança máxima em El Salvador sem qualquer processo legal. No dia 10 passado, a Corte sustentou unanimemente uma decisão da Justiça federal determinando que o governo “facilite” o retorno de Abrego Garcia. A resposta de Trump foi a mais cínica possível: em um teatro midiático armado no Salão Oval, calculado para tripudiar da Suprema Corte, Trump mostrou ao mundo que ignorará a sua decisão fingindo respeitá-la.

Com a presença de autoridades do alto escalão, Trump recebeu o presidente de El Salvador, o orgulhoso autocrata Nayib Bukele, para encenar um impasse conveniente, como se nenhum dos dois pudesse fazer nada sem abusar de seus poderes. “Cabe a El Salvador decidir”, disse a procuradora-geral dos EUA, Pam Bondi. “Se quiserem devolvê-lo, vamos facilitar, fornecendo um avião.” De sua parte, Bukele afetou escrúpulos: “Espero que não estejam sugerindo que eu contrabandeie um terrorista para os EUA”, disse aos repórteres referindo-se a Abrego Garcia, contra quem não há nenhuma acusação de terrorismo. O secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, recitou diligentemente seu papel na pantomima, advertindo que a relação entre dois países é uma questão de política externa, cuja condução cabe ao Poder Executivo e escapa à alçada do Judiciário. Como notou o articulista do Financial Times Edward Luce, “o drama no Salão Oval ofereceu uma lição cívica para o mundo: o governo dos EUA tem mais respeito por um homem forte estrangeiro do que por sua própria Suprema Corte”.

A farsa se prestou a normalizar dois precedentes assustadores e interligados. O primeiro é a ideia de que o governo pode prender pessoas à revelia da Justiça americana e encarcerá-las em algum Gulag improvisado mundo afora. Esse corolário foi expresso em uma declaração de três ministras da Suprema Corte: “As implicações da posição do governo” são “de que não só cidadãos estrangeiros, mas também cidadãos dos EUA podem ser detidos nas ruas, colocados à força em aviões e confinados em prisões estrangeiras sem oportunidade de reversão se a revisão judicial for ilegalmente negada antes da remoção”. E o voto prossegue: “A história não é estranha a tais regimes ilícitos, mas o sistema de leis desta nação foi projetado para impedir, e não viabilizar, a sua ascensão”.

O próprio Trump confirmou essa intenção: “Se for um criminoso nacional ( americano), para mim não há nenhum problema”, disse durante o encontro. “Os nacionais são os próximos. Você precisa construir mais uns cinco lugares”, disse a Bukele, referindo-se às prisões salvadorenhas, arrancando risos no Salão Oval.

O segundo precedente é o descumprimento de decisões judiciais, como parte do projeto de Trump de emular não só o Estado policial de Bukele, mas todo o seu maquinário autocrático: remover juízes, intimidar adversários políticos, solapar o devido processo legal e eventualmente os limites de mandatos presidenciais. “A acumulação de todos os Poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário, nas mesmas mãos”, já alertava um dos Pais Fundadores dos EUA, James Madison, “pode justamente ser designada como a própria definição de tirania”.

Uma colisão entre o Executivo e a Suprema Corte parece cada vez mais próxima. As políticas mais caras ao movimento Maga, das tarifas indiscriminadas à chantagem com os recursos do ensino superior, passando pelo desmonte da burocracia federal até a deportação de residentes estrangeiros por crimes de opinião ou mesmo sem qualquer acusação formal, ameaçam a divisão dos Poderes e direitos fundamentais. Até o momento, a Suprema Corte tem dado exemplos meritórios de autocontenção para evitar uma crise constitucional. Mas esse objetivo não pode ser mais importante que impedir a dilapidação da Constituição. 

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 20.04.25

Não há alternativas para as penas aplicadas aos golpistas de 8 de janeiro

Crimes são graves, não se trata de invasão de domicílio ou furto; por pouco, essa discussão nem aconteceria: bastaria que a intentona tivesse dado certo

Ato em São Paulo promovido pela Frente Brasil Popular e Frente Povo Sem Medo contra anistia aos bolsonaristas - Eduardo Knapp - 30.mar.25/Folhapress

O jurista Davi Tangerino escreveu artigo na Folha ("Alternativas ao espantalho da anistia", 16/4) criticando o montante das penas aplicadas aos golpistas de 8 de janeiro. Propõe alternativas para esvaziar o "espantalho da anistia", a partir da redução das penas, indulto parcial e até mesmo alteração da Lei de Defesa do Estado Democrático.

Tangerino diz que a premissa usada para não ser preciso apontar em detalhes as condutas individuais da massa do 8 de janeiro —o fato de ter sido cometido em turba— é intrinsecamente contraditória com a condenação por associação criminosa; além disso, as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) ignoraram o evidente incentivo dado pelo Estado (Forças Armadas e alto escalão do governo federal à época) aos que clamavam por uma intervenção militar. Propõe até mesmo um indulto parcial.

A imagem mostra um grupo de pessoas em um protesto. No centro, há uma faixa grande com a inscrição 'SEM ANISTIA SEM PERDÃO! BOLSONARO NA PRISÃO!' em letras grandes e vermelhas. Ao fundo, é possível ver uma bandeira do Brasil. Algumas pessoas estão usando óculos escuros e expressões sérias, enquanto outras fazem gestos de protesto.

Não é possível concordar com o articulista. A par do problema político, há problemas jurídicos nas propostas. A questão do indulto é opção política e há precedente do STF sobre isso no caso Daniel Silveira, dizendo não caber graça ou indulto para esse tipo de crime por existir vedação implícita. Afinal, nenhuma democracia pode cometer haraquiri perdoando quem lhe quis destruir. É uma contradição insuperável e desvio de finalidade do instituto.

E o autor erra ao dizer que seria contraditório condenar por associação criminosa quando se trata de turba. Até porque, no caso concreto, a ação dos golpistas não se desenvolve apenas no dia 8; há um ajuste prévio naqueles acampamentos que clamavam por intervenção militar. Portanto, havia uma programação. Não há espontaneidade.

É claro que a associação criminosa exige uma certa permanência, mas —atenção— pelo tempo de duração dos acampamentos já se pode ver que havia uma (longa) permanência. Não foi um acampamento de um ou dois dias. Não foi algo de passagem para os golpistas.

A solução do problema apresentada por Tangerino acaba sendo o problema da solução. O conceito de associação criminosa não é incompatível com crime cometido por multidão. Aliás, os autores não foram condenados aos crimes de tentativa de golpe e abolição violenta pelo fato de estarem em multidão. Isso foi utilizado para os crimes de dano. Uma coisa importante: pessoas podem se associar e nem mesmo virem a cometer o crime.

As penas —tidas por elevadas— foram aplicadas no modus operandi com que são aplicadas penas todos os dias no Brasil. Na verdade, aplicadas no mínimo. Brasil afora os juízes pegam mais pesado. Ficaram altas porque as penas dos crimes são elevadas, aprovadas pelo legislador e sancionadas pelo então presidente Jair Bolsonaro. E veja-se: trata-se de tentativa de golpe e abolição da democracia. As penas não poderiam ser do quilate de uma invasão de domicílio ou furto. São crimes graves.

Como não é possível anistiar ou indultar, porque inconstitucional, o máximo que pode ser feito, não pelas razões apontadas por Tangerino, é, em cada caso, se ainda não transitou em julgado, via embargos de declaração, fazer pequenos ajustes. Nada mais do que isso. O resto é casuísmo. Afinal, temos mais 800 mil presos para atender.

E a propósito: por pouco esta sadia discussão nem aconteceria. Bastaria que o golpe tivesse dado certo.

Lenio Luiz Streck, oo autor deste artigo, é jurista, professor e advogado. É autor, entre outros, de "O que é Fazer a Coisa Certa no Direito" (ed. Dialética). Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 20.04.25

Rumo à ditadura, a todo vapor

A batalha aberta entre o judiciário e a Casa Branca atingiu seu clímax. Vamos ver se ele consegue deter aquele que quer se tornar um autocrata.


Donald Trump assina uma de suas ordens executivas no Salão Oval da Casa Branca. Nathan Howard (REUTERS)

Entre Trump e a ditadura, só restam os juízes. Existem agora quase duzentos processos contra suas 124 ordens executivas , muitas das quais são absurdas e um bom punhado delas são inconstitucionais à primeira vista, que ele continua assinando incansavelmente com solenidade zombeteira e depois exibe com satisfação para as câmeras. Tudo acontece no Salão Oval, o epicentro da política nos Estados Unidos e no mundo, onde o presidente exibe os traços ousados ​​de sua assinatura, seu autoritarismo impenitente e os ritos imperiais, às vezes humilhantes, aos quais submete os convidados, diante de um punhado de jornalistas devidamente credenciados por sua disposição obsequiosa para com o imperador.

Em três meses, ele acumulou o maior poder da história presidencial, mesmo contando presidentes em guerra. No caso dele, sem nenhuma guerra, embora ele invoque poderes excepcionais típicos de situações de guerra para deter e expulsar indivíduos sem documentos, outros com autorização de residência permanente e ainda outros com empregos, famílias e filhos nascidos nos Estados Unidos. Prender um cidadão no meio da rua ou em casa e depois enviá-lo diretamente para um gulag de alta segurança em El Salvador, sem nunca comparecer perante um juiz, era até ontem uma prática aceita como normal pela Casa Branca, e nenhuma ação legal havia sido capaz de impedi-la.

É a política efetiva do medo, que acompanha o fechamento de fronteiras e as batidas para prender e expulsar estrangeiros, e que constitui, em última análise, sua maior e mais lamentável vitória, pois satisfaz as piores paixões xenófobas e racistas, assim como a expansão de seus poderes presidenciais satisfaz sua vaidade descarada e seu incontrolável impulso autocrático. Sentado diante de seu coro de bajuladores, ele ri de tudo: da Constituição, do direito internacional e dos juízes, até mesmo da Suprema Corte. Até ontem, quando recebeu pela primeira vez uma ordem definitiva, que não permite subterfúgios ou zombarias como os usados ​​em ordens judiciais anteriores, e exige que ele suspenda todas as deportações em andamento para a prisão de segurança construída por Bukele para suspeitos de terrorismo.

Esta é a segunda intervenção direta da Suprema Corte na política de deportação da Casa Branca, que utiliza abusivamente uma lei antiga que remonta a 1798 para deter e deportar cidadãos e aqueles nascidos no país hostil durante a guerra, sem qualquer intervenção judicial. Foi aplicada em 1812 na guerra contra a Inglaterra e nas duas guerras mundiais contra cidadãos de origem alemã, italiana e japonesa (embora, na prática, apenas estes últimos tenham sido internados). Agora, Trump finge que os Estados Unidos estão em guerra e invadidos por criminosos e terroristas comandados pela Venezuela, embora ninguém possa negar que seu objetivo é desmantelar o judiciário, dando mais um passo em direção à destruição do Estado de Direito.

Em uma decisão anterior, os juízes da Suprema Corte solicitaram que a Casa Branca facilitasse a repatriação para os Estados Unidos do cidadão salvadorenho Kilmar Armando Abrego Garcia, que foi detido ilegalmente e deportado para El Salvador. Antes ignorados e ridicularizados, sete dos nove juízes da Suprema Corte, incluindo os três nomeados por Trump, emitiram ontem um congelamento provisório de todas as deportações, especificamente aquelas de cidadãos venezuelanos que estavam sendo preparadas para este fim de semana.

A batalha aberta entre o judiciário e a Casa Branca atingiu seu clímax. Vamos ver se a última linha de defesa pode deter o homem que quer se estabelecer como o autocrata dos Estados Unidos, acima da Constituição, com todos os poderes em suas mãos e sem prestar contas a ninguém. Para o historiador Timothy Snyder, este é o ponto de virada no “início de uma política de terror de Estado”. Edward Luce, colunista do Financial Times , assume que “a partir do meio-dia de 14 de abril de 2025, os Estados Unidos deixaram de ter um governo que respeita a lei”, uma vez que “ignorou a decisão unânime do Supremo Tribunal de repatriar um homem deportado ilegalmente”. E de acordo com Ezra Klein, escrevendo no The New York Times , estamos enfrentando “o trabalho de uma ditadura” que “já nos confronta com o horror”.

O Estado de direito, as liberdades civis e a liberdade de expressão estão em jogo. A independência dos juízes e a autonomia da universidade estão em risco. Também o direito de votar. A ameaça paira sobre todos os cidadãos, não apenas sobre aqueles nascidos no exterior. Os instintos ditatoriais que flertam com a permanência no poder além do segundo mandato de quatro anos são flagrantes. Trump quer demitir o presidente do Federal Reserve porque ele não quer reduzir as taxas de juros . Quem sabe o que é viver sob uma ditadura consegue reconhecer seus sinais inconfundíveis na sombra que aos poucos cai sobre a grande democracia americana.

Lluís Bassets, o autor deste artigo, escreve colunas e análises sobre política, especialmente política internacional, para o EL PAÍS. Ele escreveu, entre outros, 'O Ano da Revolução' (Touro), sobre as revoltas árabes, 'A Grande Vergonha'. Ascensão e queda do mito de Jordi Pujol (Península) e um diário de pandemia e confinamento intitulado "Les ciutats interiors" (Galaxia Gutemberg). Publicado em 20.04.25

quinta-feira, 17 de abril de 2025

Por que nunca estive tão apavorado com o futuro dos EUA como agora?

Esse governo Trump 2 não passa de uma farsa cruel e os EUA estão se transformando em uma nação delinquente

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, participa de um evento na Casa Branca  Foto: Manuel Balce Ceneta/AP

Tanta loucura acontece no governo Trump todos os dias que algumas coisas absolutamente estranhas mas incrivelmente reveladoras se perdem no ruído. Um exemplo recente foi a cena de 8 de abril na Casa Branca, na qual, em meio à sua acirrada guerra comercial, nosso presidente decidiu que era o momento perfeito para assinar um decreto destinado a impulsionar mineração de carvão.

“Estamos trazendo de volta uma indústria que foi abandonada”, disse o presidente Donald Trump cercado por mineiros de carvão com capacetes, membros de uma força laboral que caiu de 70 mil trabalhadores para cerca de 40 mil na década recente, segundo noticiou a Reuters. “Vamos colocar os mineiros de volta ao trabalho.” Para completar, Trump acrescentou sobre esses mineiros: “Se lhes déssemos uma cobertura na Quinta Avenida e um outro tipo de emprego eles ficariam infelizes. Eles querem minerar carvão, é isso o que eles amam fazer”.

É louvável que o presidente homenageie homens e mulheres que trabalham com as mãos. Mas escolher elogiar mineiros de carvão ao mesmo tempo que tenta zerar a geração de empregos em tecnologias limpas — em 2023, a indústria de energia eólica dos EUA empregava aproximadamente 130 mil trabalhadores, e a indústria de energia solar, 280 mil — sugere que Trump está preso a uma ideologia de direita que não reconhece os empregos nas indústrias verdes como trabalhos “reais”. De que forma isso nos fortaleceria?

Esse governo Trump 2 não passa de uma farsa cruel. Trump concorreu a outro mandato não por saber minimamente como transformar os Estados Unidos para o século 21. Ele concorreu para ficar fora da cadeia e se vingar daqueles que, com evidências reais, tentaram responsabilizá-lo perante a lei. Duvido que ele já tenha passado cinco minutos estudando a força de trabalho do futuro.

Portanto Trump retornou à Casa Branca com a cabeça ainda repleta de ideias dos anos 70. De volta ao poder, ele lançou uma guerra comercial sem aliados nem nenhuma preparação séria — razão pela qual ele altera suas tarifas quase que diariamente — e sem compreender a medida em que a economia global é atualmente um ecossistema complexo no qual produtos são montados a partir de componentes fabricados em vários países. E então ele nomeia para travar essa guerra um secretário de Comércio que acredita que milhões de americanos estão mortos de vontade de substituir os trabalhadores chineses “que aparafusam pequenos parafusos para fabricar iPhones”.

Mas essa farsa está prestes a afetar todos os americanos. Ao atacar nossos aliados mais próximos — o Canadá, o México, o Japão, a Coreia do Sul e a União Europeia — e nossa maior rival, a China, ao mesmo tempo deixando claro que favorece a Rússia em vez da Ucrânia e prefere indústrias de energia que destroem o meio ambiente a indústrias voltadas para o futuro, e o planeta que se dane, Trump está provocando uma grave perda de confiança global nos EUA.

O mundo percebe agora os EUA de Trump exatamente na forma que o país está se tornando: uma nação delinquente, liderada por um ditador impulsivo e desconectado em relação ao estado de direito e a outros princípios e valores constitucionais americanos.

E vocês sabem o que nossos aliados democráticos fazem com Estados delinquentes? Liguemos alguns pontos.

Primeiro, eles deixam de comprar títulos do Tesouro como antes. Portanto, os EUA precisarão oferecer-lhes taxas de juros mais altas para que isso aconteça — o que afetará toda a nossa economia, do financiamento de carros até o financiamento imobiliário, passando pelo custo dos serviços da dívida nacional, em detrimento de tudo mais.

“Será que as decisões espasmódicas e os impostos aduaneiros do presidente Trump estão fazendo com que os investidores do mundo se afastem do dólar e dos títulos do Tesouro dos EUA?”, questionou um editorial do Wall Street Journal, no domingo, sob o título “Existe um novo prêmio de risco para os EUA?”. É cedo demais para dizer, mas não para questionar, já que os rendimentos dos títulos continuam subindo e o dólar continua se enfraquecendo — sinais clássicos de uma perda de confiança que não precisa ser muito grande para surtir um impacto significativo sobre toda a nossa economia.

Carros fabricados na China, incluindo Volvo e outras marcas, são vistos no porto de Nanquim, na província de Jiangsu, no leste da China, em 16 de abril de 2025, enquanto aguardam para serem carregados em navios para exportação. Foto: AFP/AFP

Instituições

Outra coisa: nossos aliados vêm deixando de acreditar em nossas instituições. O Financial Times noticiou na segunda-feira que a comissão que governa a União Europeia “está distribuindo telefones descartáveis e laptops básicos para alguns funcionários que viajam aos EUA para evitar o risco de espionagem, uma medida tradicionalmente reservada para viagens à China”. A UE deixou de acreditar no estado de direito nos EUA.

A terceira coisa que pessoas de outros países têm feito é dizer a si mesmas e aos seus filhos — e eu ouvi isso repetidamente na China poucas semanas atrás — que talvez não seja mais uma boa ideia estudar nos EUA. O motivo: acham que seus filhos e parentes poderão ser presos arbitrariamente e deportados para prisões salvadorenhas.

Isso é irreversível? Minha única certeza hoje é que, em algum lugar por aí, enquanto vocês leem este texto, existem indivíduos como o pai biológico de Steve Jobs, um sírio que veio para o nosso país na década de 50 cursar um doutorado na Universidade de Wisconsin, alguém que planejava estudar nos EUA, mas que agora pensa em ir para o Canadá ou para a Europa.

Congressista ergue um cartaz que pede a volta de Kilmar Abrego Garcia aos Estados Unidos após o governo Trump deportá-lo por engano para El Salvador 

Congressista ergue um cartaz que pede a volta de Kilmar Abrego Garcia aos Estados Unidos após o governo Trump deportá-lo por engano para El Salvador  Foto: Alex Wong/AFP

Se encolhemos tudo isso — nossa capacidade de atrair os imigrantes mais enérgicos e empreendedores do mundo, o que nos permitiu ser o centro mundial de inovação; nosso poder de atrair uma parcela desproporcional da poupança mundial, o que nos permitiu viver além de nossas possibilidades por décadas; e nossa reputação de defensores do estado de direito — com o tempo veremos EUA menos prósperos, menos respeitados e cada vez mais isolados.

Mas espera aí, vocês podem dizer, a China também não continua extraindo carvão? Sim, continua, mas com um plano de longo prazo para eliminá-lo gradualmente e usar robôs para fazer o trabalho perigoso e prejudicial à saúde dos mineradores.

Longo prazo

E eis a questão. Enquanto Trump faz seu “planejamento” — divagando sobre qualquer assunto que lhe pareça uma boa política num determinado momento — a China planeja a longo prazo.

Em 2015, um ano antes de Trump virar presidente, o então primeiro-ministro chinês, Li Keqiang, revelou um plano de crescimento voltado para o futuro chamado “Made in China 2025″. O plano começou perguntando: qual será o motor de crescimento no século 21? Pequim fez então enormes investimentos nos componentes desse motor para que as empresas chinesas fossem capazes de dominá-lo no país e no exterior. Estamos falando de energia limpa, baterias, veículos elétricos e autônomos, robôs, novos materiais, máquinas-ferramentas, drones, computação quântica e inteligência artificial.

O Nature Index mais recente mostra que a China se tornou “líder global em produção de pesquisa em bancos de dados em química, ciências da terra e ambientais e ciências físicas — e é o segundo em ciências biológicas e ciências da saúde”.

Isso significa que a China nos deixará para trás? Não. Pequim está cometendo um erro enorme se pensa que o restante do mundo vai deixar a China suprimir indefinidamente sua demanda interna por bens e serviços para que seu governo possa continuar subsidiando indústrias exportadoras e tentar fabricar tudo para o mundo inteiro, deixando os outros países esvaziados e dependentes. Pequim precisa reequilibrar sua economia, e Trump está certo em pressioná-la a fazê-lo.

Mas a arrogância constante de Trump e sua imposição intermitente de tarifas não são uma estratégia — não quando se enfrenta a China no 10.º aniversário de sua política Made in China 2025. Se o secretário do Tesouro, Scott Bessent, realmente acredita no que declarou estupidamente, que Pequim está “jogando com um par de dois” apenas, então alguém por favor me avise quando for noite de pôquer na Casa Branca, porque eu gostaria de jogar. A China construiu um motor econômico que lhe dá opções.

A questão para Pequim — e para o restante do mundo — é: como a China usará todos os superávits que gerou? Investindo na construção de um Exército mais ameaçador? Em mais ferrovias de alta velocidade e rodovias de seis pistas para cidades que não precisam delas? Ou em mais consumo e serviços domésticos ao mesmo tempo que se oferece para construir a próxima geração de fábricas e cadeias de fornecimento chinesas nos EUA e na Europa, com estruturas de propriedade 50-50? Nós precisamos encorajar a China a fazer as escolhas certas. Mas pelo menos a China tem opções.

Comparem isso com as escolhas que Trump está fazendo. Trump está minando nosso sagrado estado de direito, afastando nossos aliados, enfraquecendo o valor do dólar e destruindo qualquer esperança de unidade nacional. Trump fez até os canadenses boicotarem Las Vegas porque eles não gostam de ouvir que logo nós seremos donos de seu país.

Então, me digam, quem está jogando com um par de dois?

Se não parar com seu comportamento delinquente, Trump destruirá tudo o que tornou os EUA fortes, respeitados e prósperos.

Nunca em minha vida eu temi tanto pelo futuro dos EUA.

Thomas Friedman, o  autor deste artigo, é colunista de assuntos internacionais do The New York Times e ganhador de três prêmios Pulitzer. É autor de sete livros, entre eles 'De Beirute a Jerusalém', que venceu o Prêmio Nacional do Livro. Este artigo foi reproduzido na edição de hoje, 17.04.25, d'O Estado de S. Paulo com tradução de Guilherme Russo.

No meio do caminho de Trump, há a Justiça

Até a Suprema Corte, de maioria conservadora, contraria governo; sistema de freios e contrapesos é pilar das democracias

Vista de parte da fachada da Suprema Corte com a bandeira dos Estados Unidos, em Washington (EUA) - Kevin Mohatt/Reuters

Quem poderá conter Donald Trump? O presidente americano inicia seu segundo mandato com apetites autoritários redobrados. No plano externo, incitou uma guerra comercial global, com aumento ensandecido de tarifas, e recebeu dura resposta da China.

No interno, a reação está começando. Em sua cruzada contra as universidades de elite, por exemplo, Harvard já avisou que não aquiescerá às absurdas exigências do governo. Mesmo no Partido Republicano, parlamentares ligados a setores mais afetados pelas tarifas e bilionários que financiaram sua campanha eleitoral mostram descontentamento.


De todos os agentes e instituições que podem fazer resistência a Trump, o mais decisivo é o Judiciário. Trata-se, afinal, do Poder que, no sistema de freios e contrapesos das democracias liberais, está incumbido de revisar as decisões do Executivo e sobrestá-las caso violem as leis.

Várias medidas de Trump foram contestadas e, em alguns casos, juízes ordenaram suspensões. Mas, de modo temerário, o governo vem recorrendo a subterfúgios para adiá-las ou não implementá-las e até a ameaças abertas de descumprimento.

As alegações da Casa Branca por vezes beiram o surrealismo, como na situação do imigrante legalizado enviado erroneamente a uma prisão salvadorenha.

O governo, em desafio a uma liminar da Suprema Corte, se recusa a tentar repatriá-lo e insiste que está cumprindo a determinação, pois o imigrante, ora preso e sob risco de tortura, não será barrado em nenhum ponto de entrada do território americano caso se apresente a um deles.

Note-se que a mais alta corte do país tem maioria conservadora —de 6 dos 9 magistrados, sendo que 3 deles foram indicados por Trump em seu primeiro mandato. Tal composição, porém, não significa alinhamento automático a Washington.

O tribunal já concedeu decisões tanto favoráveis como contrárias à Casa Branca. O republicano até chegou a ser repreendido de forma inédita pelo presidente da Suprema Corte, por ter ameaçado promover o impeachment de um juiz de cuja decisão sobre deportação de imigrantes não gostara.

Há bons motivos para crer que a instância máxima da Justiça manterá certa independência, já que o projeto trumpista é autoritário. Se sua agenda obtiver sucesso, o Judiciário perderá poder para o Executivo. É incomum que detentores do poder abram mão dele espontaneamente.

Apesar de suas tentativas, não será tão fácil para Trump arruinar a democracia americana.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 17.04.25 (editoriais@grupofolha.com.br)

Três vozes cristãs proféticas contra Trump

Mariann Budde, Francisco e Robert McElroy apontam o caminho para um cristianismo profético com conteúdo político libertador.

A bispa Mariann Edgar Budde e o presidente Donald Trump durante o culto na Catedral Nacional de Washington em 21 de janeiro, após a posse do republicano. Kevin Lamarque (REUTERS)

A reação dos governos europeus às políticas xenófobas, colonialistas e desfavoráveis ​​de Trump não foi exatamente caracterizada por oposição e resistência, com algumas exceções. O que predominou foi indiferença, medo, moderação nas críticas, falta de uma resposta unificada, falta de liderança e, em alguns casos, conformidade. A atitude europeia tem sido a de um avestruz, como afirmou María R. Sahuquillo em um de seus excelentes artigos para o EL PAÍS, ou a de um sonâmbulo, como reconheceu o pesquisador de Harvard Alberto Alemanno.

Alguns líderes cristãos enfrentaram Trump e reagiram criticamente, usando denúncias proféticas de tais políticas e defendendo os indivíduos e grupos mais vulneráveis. Vou me concentrar em três que se destacaram por suas críticas a Trump: Mariann Edgard Budde, bispo episcopal de Washington; Papa Francisco e o Cardeal Robert McElroy, que em breve tomará posse como o novo Arcebispo de Washington.

A bispa Mariann Budde rompeu com a tradição do sermão político que legitimava o novo presidente na posse e transformou a celebração religiosa em uma denúncia das políticas de Trump e uma proposta de caminho ético a ser seguido durante seu mandato, com uma linguagem moderada na forma, é verdade, mas radical no conteúdo. Enquanto Trump estava absorto em outros pensamentos, olhando para o chão e talvez alheio ao que estava sendo comemorado, o bispo adotou uma atitude verdadeiramente profética.

Após o próprio Trump admitir que foi "a mão providencial de um Deus amoroso" que o salvou do ataque que sofreu durante a campanha eleitoral, o bispo pediu a ele, "em nome de Deus", que demonstrasse compaixão por aqueles assustados com suas políticas anti-LGBTQ+. Entre eles, ele citou "gays, lésbicas e crianças transgêneros em famílias de diferentes convicções políticas: democratas, republicanos e independentes", justamente aqueles que agora estão sendo discriminados.

Mas não parou por aí. Diante das deportações em massa de imigrantes anunciadas por Trump durante sua campanha eleitoral, ele exigiu compaixão por eles, pois estão contribuindo para o bem-estar do povo americano. Ele lembrou que não pode considerar imigrantes indocumentados como criminosos, como o presidente republicano costuma fazer, já que eles pagam impostos, são bons vizinhos e membros fiéis de igrejas, sinagogas, mesquitas, gurdwaras ou templos.

O argumento final de Mariann Budde para a compaixão de Trump pelos estrangeiros foi: "Éramos todos estrangeiros em nossa própria terra" e precisamos de hospitalidade. O sermão desafiador e deslegitimador indignou Trump tanto que ele exigiu um pedido de desculpas. O bispo recusou tal pedido. Não era a primeira vez que ele o enfrentava. Ele já fez isso quando o presidente republicano posou, durante seu primeiro mandato, com sua filha Ivanka e segurando a Bíblia no alto, em frente à porta da Igreja de Saint John, em Washington. Diante de tal gesto de manipulação e profanação, Budde expressou publicamente sua indignação e horror.

O Papa Francisco também não se mostrou complacente com as políticas xenófobas e colonialistas de Trump, em uma carta endereçada ao episcopado católico americano. Usando uma linguagem claramente política e uma sólida base antropológica, teológica e bíblica, ele descreve as deportações em massa de imigrantes como um ataque à dignidade de muitos homens e mulheres, que Trump coloca "em um estado de especial vulnerabilidade e indefesa". Ele apela aos cidadãos para que expressem sua discordância com tais práticas, para que não cedam a narrativas que discriminam e causam sofrimento a imigrantes e refugiados, para que construam pontes e "evitem muros de ignomínia", como os que estão sendo construídos pelo presidente dos EUA.

Na carta, ele chega a questionar se os Estados Unidos são um estado governado pelo Estado de Direito, negando tratamento digno a pessoas empobrecidas e marginalizadas, construindo-o com base na força e não na igual dignidade de todos os seres humanos. Ele também convida os bispos a trabalharem para defender pessoas consideradas menos valiosas e menos humanas.

O Vaticano reagiu imediatamente contra a limpeza étnica de Gaza proposta por Trump com a colaboração de Netanyahu. E ele o fez com duas declarações contundentes: o povo de Gaza “deve permanecer em sua terra” e a limpeza étnica “não faz sentido”.

O terceiro líder cristão a entrar em conflito com Trump foi o cardeal americano Robert McElroy. Em uma linguagem ainda mais forte e desafiadora do que a do bispo e do Papa, ele chamou as políticas de deportação em massa de Trump de uma "guerra de medo e terror que não pode ser tolerada". Diante da miséria, do medo e do terror, é impossível permanecer em silêncio. O silêncio é um crime e, do ponto de vista cristão, um pecado. Por isso, ele pediu que uma voz se levantasse contra a miséria e o sofrimento que essas políticas estão desencadeando. O objetivo dos ataques indiscriminados é gerar medo para que as pessoas não vão à escola ou à igreja.

Juan José Tamayo, o autor deste artigo, é teólogo e professor emérito honorário da Universidade Carlos III de Madri. Seu último livro é Cristianismo Radical (Trotta). Publicado originalmente no diário global EL PAÍS, em 17.04.25

Presidência de Trump em plena cruzada contra a democracia

Desde a posse, republicano vem minando o Estado de direito nos EUA. De cortes de verbas à difamação pública, qualquer meio parece válido contra universidades, imprensa, juízes e outras entidades não alinhadas.

"Uma piada que ensina ódio e burrice", Universidade de Harvard é um dos alvos do governo trumpistaFoto: Steven Senne/AP/picture alliance

Faz pouco mais de três meses que Donald Trump voltou a ocupar a Casa Branca. Neste meio temo, não só os Estados Unidos estão internamente conturbados e desestabilizados, mas os fundamentos da própria democracia foram também abalados.

O Instituto Brookings, de Washington, constatou "fissuras perigosas nos pilares da democracia americana", e em diversos níveis. A seguir, alguns exemplos.

Cruzada contra as universidades

"Harvard é uma piada, ensina ódio e burrice, e não deve mais receber subvenções", postou Trump nesta quarta-feira (16/04) em sua plataforma Truth Social, na mais recente escalada da confrontação entre o governo e as universidades de elite.

O estopim foi a acusação de que Harvard e outras instituições de ensino privadas supostamente não estariam se opondo com o rigor necessário aos protestos pró-palestinos no contexto da guerra na Faixa de Gaza, colocando assim em perigo os estudantes judeus.

Na realidade, o alvo é a tendência política geral das universidades de elite, que o regime trumpista considera excessivamente de esquerda. Para que elas sigam sendo financiadas com verbas federais, seria necessário avaliar o posicionamento político de docentes e discentes, e disponibilizar para o governo os dados de admissão de todos os estudantes, exige a Casa Branca.

Porém o presidente da Harvard, Alan Garber, se opõe a tais exigências. Afirmando que a instituição não está disposta a desistir nem de sua independência, nem de seus direitos garantidos pela Constituição, ele vê a liberdade científica em perigo: "Nenhum governo – independente de qual partido esteja no poder – deveria prescrever o que as universidades particulares podem ensinar, quem matricular ou contratar, e a quais campos de estudo e pesquisa pode se dedicar."

Jogo duplo com a Justiça

Estado de direito e respeito às deliberações judiciais são os pilares das democracias ocidentais. Porém justamente eles têm estado cada vez mais na berlinda nos EUA. Por um lado, a administração Trump já ignorou diversos veredictos e realizou deportações contra as ordens dos tribunais.

Entre os casos mais notórios está o de Kilmar Armando Abrego-Garcia, erroneamente deportado para o Centro de Confinamento do Terrorismo (Cecot), de alta segurança, em El Salvador. O Supremo Tribunal urgiu Washington a cuidar para que o salvadorenho de 29 anos seja rapidamente devolvido aos EUA, mas até agora nada aconteceu, critica a juíza federal Paula Xinis.

Juízes como James Boasberg, que se opõem ao governo e bloqueiam as deportações planejadas, são difamados publicamente como "radicais de esquerda lunáticos". Trump ameaça com processos de demoção do cargo e flerta com a substituição desses juristas por outros mais coniventes.

Ao mesmo tempo, o republicano nova-iorquino instrumentaliza o Departamento de Justiça contra seus críticos. Já em suas primeiras semanas como presidente, ele mandou despedir ou transferir, como medida punitiva, diversos funcionários da pasta envolvidos em inquéritos contra ele.

Em fevereiro, por exemplo, ordenou a demissão de todos os procuradores estaduais ainda da época de Joe Biden, enquanto colocava seus próprios advogados em cargos governamentais altos. Um deles, Todd Wallace Blanche, é o atual procurador-geral adjunto dos EUA. À frente do Departamento de Justiça, está a republicana Pam Bondi, trumpista incondicional. Além disso, concedeu indulto presidencial a quase todos os 1.600 condenados pela invasão do Capitólio de 6 de janeiro de 2021.

Primeiras restrições à liberdade de imprensa

Há muito o jornalismo crítico incomoda Trump. "Elas são corruptas e ilegais", vociferou, num discurso no Departamento de Justiça em meados de março, contra as grandes emissoras como a CNN e MSBC, que teriam noticiado "97,6%" contra ele e representariam "o braço político do Partido Democrata".

Ainda durante a campanha eleitoral, ameaçou cassar a licença dos veículos malquistos, já tendo cortado inteiramente o financiamento das emissoras internacionais Voz da América e Radio Liberty, as quais estão prestes a fechar.

Foi ainda retirado o credenciamento da agência de notícias AP para a sala de imprensa da Casa Branco, por ter se recusado a referir-se ao Golfo do México como "Golfo da América", segundo Trump ordenara. Mais uma vez, um tribunal declarou a medida ilegal, e mais uma vez a deliberação judicial foi ignorada: os repórteres da AP continuam tendo ingresso vedado.

"Limpeza política" do aparato estatal

Quando, em seu discurso no Congresso, Trump anunciou o fim dos "tempos de burocratas não eleitos no poder", os democratas presentes riram com escárnio. Afinal, é justamente Elon Musk, consultor presidencial nunca legitimado democraticamente, que – à frente do assim chamado Departamento de Eficiência Governamental (Doge) –, desde janeiro se propõe a agilizar as repartições públicas do país e cortar gastos desnecessários – por tabela alinhando todo o aparato estatal aos desígnios trumpistas.

"Eles não vão contra as repartições e departamentos que fazem coisas de que eles gostam, mas sim contra as instituições públicas com que não estão de acordo", criticava, já em fevereiro, o republicano Douglas Holtz-Eakin, ex-diretor do Escritório de Orçamento do Congresso.

Houve demissões em massa nas agências da receita federal, meio ambiente e saúde, entre outras. Tachados de "desperdício esquerdista woke de impostos", programas de diversidade e inclusão foram eliminados; exigências ambientais, retiradas; gastos sociais e com saúde, drasticamente reduzidos. A agência para o desenvolvimento Usaid e outras foram duramente penalizadas – contrariando a concepção legal vigente de que tais medidas precisam primeiro passar pelo Congresso.

Além disso, o Doge está sob suspeita de espionar funcionários do governo usando inteligência artificial (IA). Em pelo menos uma agência, a comunicação interna teria sido monitorada – sob o pretexto de poder filtrar e despedir quem faça observações desleais a respeito de Trump. Para os críticos, trata-se até de uma "limpeza política" do aparato estatal.

Thomas Latschan, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente por Deutsche Welle (A voz da Alemanha) em 17.04.25

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Quem defende a democracia?

Em 2022 e 2023 o Brasil se mostrou mais maduro e equipado que os Estados Unidos em 2020 e 2021 para lidar com as turbas

Da esquerda para a direita: o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump; o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes e o dono do X, Elon Musk — Foto: Fotos de Jim Watson/AFP, Brenno Carvalho/O Globo e Kevin Lamarque/Pool/AFP

Estados Unidos e Brasil lidam neste momento com um dilema comum: como responder a diferentes graus de ameaça à democracia que aconteceram nos últimos anos e, por lá, se intensificam a cada dia no novo mandato de Donald Trump?

Enquanto aqui uma corrente política tenta convencer a sociedade de que o Judiciário exagera e persegue ao punir com rigor aquilo que a sua Corte mais alta, o Supremo Tribunal Federal, decidiu por ampla maioria ter sido uma tentativa de golpe de Estado, nos Estados Unidos as diferentes instituições começam a dar sinais de que perceberam quanto subestimaram a capacidade de destruição de todo o arcabouço democrático erigido nos últimos séculos por parte de uma oligarquia disposta a fazê-lo.

Vale a pena olhar para o que se passa em ritmo acelerado na maior potência do mundo para analisar com a frieza e a responsabilidade devidas as atuais tentativas de minimizar episódios como o 8 de Janeiro e a trama golpista urdida ainda na vigência do governo de Jair Bolsonaro.

Muito da sem-cerimônia com que Trump nomeou pessoas movidas por interesses particulares — muitas das quais notoriamente avessas às premissas básicas das áreas que foram designadas para comandar — e passou a investir simultaneamente contra os vários pilares sobre os quais a história democrática americana foi assentada se deve ao fato de que ele já tinha tentado fazer isso antes e não foi punido. Não só isso: foi ungido de volta, como se a maioria do eleitorado não só respaldasse ações impensáveis como a invasão ao Capitólio e a tentativa de não reconhecer o resultado das eleições de 2020, como pedisse mais.

Trump entendeu assim e está oferecendo muito mais. Se isso, por si só, já foi espantoso tratando-se de um país que sempre cantou em prosa e verso a solidez de sua democracia, a facilidade com que o presidente eleito novamente conseguiu amedrontar o Congresso, atemorizar as universidades a ponto de fazê-las sucumbir a censura e pressão financeira e desmontar agências, coalizões e departamentos, inclusive ligados à soberania nacional, faz qualquer filme distópico parecer fichinha.

Levou quase quatro meses para que personagens como Bernie Sanders, Alexandria Ocasio-Cortez ou instituições como Harvard começassem a erguer a voz, dizer “não” ao arbítrio e arregaçar as mangas. E precisou que os ditames de Trump começassem a bater no bolso daqueles que o reconduziram à Casa Branca para que a população começasse a ir às ruas e a dizer que não aceitaria mais avanços autoritários.

E também nesse aspecto há paralelos a ser construídos com o Brasil. O STF e, mais específica e sistematicamente, o ministro Alexandre de Moraes foram aqueles que pararam Bolsonaro quando se tentava passar a boiada na legislação de proteção ambiental, negar vacina e tratamento a populações específicas na pandemia, colocar em xeque o sistema eleitoral consagrado havia décadas e até impedir eleitores de votar, numa última tentativa desesperada de influir na vontade popular.

Nada disso, nem a invasão à sede dos três Poderes, foi brincadeira. Punir os responsáveis por essa sucessão de atos e decisões não é perseguir donas de casa indefesas, mas proteger a democracia, um bem tão frágil que basta dar poder a um autocrata para que venha a ser rapidamente reprimido.

Em 2022 e 2023 o Brasil se mostrou mais maduro e equipado que os Estados Unidos em 2020 e 2021 para lidar com as turbas, as eleitas e as alistadas, que tentaram conspurcar a ordem constitucional. Mas os ventos de lá sopram aqui quando tributários do trumpismo enxergam em sua volta ao poder a deixa para tocar o terror da pressão para que os Poderes sucumbam e passem a relativizar as tentativas de golpe em vários atos que vivenciamos.

Que a reação tardia e insuficiente da sociedade americana seja também um sacode nos que estão aos poucos sendo levados na conversa mole de que tudo que vimos ao vivo e em cores não passou de delírio do Xandão.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é jornalista. Comenta para o  jornal O Globo os principais fatos da política, do Judiciário e da economia. Publicado em 16.04.25